CM - O Futuro de uma ilusão
        Marta Rolim

                            Capítulo Cinco

O aeromóvel bus chegou às quatorze horas. A recepção estava pronta e havíamos tomado várias providências, algumas questionáveis, mas não de todo. Marcos ordenara que recebêssemos os jovens em trajes esterilizados e com proteção máxima anticontaminação. O motivo apontando para tal precaução drástica era o de que desconhecíamos com o que estávamos lidando. Nossa equipe esperou os jovens usando estes trajes, enquanto o resto dos profissionais do Centro permaneceu com seus trajes cotidianos. Muitos riram da atitude de Marcos, entretanto, não era à toa que ele se tornara um profissional altamente respeitado. Cuidava de cada detalhe das etapas de estudo e pesquisa, meticulosa e arrojadamente investindo nos estudos empíricos. Essa combinação, de zelosa dedicação com confiança audaz em suas próprias idéias, já lhe rendera reconhecimento e fama. Ele pouco se importava se os colegas riam dele, mas para nós, integrantes da equipe, era difícil obedecer passivamente a certas diretrizes que Marcos ditava. Em todo caso, obedecíamos, pois nossa confiança superava as resistências em obedecê-lo.

Os rapazes, dois europeus, chegaram, contidos nas bolhas de campo de força e de olhos vendados. Naturalmente, repudiamos esse tratamento dispensado aos jovens, especialmente o das vendas nos olhos, mas soubemos que era absolutamente necessário que ficassem vendados, pois os mesmos tinham um quociente intelectual altíssimo, muito além do compreensível para nós e caso não tapássemos seus olhos, em poucos minutos arquitetariam uma forma de escapar do aeromóvel, enganando os poli como quem rouba a crianças. As bolhas de campo de força permitiam todos os movimentos normais, contudo, estavam programadas para impedir gestos violentos, ajustando-se automaticamente ao corpo do sujeito, de forma tal que impediam a violência como se um braço fortíssimo segurasse o infrator. Também, em caso de necessidade, imobilizavam o sujeito completamente, dando o que chamávamos de "abraço de urso", e para tanto, bastava que alguém dissesse "imobilizar" ou "segurar" para que a bolha agisse, num átimo de segundo.

De um canto do saguão principal de recepção, Vando observava a chegada dos rapazes. Afinal os humanos não eram tão tolos. A venda nos olhos era um forte limitante para a ação.

Conduzimos os jovens doentes para a sala de cirurgia. O plano envolvia anestesiá-los para exame primário, com coleta de fluidos corporais, e exame de ultrafilmografia (mini cápsula filmadora introduzida no organismo e conduzida aos órgãos desejados pela via venosa e arterial, registrando a paisagem corporal interna e detectando quaisquer anomalias). Toda essa situação era nova para nós. Absolutamente, não era rotineiro precisar trazer à força pacientes ao Centro para exames e fugia totalmente às regras, tratá-los como prisioneiros, entretanto, aquela não era uma situação usual, os próprios pais reconheciam que algo muito grave estava ocorrendo e autorizavam quaisquer procedimentos médicos, na esperança de terem seus filhos de volta.

Roger - o anestesista de nossa equipe iniciou o procedimento de sedação geral. Anestesiar portadores de UEC era particularmente difícil, pois envolvia não somente reduzir as atividades biológicas do Sistema Nervoso Central, como reduzir as atividades eletrônicas da central de processamento das UEC (Unidades Eletrônicas Cerebrais). Ou seja, Roger precisava fazer dormir não somente a parte orgânica do organismo dos jovens, mas também a parte eletrônica. Caso ele anestesiasse somente a parte orgânica, os jovens permaneceriam em atividade com as partes eletrônicas e isso simplesmente poderia impedir exames e cirurgias, uma vez que os pacientes estariam parcialmente acordados. Os procedimentos para anestesiar envolviam profundo domínio técnico da genetrônica e da medicina tradicional.

Chamamos os jovens de CM10 e CM20, alusão a Coração de Metal 10 e Coração de Metal 20. Essa forma de identificação era bastante impessoal, porém, precisávamos proteger a identidade dos rapazes e como a síndrome vinha sendo chamada de coração de metal...

— Começando levantamento dos acoplamentos OE presentes no corpo de CM10 — explicou Roger, enquanto o gerenciador da sala de cirurgia iniciava uma varredura superficial do corpo do rapaz.

— Órgãos eletrônicos encontrados: Os membros inferiores; os membros superiores; o coração e uma UEC para multiplicação neural. — citou o gerenciador.

