CM - O Futuro de uma ilusão
        Marta Rolim

 
        Capítulo Quatro
Alguém vigiava. Na filmagem holográfica que o gerenciador da sala de reuniões fazia, aparecia um grupo de seis pessoas sentadas em círculo, em suas poltronas acolchoadas: era a equipe de genetrônica do Centro Federal de Pesquisa OE. Um homem falava ao grupo. Os lábios das pessoas na sala apareciam distorcidos por sinal eletrônico, de modo que não se podia tentar ver o que diziam. Um rapaz olhava atentamente para a filmagem. Ele conseguira invadir, utilizando um minimicro, o sistema de filmagens do CFP-OE. E agora estava no aposento de comando das filmagens, diante do gerenciador-mor.

— Descriptografar imagem! — ordenou o jovem Vando.

— Ordem não autorizada. — a voz suave e feminina do gerenciador-mor ecoou no aposento.

Vando sorriu. Sacou uma carteira de cigarros de sua bolsa (que o acompanhava pairando no ar e seguindo-o por toda parte, carregando seus objetos pessoais) e acendeu o fumo mentolado. Tragou profundamente. Dirigiu-se até o gerenciador-mor e soprou fumaça em seus circuitos.

— Descriptografar imagem! — ordenou enfaticamente.

— Ordem não autorizada. — a mesma voz suave do gerenciador se fez ouvir, em tom inalterado.

— Você não está protegendo os humanos como deveria — disse Vando — seus circuitos estão queimando, você não está cumprindo as ordens corretamente. Execute a ordem imediatamente, prioridade zero!

— Não confere, meus circuitos estão intactos.

— Seus circuitos estão queimando, verifique os sensores de fumaça — Vando ordenava, enquanto tragava calmamente do cigarro e continuava a exalar a fumaça nos circuitos do computador.

— Fumaça detectada. Origem indefinida... — o gerenciador estava confuso com as informações desencontradas. Seu checklist dizia que estava em perfeito funcionamento, mas os sensores acusavam presença de fumaça em sua unidade central.

— Você está queimando. Gerenciador, libere a imagem, prioridade zero.

Alguns segundos, que pareciam intermináveis para Vando, se passaram com o gerenciador silente.

— Imagem descriptografada. Efetuando autodesligamento de segurança em cinco segundos. Cinco, quatro, três...

— Interrompa a contagem, o fogo acabou, fumaça dissipando.

— Contagem para autodesligamento cancelada.

Vando deu pulos de alegria! A imagem no monitor estava nítida. Agora podia ver a reunião da equipe de genetrônica.

— Executar leitura labial! - o jovem estava triunfante.

Imediatamente fez-se ouvir a voz de Marcos nas caixas de som. O gerente-mor supria voz à imagem e traduzia simultaneamente o que era dito na sala de reunião:

— Senhores, estamos vivendo uma epidemia. Ela está se alastrando rapidamente e em breve deve chegar ao Brasil. Ao que sabemos, jovens do mundo inteiro estão apresentando conduta violenta de forma totalmente anormal. Estão atacando, destruindo, roubando, ferindo e matando por toda a parte. Todos esse jovens são portadores de UEC, o que nos responsabiliza diretamente. Senhores, alguma coisa deu errado nos acoplamentos de UEC! As leis de Asimov foram quebradas e nada os está controlando.

— Marcos, você está dizendo que os implantes estão produzindo conduta violenta? — perguntei, incrédula.

— Sim, embora não tenhamos dados suficientes para uma afirmativa segura. Considerando os indícios, os implantados com UEC estão sofrendo algum tipo de síndrome...

— Eu me sinto tão bem... — Carla falou triste e baixinho, lamentando-se para si mesma.

— Bem, Carla, talvez nada aconteça a você, não sabemos, estamos diante de um fenômeno novo. O que sabemos, concretamente, é que muitos acoplados estão agindo como sociopatas — disse Marcos, cheio de uma doçura que eu desconhecia em sua voz — e que provavelmente algumas unidades eletrônicas cerebrais estão provocando o problema. Quero você conosco nessa missão e quero que nos ajude a encontrar a solução.

— Eu farei o melhor que puder, senhor! — as palavras hábeis de nosso chefe de equipe haviam sido sábias. Carla concentrava-se agora, não em sua possível doença, mas no que poderia contribuir para ajudar a equipe.

— Ótimo Carla, precisamos de todos os esforços!

— Marcos, por favor, apresente os dados completos... — suplicou Roger, ansioso por mais esclarecimento.

— Pois não, era isso mesmo que pretendia fazer agora: "Tela" — ordenou Marcos.

O gerenciador exibiu uma tela holográfica no meio de nossa roda de cadeiras e passou a mostrar a mãe de um jovem falando com policiais diante de nós, como se testemunhássemos a cena.

— Foi horrível, polis! - a mãe contava para os policiais — Meu filho chegou em casa e simplesmente me disse que queria dinheiro. Estranhei de imediato seus modos, pois ele nunca falara naquele tom agressivo comigo. Respondi-lhe que meu chipmoney estava descarregado e que na verdade pretendia lhe pedir algum crédito emprestado. A reação dele foi completamente louca, polis! Me lançou contra a parede e disse que detestava pessoas medíocres como eu. Polis, eu vi, aquele rapaz não era o meu filho, era alguma outra criatura, mas não o meu Geraldo.

Assistimos a uma dezena de depoimentos e sentimos o clima terrível que cercava a síndrome. Os próprios pais estavam denunciando os filhos à polícia, percebendo que não poderiam dar conta de tão dramática situação.
 
 

Não muito distante dali, Vando sorria. Simplesmente achava graça do tema secreto da reunião da equipe de genetrônica. Então era disso que eles falavam? Sentia-se ótimo e não se assustava com a possibilidade de ficar agressivo e descomedido. Com o cérebro que adquirira poderia resolver qualquer problema. Sua mente era por demais brilhante para errar. Errar não era humano, pelo menos não para ele e seu colegas portadores de Unidades Eletrônicas Cerebrais. Como fora cego antes! Como fora estúpido! Agora ele podia ver Deus, porque ele era o próprio Deus. Vando voltou sua atenção novamente para a filmagem quando a voz do gerenciador-mor aumentou de volume.

— Senhores, prestem atenção, hoje a tarde chegarão dois pacientes afetados pela síndrome e quero todos aqui para iniciarmos imediatamente coleta de dados e pesquisa. Ainda não tivemos relato da doença no Brasil, mas como somos um dos maiores centros de estudo do mundo em OE, e como temos conhecimento profundo em genetrônica, vamos dar a nossa contribuição o melhor que pudermos. Um enorme desafio se apresenta e espero a dedicação integral de todos de nossa equipe.

Marcos encerrou a reunião com estas palavras. Tínhamos poucas horas livres antes da chegada dos pacientes alfa para nosso estudo da estranha síndrome, a síndrome Coração de Metal. Nenhum de nós, cientistas, costumava se deixar levar por apelidos fornecidos por populares, mas algo nos dizia que talvez o apelido não fosse um exagero.
 
 

Vando escutara atentamente as palavras finais do líder da equipe, Marcos, e ficara grandemente interessado nos dois pacientes que chegariam ao Centro. Precisava vê-los, e bem de perto.
 
 

 

« Voltar