A 11 de fevereiro de 1986 faleceu em Belo Horizonte, após prolongada
enfermidade, Arthur Versiani Velloso, catedrático de História
da Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Academia
Mineira de Letras. Ele foi a própria Filosofia nos anos em
que empolgou centenas de estudantes para os estudos filosóficos
nas suas aulas no Colégio Marconi e na Faculdade de Filosofia da
UFMG. Era um kantista e como admirador de Emmanuel Kant viajou duas
vezes à Alemanha para realizar, em Koenisberg, com o corpo docente
da universidade, a famosa “stoa” kantiana ao túmulo do mestre
alemão. Tal era sua admiração por aquele filósofo
que mandou fazer, em Belo Horizonte, uma réplica, em granito, da
sua pedra tumular onde estão gravadas as imortais palavras com que
é concluída a Crítica da Razão Prática:
“ Duas coisas enchem o meu espírito de admiração
e respeito, sempre novos e crescentes, quanto mais sobre elas reflito:
o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.
Na última vez que fui à Faculdade de Filosofia, ainda na
Rua Carangola, vi, no vestíbulo da faculdade,aquela réplica.
Não sei se ainda permanece nas novas instalações
ou se foi relegado a um depósito. Aquela lápide era,
realmente, estranha e inusitada para aqueles que não conhecem sua
história e não respeitam o passado. Tive a honra de
ter Mestre Velloso na minha banca de Doutoramento quando, em 1973, defendi
minha tese de Psicologia Social. Ele foi extremamente atencioso e
gentil ao deslocar-se de Belo Horizonte até Ribeirão Preto.
Sua argüição, como não poderia deixar de ser,
foi inteligente e crítica. Depois disto nunca mais o vi.
Sua tese de Doutoramento foi uma tentativa de conciliar o Tomismo
com o Kantismo que tanta estimulava sua inteligência crítica.
Mas Mestre Velloso foi, sobretudo, um personagem. Onde encontrá-lo?
Nas aulas de Filosofia? Nas conversas despreocupadas na Livraria Agir,
seja com algum aluno ou com Pedro Aleixo ou Milton Campos; ou nas páginas
do “Amanuense Belmiro”, consagrado romance de Cyro dos Anjos onde
ele é retratado como Silviano, o filósofo de um grupo de
rapazes que discute na bucólica Belo Horizonte dos anos 30 os problemas
da vida? Sua pessoa sempre foi multifacetada e como lhe assentava
bem a divisa que Descartes adotara : “ Je me cache - Eu me
oculto”. Quem ia visitá-lo na rua dos Aymorés, ao lado
da Igreja da Boa Viagem, deparava logo, na ante-sala, com um grande retrato
de René Descartes que sorria enigmaticamente para o visitante. Hoje,
desejo nestas memórias, exercitando o coração e a
razão, deixar registrada como era a sua relação com
os seus alunos nos anos 50. Este testemunho é necessário,
porque nossa época é marcada pelo quase total desaparecimento
do Mestre para em seu lugar surgir apenas o professor, o técnico
e o especialista. Se Marcel Proust mastigava sua “madaleine” para
recuperar o seu tempo perdido eu demoro, nesta tarde de Verão do
ano 2001, os meus olhos sobre alguns dos livros com que fui presenteado
pela sua generosidade. La está a sua tradução
de “Da Necessidade Metafísica do Homem”, de Schopenhauer,
a “Histoire de la Philosophie Moderne” de Roger Verneaux e
de E. Kant o “La Religion dans les limites de la simple Raison”.
Todos traziam, em letras garrafais, uma gentil dedicatória, como
esta, “Para Antonio Ribeiro de Almeida, mais esta “recordação”
do prof. Velloso, em julho de 1959". Era com prazer que ele presenteava
os estudantes daquela classe de Filosofia com os livros que importava da
França. Mas conheci Mestre Velloso quando ainda fazia o antigo
curso Científico. Foi num curso de Férias que ministrou,
no inicio de 1952, no Instituto de Educação. Eu havia
chegado a Belo Horizonte para tentar a vida, estudar e fazer o Exército.
Enquanto procurava um emprego resolvi aproveitar a parte da manhã
para fazer aquele curso que vira anunciado num jornal. Da minha pensão
de estudante pobre, em plena avenida Amazonas quase esquina com a Praça
7, caminhava ao longo da Afonso Pena aspirando o doce aroma que vinha
do Parque naquelas belas manhãs, então, belorizontinas.
O Instituto de Educação, imponente em suas colunas dóricas,
foi, para mim o que deve Ter sido a ágora de Atenas para os amigos
de Sócrates. Ali entrava experimentando grande felicidade
e na expectativa que os problemas do sentido da vida, da verdade, do bem
e do mal, estavam encontrando um encaminhamento. Era preciso chegar
antes das sete horas. A sala estava sempre lotada e os melhores lugares
eram disputados pelos alunos. No fundo, ocupando quase toda a mesa
com o seu corpo gigantesco, Mestre Velloso impunha uma presença
muito forte que nunca mais percebi em outros professores. O que logo
se destacava era sua vasta cabeleira, algo desorganizada, revolta e a voz
poderosa. A eloquência com que ministrava suas lições
ia num crescendo para terminar num clímax que a todos encantava.
