Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 11, 24/12/2014

CEIA DE NATAL

Lembrei-me de tudo. O momento quando soube que estava grávida. Um anjo anunciou a notícia em meu ouvido. Foi um presságio, uma revelação, uma certeza que encheu o quarto e a minha vida. Ele me disse que eu geraria um filho e me falou o augusto nome que eu lhe deveria dar.

Jovem e insegura, fui para a casa de uma prima, que me recebeu com carinho. Ali passei três meses e tecemos os fios, os grãos, os dias e as noites daquele tempo de espera.

O parto foi natural. Meu corpo era uma gruta e você foi saindo devagar como um sol nascendo entre minhas coxas. Limpei a placenta e o envolvi com faixas.  Seu pai ficou ao meu lado, silencioso, atônito diante do mistério.

Recuperei-me logo. Você estava forte, alimentado do leite de meu seio. Vestimos você com uma camisola branca de linho. Subimos a escada do templo e o apresentamos no altar. Não sei porque, mas uma espada atravessou minha alma naquela hora. Uma opressão. Você cresceu entre parentes e amigos. Tornou-se adolescente. Um adolescente causa aflições. Um dia você sumiu. Eu e seu pai o procuramos por toda parte. Você disse depois que já queria ser independente, andar sozinho, cuidar de suas próprias coisas. Doeu. Os filhos não nos pertencem. Sabia que você tinha uma missão, um ideal, uma estrela.

Você sofreu muito pelas ruas, pelas esquinas, pelo mundo. Viu cenas que o fizeram amadurecer. Quase foi esfolado como um cordeiro. Dentro de você havia um vulcão de angústia, de rebeldia, de carne comprimida, de fervor escaldante. Lavas de suor e sangue correram por sua face. Você se entregou totalmente a algo maior. É bom vê-lo criando. Criar é preciso. “Navegar é preciso, viver não é preciso”, é a máxima dos antigos navegantes fenícios e dos verdadeiros artistas.

Acostume-se. Há os que lavam as mãos. Os que vão chamá-lo de subversivo. Prisões, látegos, correias, cercas, vento açoitando, mar espumando ira nos cascos dos navios. Pancadas nas costas abertas como fruta esponjosa.

Não pense em glória, em ânsia de imortalidade, não foque nisso. Não ache que você é um rei. Aguarde críticas, ferrões, espigões, agulhas de cacto. Prepare-se para que enterrem em seu couro os espinhos das maldades. A trave pousada sobre seu ombro. O pulmão engaiolado entre os ossos. Ainda bem que sempre há um irmão e nos ajuda e consola nos momentos de martírio.

Você foi elegante nas dificuldades. Soube perdoar e suportar a ignorância alheia. Isso me alegrou, embora meu coração tenha se rasgado em duas partes como um véu roxo.

Disseram-me que você está longe, distante de mim. Escondido em algum canto, como seu eu o tivesse concebido ao contrário. Não canso de buscá-lo, de chamá-lo. Estou revestida de uma grande força, um fogo que me lambe.

Quem pode recompensar as obras, sofrimentos, penitências, lágrimas e virtudes de uma mãe? De alguém que errou só tentando proteger, livrar, poupar o filho e não conseguiu? Não queria anulá-lo com esse meu papel de mulher universal, de rainha, de medianeira que se intromete em seus assuntos. Que intercede por tudo e por todos. Queria apenas enobrecer minha natureza. Cabe-me agora, com humildade, dizer: — Sou apenas mãe dele.

Tanto tempo que não o vejo. Que não ceamos juntos numa noite de Natal. Arrumarei a mesa com pães, peixes, flores, feixes de trigo, fitas verdes e vermelhas. Sei que desta vez, este ano, você virá.

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