Uma vida, várias histórias
Fabiana de Castilho
1º capítulo
Quando olho as fotos no álbum de recordações da família, não consigo me reconhecer naquela criança de sorriso enigmático, olhar penetrante e vivaz que parecia ter tanto prazer e força interna. Comparo as fotos com uma imagem refletida no espelho e o que posso ver agora, alem dos mesmos olhos verdes e cabelos castanhos, e o reflexo de um rosto apagado, uma alma que vaga dentro de um corpo estranho, por um mundo desconhecido, em busca de uma paz que foi perdida há muito tempo. A menina das fotos parecia tão teimosa, persistente, correndo em direção de seus sonhos, pulando os obstáculos, caindo e levantando com a mesma força, com a mesma coragem. Gritando e lutando pela vida. Mas se somos a mesma pessoa, acho que pouca coisa restou da garota. A força já não e mais a mesma, os ombros um pouco arcados começam a demonstrar o cansaço da alma pela vida. Mas parece... não tenho certeza, que nos olhos verdes, a mesma força ainda brilha.
Minha mãe ficou grávida de seu primeiro filho aos vinte anos. Aparentemente normal,visto que muitas mulheres engravidam ainda na adolescência. O que talvez não tenha sido normal foram as circunstancias em que se desenvolveu esta gravidez. Casada a aproximadamente oito meses e ainda se adaptando a nova vida, ela se viu as voltas com um duro diagnostico medico: A senhora tem um problema que faz com que seu útero diminua de tamanho ano apos ano. Ser'a muito difícil gerar um bebe se decidir esperar mais tempo. Ou engravida agora ou não poderá ser mãe........ Foi este o diagnóstico que ela ouviu.
Meu pai já havia feito seus planos. Filhos. Era o que ele mais queria e sua escolha já estava feita: -Tem que ser uma menina. Ela também fizera seus planos com relação a ficar grávida. Era algo que queria, mas não para agora. Primeiro precisava desfrutar um pouco mais de sua liberdade, redirecionar suas metas. Eram muitas as possibilidades de fazer coisas novas e diferentes, de correr atrás de sonhos outrora proibidos de serem realizados por um pai autoritário e rude. E agora, casada, tinha tantas possibilidades em suas mãos, caminhos novos a serem trilhados e que foram bruscamente interrompidos pelas palavras duras e taxativas de seu medico. Mas uma vez ela teria que esperar e não lhe restou outra alternativa, se não fazer o que "todos" desejavam, não importando o que sentia. E quatro meses mais tarde ela estava grávida.
Foi um período bastante difícil. Seus pais pensavam em divorcio e sua mãe freqüentemente necessitava de internações em hospitais psiquiátricos para tratamento de quadros depressivos, situação esta que lhe era bastante familiar e que lhe acompanhava desde sua infância. Alem de tudo isso, ainda carregava o peso de estar vivendo uma gravidez de alto risco. Não era um quadro muito animador e os quatro primeiros meses foram vividos, quase que integralmente, em uma cama apos uma ameaça de aborto. Vários medicamentos foram administrados para assegurar o prosseguimento da gravidez e os enjôos se fizeram presentes até o sétimo mês.
Dizem os especialistas que estes enjôos são normais até o quarto mês e que após este período são vistos, assim como as ameaças de aborto, como uma forma de expulsar a criança de seu corpo. Seria, digamos assim, uma alternativa socialmente aceita para interromper uma gravidez que não estava nos planos e que inconscientemente sempre fora rejeitada.
Divagações a parte, o fato e que nove meses mais tarde nascera a menininha que papai tanto sonhava e a princesinha tinha todo um reino para brilhar. E segundo contam, brilhou. Mas apesar de tudo, não tenho muitas recordações de minha infância, e isto e um tanto quanto estranho. Todos dizem ter sido muito bonita e cheia de alegrias. Mas não posso falar muito do que não tenho certeza.
Lembro, sim, de um pai bastante zeloso e de uma mãe distante, que nunca quis ou nunca soube como mostrar seu afeto. Não que eu queira justificar, mas talvez este tenha sido o motivo de meu comportamento por tanto tempo. Eu sempre admirei e sonhei ser como ela. Não sentia o mesmo de sua parte. Ao contrario, ano apos ano ela parecia se tornar cada vez mais distante, o que piorou com o nascimento de meu irmão. Ele se tornou o centro das atenções e motivo de orgulho de minha mãe. Um modelo a ser seguido. Pouco a pouco, meu pai também foi se tornando distante e eu passei a culpá-la por isto. Acho que a princesinha começava a perder seu trono.
Precisava encontrar uma forma de reaver meu lugar na família. Não podia ser o exemplo de boa filha, aluna esperta e inteligente. Este era o posto de meu irmão. Passei a ser a garota rebelde, que se envolvia em brigas, que tirava notas baixas e que só dava desgosto a todos. Funcionou e muito bem. Minha mãe falava em mim e eu comecei a existir para ela. Bem ou mal, mas existia. Só que continuava me sentindo vazia. Comecei a andar com pessoas nada convencionais e a me envolver com drogas. Todos pareciam ter desistido de mim. Até eu. O que fazia ou deixava de fazer parecia não ter importância. Uma vez ou outra brigávamos e o motivo era sempre meu irmão. Achava que havia encontrado a forma perfeita de ferir a todos. Mas, na verdade, encontrei a forma perfeita de ferir a mim mesma. Só que percebi isto muito tarde. A fama de garota fácil corria de boca em boca e não importava o que podia dizer, só piorava a situação.
De fácil passei a ser vista como lésbica, imagem que me acompanhou por um bom tempo, além da fama de drogada. Parei de me importar e comecei a agir como as pessoas esperavam. Ficava fora de casa até altas horas e não dava mais satisfação de meus atos. Fui vivendo assim, todos os dias de minha vida. Arrumei um emprego em uma loja de adolescentes em um shopping e tudo parecia perfeito. Até a festa que mudaria toda esta situação.
Todos estavam muito doidos. Musica, drogas, bebida. Era uma combinação perfeita. Uma amiga começou a passar mal. Ela disse que precisava de ajuda, mas não podia fazer nada. Ela caiu e começou a se debater. Algumas pessoas vieram em seu socorro. Ela foi levada para o hospital. Estava usando heroína e não resistiu. Resolvi parar enquanto podia. Me afastei do grupo. Não tive mais noticias de ninguém.
Estava decidida a mudar de vida e voltar ao posto
de filha. Só que precisava descobrir como. Optei pela posição
de tadinha, doentinha e que precisava de cuidados. Funcionou novamente
e vivi assim por um bom tempo. Até quando precisei encarar o fato
de estar crescendo. Talvez meus relacionamentos tenham me ajudado um pouco...