CM - O Futuro de uma ilusão
        Marta Rolim

                            Capítulo Seis

CM10 foi levado a sala espelhada para entrevista após o deixarmos em paz por algumas horas, enquanto CM20 permaneceu em seu quarto, já sem a venda nos olhos, mas sob forte vigilância armada. Ambos ainda estavam contidos pelas bolhas de campo de força. Concluímos que não era produtivo querermos ser rápidos demais em nosso trabalho, precisávamos ter tempo para pensar sobre os resultados dos exames, sobre as estratégias e caminhos a tomar. Precisávamos pensar em todas as possibilidades e quais as mais promissoras em termos de pesquisa e estudo da insidiosa doença.

Na sala de espelhos, eu e Nei esperávamos o jovem CM10. Já havíamos providenciado a configuração de segurança da sala e mesmo assim, antes mesmo de sua chegada, eu já o temia, pelo simples fato de que CM10 possuía uma força descomunal nos braços e pernas-OE. Sem falar no coração, que não pararia de funcionar nem com uma dezena de tiros (já que possuía várias rotas alternativas para desvio do fluxo sangüíneo em caso de necessidade). Também, me preocupava ter de lidar com uma mente brilhante descontrolada, que não obedecia as Leis Adaptadas de Asimov. A situação era tanto inédita quanto assustadora. Nei estava calado, o que era habitual em sua pessoa. Não era de muita conversa e isso me deixava ainda mais tensa. Eu seria a entrevistadora presente na sala e Nei seria o entrevistador oculto, atrás da parede de espelhos. Nei se comunicaria comigo via um aparelho de escuta. Eu ouviria suas sugestões e poderia ou não aplicá-las.

CM10 entrou na sala e a porta foi selada. Esperei que ele sentasse à mesa, onde eu mesma estava acomodada, mas ele permaneceu em pé em atitude desafiadora. Percebi que precisaria ser clara com ele ou ficaríamos imobilizados por um jogo de rato e gato. Cabe dizer que nessa entrevista conversei com ele usando seu nome verdadeiro, mas na transcrição seu nome aparece como CM10.

— CM10, por favor, sente-se.

— Humm, eu tenho escolha?

— Não, você sabe que no momento não tem escolha.

— Você é sempre tão democrática, Doutora Rachel? — falou CM10 com um sorriso irônico, que mostraria ser a sua marca.

Ignorei a pergunta e olhei em seus olhos. Havia algo ali. Algo como um vazio e uma dor, uma dor torturante.

— CM10, preciso que me ajude a ajudá-lo. — falei docemente, sensibilizada pelo seu olhar. Enquanto CM10 parecia ficar muito concentrado em minhas palavras, como se captasse profundamente o efeito delas sobre si mesmo.

O rapaz caminhou até a cadeira e sentou-se à mesa. Estávamos frente à frente.

— Eu vou colaborar doutora, o que quer de mim?
 
 
 
 

Nesse ínterim, alguém acompanhava atentamente a entrevista. Vando estava na sala do gerenciador-mor de filmagens e usando novamente o artifício da fumaça, conseguira liberar a filmagem da sala de espelhos e escutava a conversa, fascinado. Ele entendia CM10 — ria sozinho — e como entendia CM10! Acompanharia a entrevista e depois esperaria o novo amigo na saída da sala de espelhos e eles se comunicariam, e ele já sabia como. O gerenciador prosseguia a leitura labial:

— Quero que você simplesmente me diga porque você acha que está aqui. — perguntei

— Bem, doutora Rachel, andei me metendo em algumas brigas e... o problema é que ganhei as brigas e daí todo mundo começou a ficar contra mim.

— Brigas, que brigas?

— Está bem... eu bati nos meus pais... foi isso. — o rapaz parecia triste.

De súbito, nossa conversa foi cortada por um agudo sinal de alerta que ecoava de meu braço. Olhei a mensagem de alerta no minivisor. Dizia que meus pulmões estavam ficando saturados de gás carbônico e orientava que eu buscasse um local arejado ou que me deitasse no chão, onde provavelmente o ar estaria melhor. Fiquei atordoada. Nei começou a gritar em meus ouvidos "saia já daí, saia já daí!". CM10 ria sem parar. "Imobilizar", falei, para que o campo de força contivesse CM10 e corri para a porta sentindo me faltarem as forças. "Abrir", falei já desfalecendo, e depois não me lembro de mais nada. Fui salva graças ao monitor paramédico inserido em meu braço-OE. Se eu não usasse esse programa que monitora sinais vitais e algumas alterações fisiológicas, estaria morta a essa hora. Por incrível que pareça, e apesar de toda a vigilância, o jovem CM10 conseguira inverter dois dutos que davam para a sala de espelhos, de modo que o duto de ar viciado e contaminado com  excesso de gás carbônico, fosse ali desembocado. Muito provavelmente não fizera isso sozinho, mas em parceria com CM20. O coração eletrônico de CM10 lhe garantia pelo menos mais quinze minutos de resistência a ausência de ar puro, isso porque o bombeamento eletrônico do sangue fornecia uma irrigação sangüínea mais eficiente e também porque seu corpo orgânico era constituído apenas de tronco e cabeça, fazendo com que o suprimento de ar dos pulmões durasse mais. Ele inspirava uma vez a cada três respirações minhas. Certamente CM10 sabia de tudo isso muito bem e respirara o menos possível desde que entrara na sala, poupando-se da contaminação por CO2. Foi então que vi o queria dizer o documento quando afirmava que a geração coração de metal era violenta, mas não necessariamente diretamente violenta.
 