— Vejam só, o rapaz é fã de acoplamentos! Bem, pessoal, com toda essa energia acumulada em baterias eternas, não teremos muito tempo para examinar o rapaz, ele vai acordar logo. — Roger estava particularmente impressionado com o moço.

— Quanto tempo temos? — perguntei.

— Trinta minutos, não mais do que isso.

— Ok! — falou Marcos — vamos ser práticos. Carla, colete os fluidos de sangue e urina; Hélio, colete lágrimas, suor e saliva; Nei, colete amostra de fezes; Rachel, inicie a ultrafilmografia, introduza a mini cápsula pela carótida.

Logo tínhamos amostras de todos os fluidos corporais do paciente CM10 e a ultrafilmografia estava em andamento. Após vinte e sete minutos, como previsto por Roger, o jovem começou a dar sinais de atividade eletrônica e interrompemos os exames. Ordenamos a mini cápsula que se dirigisse aos intestinos, de forma que fosse eliminada do organismo do paciente. Depois foi a vez de CM20.

CM20 tinha apenas um acoplamento OE, como eu mesma, o do braço esquerdo, e além disso, uma UEC para expansão da memória. Utilizava diversos softwares em sua UEC, voltados para sua atividade profissional preferida: designer. Pelo tipo de software que o sujeito escolhia rodar em sua Unidade Eletrônica Cerebral, sabíamos o que mais valorizava e apreciava na vida. Evidentemente, CM20 era um rapaz concentrado nos estudos e dedicado a profissão que escolhera. Pudemos trabalhar mais tranqüilamente com CM20 devido a sua anestesia ter uma durabilidade maior, já que dispunha de um só OE e menos baterias eternas abastecendo o corpo.

Os resultados de nossa análise inicial foram os seguintes:

========================= CM10 ===================================CM20====

sangue ================= sem alterações ===========================sem alterações

urina ================== sem alterações ===========================sem alterações

suor ================== sem alterações ============================sem alterações
 
 

======================== CM10 ====================================CM20====

saliva =================sem alterações ============================sem alterações

lágrimas ===============sem alterações ============================sem alterações

fezes ================= sem alterações ============================sem alterações

ultrafilmografia ========= sem alterações ============================sem alterações

softwares UEC === jogos de guerra, adestramento de animais ===============designer e lazer

OE ============ membros s. e inferiores. bomba cardíaca ================braço esquerdo

UEC ===========para multiplicação neural ======================== para aumento de memória

Baterias eternas ======== cinco baterias ============================= uma bateria

Não descobríramos nada de errado com os jovens. Obviamente, eles tinham interesses diferentes e até diria que não tinham nada em comum um com o outro, salvo o fato de serem portadores de UEC. Enquanto CM10 parecia utilizar seus órgãos eletrônicos para ser mais forte e combativo, talvez almejando o treinamento militar, CM20 parecia querer utilizar seu único OE para desenhar com perfeição, já que para um designer o desenho é fundamental, se não sempre, na maioria das vezes. Sem dúvida eram rapazes bastante diferentes... antes da síndrome.

A próxima etapa consistia em fazer uma entrevista com cada jovem e nisso Nei era o especialista. Envolvia fazer uma avaliação do estado de saúde mental dos jovens, mas não um diagnóstico. Nei recebera das mãos de Marcos um documento lacrado com informações do Centro Europeu de Pesquisas OE. O documento não podia ser aberto à equipe porque somente os psiconeurotrons estavam autorizados a saber dados tão íntimos. Os psiconeurotrons, como o nome em parte já diz, eram profissionais altamente especializados no comportamento humano a partir do advento dos OE e das UEC. Entendiam particularmente da interação da psique humana associada ao eletrônico. Esta também era minha especialidade. Juntos eu e Nei estudávamos o SEI — Salto Evolutivo Induzido — e já escrevêramos diversas obras a respeito das mudanças cognitivas e psicológicas a partir dos acoplamentos de UEC.

O documento dizia que os jovens eram extremamente inteligentes e altamente perigosos. Manipuladores e com personalidade sociopata. Agressivos, mas não necessariamente diretamente agressivos. Mais tarde eu entenderia vivamente estas palavras. O documento não continha nada muito diferente do que a mídia vinha anunciando nas últimas horas, sinal de que o Centro Europeu enfrentava a mesma dificuldade que vínhamos descobrindo: os exames e testes não acusavam alteração alguma. Certamente havia uma alteração tremenda em algum lugar, mas onde e por que?
 
 

 

« Voltar