CM - O Futuro de uma ilusão
Marta Rolim

                            Capítulo Um

PRELÚDIO PANORÂMICO

Século XXI

Ano 2000-2060

Asimov estava certo: a integração corpo-máquina deu-se mais rapidamente do que supúnhamos. Afinal, as pessoas preferiam um órgão eletrônico suprindo suas deficiências orgânicas a um implante de tecido provindo de suínos e símios, ou de qualquer outro animal, não raramente tido como impuro e inferior. As máquinas, ao contrário, quase sempre exibiram uma irrepreensível imagem de velocidade e eficiência, de limpeza, de progresso. Um homem acoplado a uma máquina não somente era um homem curado de suas enfermidades e deficiências, como era um homem mais perfeito e capaz. E quem podia duvidar disso? As próteses velozmente superaram em muito os órgãos naturais e passaram a ser chamadas simplesmente OE - Órgãos Eletrônicos.

Foi então que os amputados começaram a obter vantagens no mercado de trabalho. Um homem sem os dois membros inferiores, que em outras épocas fora considerado incapaz para muitas atividades, agora era mais hábil e forte do que qualquer outro homem normal. Embora as atividades no mercado de trabalho raramente exigissem força física, os homens com OE passaram a ser preferidos, em detrimento dos homens normais. E por normal se entenda aquilo que é comum ou corriqueiro numa dada população, num dado período de tempo, sendo que àquela época, ainda era normal ter um corpo inteiramente orgânico.

Assim como as pessoas no passado, em geral, preferiam uma Ferrari ou uma Mercedez a um carro popular, assim os empresários passaram a preferir os portadores de OE, devido a exuberância e eficiência de suas partes artificiais. Dessa forma, um diretor ou um executivo, que tivesse um membro ou órgãos eletrônico, aumentava dramaticamente seu prestígio entre os demais colegas. Era uma questão de status social, uma questão de poder. Qualquer que fosse o órgão acoplado, ele possibilitava ao portador excepcional habilidade física. Em se tratando dos membros superiores, um sujeito podia facilmente erguer o peso do próprio corpo centenas de vezes, sem nenhum sinal de cansaço; em se tratando dos membros inferiores, um sujeito poderia subir inúmeros lances de escada, a mesma velocidade de um moderno elevador, sem nenhuma evidência de desgaste físico. Em se tratando de órgão interno, como o pulmão, o sujeito adquiria incrível capacidade, no caso a respiratória; podendo ficar até duas horas em baixo d’água, em plena atividade laboral ou esportiva, sem necessidade de novo suprimento de ar. Esse poder fantástico, mesmo que não utilizado propriamente em profissões que demandavam força e resistência, era invejado pelos homens normais, que reconheciam na capacidade extraordinária dos portadores de OE sua própria condição de repentina inferioridade e perda de prestígio. Da noite para o dia, os que eram tidos como deficientes se tornaram poderosos e os que eram tidos como normais, se tornaram fracos e desqualificados.

Os ricos da sociedade começaram a solicitar aos médicos o acoplamento de OE, mesmo não sofrendo de deficiência alguma. Houve um alvoroço na classe médica devido aos aspectos éticos envolvidos, porém, alguns cirurgiões, antevendo um mercado novo e promissor, não hesitaram e braços e pernas sãos principiaram a ser amputados para que os órgãos eletrônicos tomassem os seus lugares. Foi assim que o considerado normal teve seu padrão alterado e em poucos anos o normal, o comum, passou a ser o indivíduo portador de pelo menos um Órgão Eletrônico.

Para as mulheres, as próteses eletrônicas não eram bem-vindas, pois as próteses primavam pela eficiência e pela força, mas praticamente desconsideram aspectos estéticos, e tão pouco valorizavam a sensibilidade tátil e corpórea. Mas a indústria não tardou a dar-se conta do nicho a ser explorado e buscou desenvolver OE que salientassem a beleza feminina e a sensibilidade corporal. Logo as mulheres também se viram seduzidas por próteses eletrônicas siliconadas, encantadoras e impecáveis, que não só valorizavam o físico da portadora, como aumentavam suas sensações corpóreas prazerosas por meio de um fluxo elétro-químico que simulava a ação de certos neurotransmissores cerebrais, gerando prazer ao menor estímulo cutâneo. As mulheres que resistiram um pouco mais ao implante das próteses se viram sem ter como competir com os seios perfeitos, as pernas sedosas - sem qualquer sinal de celulite, estrias, manchas, varizes - que as portadoras orgulhosamente exibiam, tal! a qualidade alcançada. Assim, o público feminino também se viu irresistivelmente atraído pelas incríveis possibilidades que os OE ofereciam.

Em menos de uma década, os OE foram disseminados pelos cinco continentes, tornando-se tão populares quanto os veículos automotores do século XX.

Foi o princípio do SEI - Salto Evolutivo Induzido. As próteses foram ganhando cada vez mais acessórios importantes e subfunções. Agendas e calculadoras foram os primeiros acessórios a agradar aos clientes, que já não eram chamados de portadores de OE pelos lojistas e comerciantes, mas simplesmente de clientes especiais. Depois vieram o telefone, o microcomputador, os games, o rádio, a televisão, todos acoplados e inseridos nos OE. Esses acessórios, acrescentados ergonomicamente às próteses, aumentavam ainda mais o diferencial entre os sujeitos portadores de OE e os não portadores. Os acoplados às próteses foram ganhando capacidades cada vez mais sofisticadas.