 

Após me recuperar do susto, eu e Nei revimos a filmagem do encontro na sala de espelhos e simplesmente ratificamos a opinião geral de que tratava-se de um tipo de sociopatia, sem sombra de dúvida. O grau de manipulação das emoções e o uso da sedução para enganar eram evidentes. E CM10 era muito bom nisso, pois tanto eu quanto Nei chegáramos a acreditar em CM10, considerando sua expressão sincera até o momento em que fora revelado o seu plano de morte. Estava claro para nós que o rapaz não era assim antes do acoplamento de UEC, mas somente depois da cirurgia de implante começou a manifestar a síndrome que culminava num comportamento sociopata, até onde sabíamos. A fita de gravação revelou mais um dado preocupante. A cena da saída de CM10 da sala de espelhos, mostrava o jovem rindo copiosamente, entretanto, subitamente ele pareceu fixar o olhar num ponto além, e ainda rindo muito, começou a piscar os olhos de um jeito ritmado. Havia alguma coisa ali. Revi a cena dezenas de vezes até que finalmente compreendi. CM10 estava se comunicando com alguém e usava o código morse, piscando curta e pausadamente e compondo as frases. O outro com quem ele falava respondia e assim conversaram rapidamente. Reconstruí o diálogo, que deve ter sido mais ou menos assim:

— Oi, coração de metal! — alguém disse para CM10.

— Literalmente coração de metal — respondeu CM10, rindo muito.

— Quer sair dessa bolha? - ou do Centro Federal de Pesquisa-OE

— Claro, mas até que está sendo divertido ficar aqui dentro!

— Entrarei em contato.

— Espero, mas qual o seu nome?

O diálogo findava aí. É bem possível que a última pergunta feita por CM10 tenha sido respondida pelo interlocutor, porém, não temos como sabê-lo, uma vez que esse outro interlocutor não fora filmado piscando. O diálogo foi reconstruído a partir das respostas de CM10, sendo aproximadamente exato.

Quem poderia ter travado esse diálogo com CM10? CM20 estava contido, portanto não poderia ter sido ele. Era outra pessoa e não supunha quem fosse.

Repetimos a entrevista com CM20, mas tomamos o cuidado de não entrevistá-lo frente à frente. O entrevistamos via new-intranet (a Internet de uso interno dos pesquisadores do Centro Federal de Pesquisa-OE). Infelizmente CM20 mostrou sinais de que sofria do mesmo distúrbio de personalidade de CM10.

Dois dias depois das entrevistas e após pessoalmente ter gasto muitas horas na análise minuciosa das mesmas, apresentei os resultados a equipe, em nossa sala de reuniões. Mostrei o trecho da comunicação morse e como os rapazes eram capazes de simular emoções de forma primorosa, com um só objetivo, manipular aos "mesquinhos", como chamavam os não acoplados a UEC. Todos ficaram impressionados. Era como ouvir falar de um maremoto e depois deparar-se com o maremoto; havia uma diferença muito grande entre ouvir sobre algo perigoso e deparar-se diretamente com o perigo. A partir de meu relato na reunião, começamos a vislumbrar que entre os UEC havia uma comunicação que nos escapava a compreensão imediata. Enquanto nós estávamos acostumados a usar dados meios de comunicação já tradicionais, eles eram capazes de usar "n" outros meios, muito criativos, andando com o raciocínio sempre a nossa frente. O código morse estava extinto há muito, mas esses rapazes não só foram capazes de resgatá-lo como de usá-lo com pleno domínio. CM10 havia respondido prontamente a uma comunicação em código totalmente esquecido, iniciada por um interlocutor "x", com a mesma facilidade de quem conversa verbalizando. E eu só descobrira isso mediante árdua pesquisa. Era realmente impressionante. Decidimos que precisávamos tomar mais cuidados e redobrar nossa atenção para as configurações de segurança.

Foi então que o inferno começou. Simplesmente CM10 e CM20 conseguiram escapar de seus aposentos e inexplicavelmente das bolhas de campo de força. Os gerenciadores de serviços, que davam suporte a todas as nossas atividades, cotidianas e profissionais, das mais banais às mais complexas, pararam de reconhecer nossas vozes de comando. Nosso Centro Federal entrou em situação caótica. Em breve descobrimos que não era uma ocorrência isolada, no mundo inteiro acontecia o mesmo fenômeno, algo escatológico. A geração Coração de Metal tomava conta dos gerenciadores e dominava os sistemas que sustentavam a vida. Tornaram-se os senhores da guerra e não tinham dó e nem compaixão. Cada vez mais fortes, aliciavam, seduziam, subornavam e traíam, agregando uma crescente horda, tempestuosa e impulsiva. Nossa equipe de genetrônica manteve-se unida, exceto por Carla, que desapareceu, mas as câmeras de segurança a flagraram em fuga junto com os CM10 e 20. Vando ainda estava conosco, contudo, imaginava, aflita, qual de nós seria o próximo a sucumbir...
 
 

 

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