Os seus olhos quase não eram vistos. Grossas lentes, marrons
ou verdes, os ocultavam da nossa curiosidade. No rosto moreno, a
boca e os lábios compunham uma máscara indecifrável.
Nas palavras deixava transparecer uma ironia apenas sugerida.
Assim procedendo ele nos fazia participar de um diálogo fantástico
e nos fazia crer que éramos mais inteligentes e cultos do que realmente
éramos. O tempo corria célere e o final da aula chegava
para o desgosto de todos nós. O Mestre nos fizera conviver,
quase como familiares, com Sócrates ou Platão ou Aristóteles
e despertara em nós toda antipatia do mundo pelas Xantipas que não
entendiam a missão do filósofo. O real, o que era afinal?
Belo Horizonte era Belo Horizonte ou Belo Horizonte era Atenas? E
com os passos medidos, olhos cheios do azul, eu voltava, sem pressa, para
o meu dia a dia. À noite, no quarto acanhado que compartilhava
com um camelô, abria, cioso, o meu Leonel Franca e tentava,
pelo estudo, recuperar e fixar o que fora ensinado naquele dia.
Mas como o estudo era árido. A informação objetiva,
segura e fria de Franca não substituía todo o deslumbramento
que Mestre Velloso havia criado em mim com sua exposição.
Ali, no Instituto de Educação, bem antes de terminar o meu
curso Científico, resolvi abraçar a Filosofia. Queria
participar daquele grupo de homens que vieram ao mundo para tentar compreender
o sentido da Vida e do Universo, e, aos quais, não seduzia a busca
de riquezas, do poder ou viver para satisfazer suas paixões.
A Filosofia seria o meu penacho.
Dois anos depois entrei, finalmente, no Curso de Filosofia para ser aluno
de Mestre Velloso. Nas aulas pude então, perceber todo o espírito,
toda a ironia, ora sutil ou sardônica, com que Mestre Velloso flagelava
os apedeutas e aqueles que traiam o espírito do “clerc”. Não
era por acaso que um dos seus textos e leitura obrigatória era o
Le Trahison des Clercs, de Julien Benda. Suas aulas
eram dadas, preferencialmente, aos sábados, toda tarde. Lá
pelas 18 horas íamos, a seu convite, bebericar um chope no Alpino,
numa situação descontraída e livre onde ele nos colocava
informado da política universitária e de acontecimentos culturais
de repercussão mundial. Sentia-me, como outros colegas, como pagens
daquela confraria cujos cavaleiros já sagrados pelo estudo e dedicação
ao Mestre eram Morse Belém Teixeira, da Sociologia; Amaro Xisto
de Queiroz, da História e Luis Bicalho, filósofo e comunista
histórico.
Como outros alunos seus, o Mestre obrigou-me a estudar uma língua
estrangeira. Desejava que dominasse o alemão para ler Kant
no original. Não passei, contudo, do francês, das leituras
de Descartes, Montaigne e Sartre. A leitura do Discours de Descartes,
na edição comentada de Adam Tannery, era obrigatória.
Seus artigos eram publicados pela revista Kriterion, que existe até
hoje, e que foi no Brasil, durante muitos anos, a única revista
de Filosofia publicada com regularidade. Era comum que nos mandasse
procurar o Teobaldo, secretário da revista, que já fora instruído
para nos dar um exemplar de Kriterion sem nada cobrar. Tudo isto
acontecia numa Belo Horizonte que vivia um período de grande agitação
cultural e ideológica. A capital de Minas Gerais deixava de
ser provinciana e ganhava em cosmopolitismo. Foi a época da
criação do Teatro Universitário com o diretor italiano
Giustino Marzano; da Ação Católica e da influência
de Jacques Maritain sobre os pensadores católicos, e dos comunistas
do Partidão que exibiam no restaurante universitário os alfinetes
“made in URSS” com a foice e o martelo. Do lado da Literatura surgia
a estrela de Heitor Martins que fez traduções de Boris Pasternack,
o grande dissidente russo. Curiosamente era uma época de aberturas,
de diálogo, do Julião com suas Ligas Camponesas. Um
comunista que se prezava conhecia bem o seu Marx, Lênin e Stálin
e sem nenhuma arrogância procurava converter seus colegas universitários
para o Partido. Mestre Velloso tudo isto acompanhava à distância.
Hoje, penso que ele talvez cultivasse aquele “pathos da distância”
de que nos fala Nietzsche. Nunca, contudo, nenhum professor foi mais
próximo de nós. Acredito que dele herdei um grande
e desinteressado amor à Cultura e à Filosofia. Herdei,
finalmente, um espírito livre que só pode nascer da crítica.
Como sua enfermidade foi longa e penosa a morte veio como uma libertação.
Sei que finalmente, na sua ironia, ele poderia me pedir num fantástico
diálogo post mortem que eu sacrificasse por ele um galo a Esculápio.
(Ver o sentido deste pedido em Platão, Phedon, Ed. G. Budé).
Minha fé católica me impõe o suave dever da oração
e uma visita ao seu túmulo. Por tudo isto é que, a
partir de agora, Belo Horizonte estará insistentemente sussurrando
aos meus ouvido:
“Por que não vais a Belo Horizonte? Volta lá.
Anda! Volta lá, volta já.” ( Carlos Drummond de Andrade,
Triste Horizonte)