Um vendedor, consultando um mini monitor presente em seu braço eletrônico, podia facilmente conectar-se à Internet e consultar na bolsa de valores a cotação de mercadorias; o valor atual das ações de sua firma; os preços praticados pela concorrência e suas promoções; o estoque disponível em sua loja; a variação cambial; financiamentos; taxas de juros; táticas de vendas, etc. Tudo de forma extremamente rápida e a qualquer momento, literalmente ao alcance dos dedos e diante do cliente. Tal agilidade era aplicável a qualquer ramo profissional desejado. Em se tratando de um médico, ao invés de um vendedor, simplesmente a comunicação se dava direcionada para hospitais, bancos de sangue, tele-exames, teleconferências, transmissão de procedimentos cirúrgicos ao vivo, etc. Um profissional não acoplado a um OE, dificilmente desenvolvia a mesma agilidade de ação, decisão e negociação, especialmente se o atendimento era presencial, diante do cliente. Tal revolução no modo de comunicação e consulta a informações úteis, incorporados ao físico do portador de OE, era admirável. Entretanto, a verdadeira revolução ainda estava por vir.

Nesse ínterim, as três leis da robótica de Isaac Asimov foram adaptadas para a nova realidade de humanos acoplados à maquinas, ficando assim constituídas:

1) Um portador de órgão eletrônico (OE) não pode ferir um ser humano usando suas capacidades especiais ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2) Um portador de órgão eletrônico (OE) deve obedecer as leis humanas vigentes em seu país, exceto nos casos em que tais leis contrariem a Primeira Lei.

3) Um portador de órgão eletrônico deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e Segunda Leis.

As três Leis foram gravadas nos OE, que monitoravam as ações do portador e denunciavam automaticamente qualquer infração grave. O infrator de tais leis de segurança era punido não somente com a perda da liberdade, mas com a perda de seus órgãos eletrônicos. Ou, se a retirada de dado órgão fosse resultar em morte, o portador infrator era punido com a substituição do OE plenamente eficiente por um OE que limitava a capacidade de ação, tornando o portador novamente um indivíduo quase meramente biológico, de capacidade reduzida.

A Lei Zero de Asimov também foi utilizada qual resumo adaptado das outras três leis, ficando assim enunciada:

0) Um portador de órgão eletrônico não pode causar mal a humanidade utilizando-se de suas capacidades especiais ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal, nem permitir que ela própria o faça.

A Lei Zero acentuava um caráter protetor que os portadores de OE deveriam cultivar. Haviam poucos infratores das Leis, pois a vigilância e a punição eram severas. O mundo estava em pleno desenvolvimento e prosperidade. Com o avanço tecnológico muitos sofrimentos e males da humanidade estavam desaparecendo e, mais do que isso, muitas limitações estavam sendo ultrapassadas com gloriosa vitória. O progresso não tinha fim. É bem verdade que nos países subdesenvolvidos apenas uma elite econômica chegava a desfrutar dos maravilhosos OE, mas, ainda assim, estes constituíam alguns milhões de pessoas. Outros tantos milhões apenas sonhavam acoplar um órgão eletrônico, mas não dispunham de recursos para tal, assim como no passado multidões sonhavam em adquirir um automóvel, mas somente uma certa camada mais privilegiada da população conseguia realmente obter um. A situação se tornava mais dramática quando um sujeito pobre adoecia e necessitava urgentemente de um específico acoplamento. Nem sempre conseguia a tempo o OE que lhe resgataria a vida e a plena saúde. O governo somente garantia acoplamentos para os deficientes naturais, ou de nascença, e mesmo assim havia uma lista de espera para receber os OE. Também, sempre haviam os sujeitos que tentavam fraudar o esquema governamental, providenciando uma automutilação e depois se inscrevendo no programa de fornecimento de órgãos eletrônicos como se fosse um portador de deficiência natural. Às vezes conseguiam a tão desejada prótese, mas às vezes eram flagrados pelos inspetores especialistas, que diagnosticavam a terrível fraude e o infeliz entrava numa fila de infratores que aguardavam atendimento, mas tal fila não andava nunca porque a prioridade era para os deficientes naturais e não para os automutiladores. Ficavam esperando eternamente pelo almejado OE e morriam sem recebê-lo.

Esse era o lado triste do avanço tecnológico, mas a paz e a prosperidade global superavam em muito as tragédias individuais. Mesmo nos países subdesenvolvidos não havia deficiente natural que deixasse de receber sua prótese, com todas as magníficas vantagens que ela propiciava, salvo nos casos de emergência, quando a demanda podia não ser prontamente atendida. Os eventuais deficientes por causas acidentais eram assistidos por seguros de vida obrigatórios, que após investigação das circunstâncias do acidente, cobria todos os custos para acoplamento de OE. O mundo era promissor, quase perfeito, mas o futuro mostraria logo a sua terrível face oculta.
 
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