Mito em contexto - Coluna 03
(Próxima: 20/6)
O Amor move o mundo
“Amor - pois que é palavra essencial”, diz o poeta Carlos Drummond de Andrade no poema de abertura do livro “O amor natural”. Os poemas falam sobre o amor físico e sexual:
O corpo noutro corpo entrelaçado, / fundido, dissolvido, volta à origem / dos seres, que Platão viu completados: / é um, perfeito em dois; são dois em um.
Na época do lançamento, o livro em questão provocou discussão sobre os limites entre palavras eróticas e pornográficas. Vejamos aqui o termo erótico. O adjetivo erótico é derivado de Eros, o deus grego do Amor, e refere-se, no sentido amplo, a tudo o que se liga ao Amor.
Tão difícil quanto descobrir a origem do mundo e dos homens é definir as nuances do amor. Há muitos séculos, os filósofos tentaram explicar a criação do mundo. Para alguns, forças atuavam com os quatro elementos, terra, água, fogo e ar. Para os poetas, essa força era chamada de Eros, o Amor.
Antes de ser representado como deus do Olimpo, Eros esteve presente nos mitos que contavam as primeiras criações do mundo e dos deuses, e permitiu a aproximação dos seres. Conta um mito que o Caos, o Érebo e a Noite procriaram juntos e deram origem a tudo o que compõe o Universo, inspirados pela energia cósmica de Eros.
O filósofo Platão chamou Eros de “daimon”, uma espécie de ser espiritual que habitava entre os deuses e os homens. Na obra “O Banquete”, Platão conta sobre a união de Poros, o deus dos recursos, e Pênia, a carência, na festa de nascimento de Afrodite, a deusa da Beleza e do Amor. Desse encontro nasceu Eros, carente como a mãe, sempre em busca de algo que o satisfaça, mas com recursos para alcançar o que deseja, como o pai. O amor, quando sente-se carente, busca conquistar o outro para preencher seu vazio.
Amar o outro também é aumentar o amor. Para crescer, o amor precisa ser partilhado e correspondido. Assim conta o mito sobre os irmãos Eros e Anteros, quando ambos são representados como filhos de Afrodite. Eros não crescia e Afrodite concebe Anteros, depois de saber que Eros precisava de um companheiro para aprender a compartilhar e conviver. Quando está com Anteros, Eros cresce, quando Anteros o deixa, Eros volta ser menino.
Retratado assim, como um menino alado, Eros diverte-se ferindo os mortais e os deuses com suas flechas, como aparece em uma ode do poeta grego Anacreonte. Uma criancinha linda e molhada pelo temporal bate à porta. Não demora a usar seu arco, Fingindo testar se o frio e a chuva não lhe fizeram mal. Logo atira no seu hóspede:
Que o arco está perfeito / Hospedeiro querido! / No coração, no entanto, / Padecerás ferido.
Sob aparência inocente, Eros tem o poder de ferir sem piedade suas vítimas. Dessa maneira, é o símbolo do amor imaturo, que nunca usará a Razão. Padre Antônio Vieira fala sobre o “amor menino” no Sermão do Mandato:
Pois se há também amor que dure muitos anos, porque no-lo pintam os sábios sempre menino? (...) Pinta-se o amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega à idade de uso da razão. Usar de razão e amar, são duas cousas que não se juntam. A alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afetos e um entendimento sem uso.
No mês de junho, vemos nas propagandas do dia dos namorados muitas figuras de corações flechados por esse menino alado. Essa é a representação mais famosa de Eros, o menino com asas, juntamente com seu nome latino, Cupido, filho de Vênus e Marte, ou Afrodite e Ares.
Eros também foi retratado jovem e adulto, depois que foi transformado pelo amor. Do seu envolvimento com uma mortal temos uma das mais belas histórias da mitologia, o mito de Eros e Psiquê. Eros torna-se marido e pai. Passa pelos sofrimentos do amor com Psiquê e cresce. Unem-se Amor e Alma. O mito sugere que a Alma só é plena quando tem o Amor. E torna-se imortal. Fala também sobre o amor além da ilusão, como ilustrou o filósofo Platão, para quem o amor não seria um sentimento baseado somente em atração sexual, mas no desejo de atingir o Belo e a Perfeição. Dessas idéias surgiram o mal interpretado “amor platônico”, que teve seu significado reduzido à afeição por alguém que nunca corresponderá aos ideais do sonhador.
A correspondência parece ser essencial nas afeições geradas pelo amor. No conto de fadas “A Bela a e Fera”, a Bela quebra o feitiço quando sente amor pela Fera. Assim como em tantos contos clássicos, somente o amor reverte o caos em final feliz. Esse tipo de amor é que faz as pessoas sonharem com princesas e príncipes encantados. Mesmo quem não sonha, certamente não abririra mão desse amor se o encontrasse.
Há vários mitos relacionados ao Amor, tanto quanto há várias classificações do Amor, como o amor fraternal, o amor materno, o amor maduro e variações como sexo, paixão e desejo. Na língua grega, outras palavras foram usadas para exprimir conceitos relacionados ao Amor, como “philos” (amizade), "eros" (amor sexual ou romântico) e "ágape" (mais do que amor romântico e amizade, o amor pleno, que os teólogos tomaram como exemplo do amor de Deus no homem).
As genealogias e os conceitos de amor mudaram de acordo com nossas necessidades culturais, sociais e históricas, mas Eros segue como deus da união. Já confirmamos com o passar dos milênios que o homem é um ser social e não se realiza sozinho. O amor do outro e pelo outro ainda é essencial para a existência humana.
Quem nunca amou, certamente já desejou as sensações contraditórias das quais os poetas como Luís de Camões falam, em um soneto tão famoso quanto o mito de Eros:
Amor é um fogo que arde sem se ver, / É ferida que dói, e não se sente; / É um contentamento descontente; / É dor que desatina sem doer...
Mais famoso que esse soneto é a descrição do amor registrada na Bíblia, em Coríntios, capítulo 13:
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. (...) Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.