CM - O Futuro de uma ilusão
        Marta Rolim

                            Capítulo Sete

Vando estava conosco, aparentemente o mesmo rapaz que sempre fora. Marquei uma reunião secreta, mas deixei claro que Vando não poderia estar presente e simplesmente justifiquei tal medida dizendo que depois todos ficariam sabendo o motivo. Marcos me apoiou integralmente, ele apostava em mim e, pelo menos até o presente, eu era a única que descobrira algo relevante sobre a forma de funcionamento dos jovens Coração de Metal. Marquei nossa reunião para acontecer num sítio afastado que pertencia a minha família, mas que quase nunca era utilizado. Tratava-se de uma casa à moda antiga, sem gerenciador, primitiva e sem conforto. Vando já sabia que nos reuniríamos secretamente e eu desconfiava de que ele tentaria nos seguir. Por isso, fiz uma comunicação diferente dos meios tradicionais, usando o mesmo estilo dos acoplados à UEC. Escrevi em papel comestível, longe de qualquer câmera de filmagem, um bilhete personalizado para cada um dos integrantes da equipe e pedi que, assim que lessem o mesmo e memorizassem o conteúdo, o ingerissem, de modo a não permitir que ninguém roubasse a informação. Os bilhetes ficaram, basicamente, assim:

No lado externo do bilhete: Leia longe das câmeras (esse alerta constou em todos os bilhetes) Conteúdo: quinta-feira às doze horas no sítio situado no quadrante leste, L30L22.

Como a reunião seria feita a luz do dia e em pleno horário de almoço, esperava que despertasse menos atenção do que um deslocamento noturno. Pedi aos colegas que não viessem diretamente para o sítio, mas que saíssem mais cedo de casa e fossem visitar parentes, fazer compras e só então viessem para o sítio, observando se estavam sendo seguidos. Que buscassem ir a lugares onde os gerenciadores estivessem bastante ocupados com a demanda, de modo que fosse mais fácil o despiste.

Foi com ansiedade que esperei nossa equipe se reunir. Marcos iniciou a reunião na adega da casa, uma antiga construção onde se armazenavam bebidas alcóolicas e que parecia nos fornecer mais segurança e isolamento do mundo de gerenciadores lá fora, que agora só serviam para nos escravizar.

— Amigos, essa reunião é vital, talvez ela defina o resto de nossas vidas. Agora não somos mais apenas cientistas e pesquisadores, somos o que resta da humanidade. Precisamos estar mais unidos do que nunca se quisermos sobreviver - falou Marcos, com a voz embargada. Sabíamos que o que ele dizia era realidade — agora passo a palavra para Raquel que tem algo muito importante a nos dizer.

— Bem... a nossa situação está muito difícil. Os gerenciadores caíram no controle de pessoas doentes, sociopatas, psicopatas. Não temos a cura para esse mal, mas acho que temos um caminho promissor a seguir.

— Caminho promissor? Pelo amor de Deus, de onde você tirou isso Raquel? — interrompeu Roger.

— Por favor, Roger, deixe-me terminar. Como disse, acho que temos um caminho a seguir e penso que ele seja promissor, mas para isso precisamos nos libertar.

— Do que você está falando Raquel? — Marcos indagou — que história é essa?

— Ok, tentarei ser mais clara... não podemos lutar contra eles se estivermos com as mãos amarradas... Precisamos usar nossos OE para atacar, precisamos nos libertar da Lei Adaptada de Asimov. Precisamos capturar um deles e destrinchar o acoplamento, verificar cada detalhe da Unidade Eletrônica Cerebral até descobrirmos o que há de errado com elas. E temos de conseguir isso a qualquer custo, mesmo que seja preciso matar um deles.

— Você está louca? — gritou Nei - Você acha que podemos desobedecer as Leis?

— Esperem! — irrompeu Marcos — Esperem.... Raquel está parcialmente correta. Não queremos lutar contra os jovens CM, mas queremos ajudá-los a se curarem, queremos voltar a viver nossas vidas e não queremos ser escravos! Não podemos ajudá-los se estivermos com as mãos amarradas. E... também acho que talvez seja preciso usar da força para capturar pelo menos um deles e estudá-lo noite e dia, ser for preciso, até acabar com a maldição.

Todos concordamos que Vando era o jovem que seria mais facilmente capturado e levado para o sítio, onde instalaríamos um laboratório na adega. Embora Vando aparentemente não apresentasse sintomas, eu já aprendera a reconhecer as formas de manipulação emocional dos CM - Coração de Metal - e tinha certeza de que ele estava tão afetado pela doença quanto CM10 e 20. Ainda assim seria extremamente difícil capturá-lo, considerando o brilhantismo intelectual que tinha. Não podíamos querer disputar com ele habilidade mental porque ele simplesmente venceria, precisávamos agarrá-lo à força e nocauteá-lo. E depois o transportaríamos para o sítio. Precisávamos de força bruta. Hélio, especialista em OE de nossa equipe, se encarregaria de reprogramar nossos Órgãos Eletrônicos para que pudéssemos desobedecer as Leis sem pronta e automática denúncia ao gerenciadores.

No conjunto, tínhamos os seguintes OE disponíveis:

Marcos: os dois membros inferiores (perna direita e esquerda)

Rachel: o braço esquerdo

Roger: pulmões e braço direito

Nei: os dois membros superiores (braço direito e esquerdo)

Hélio: os dois membros inferiores e o ouvido direito.

Portando esses OE, libertados do cumprimento à Lei, nós podíamos capturar Vando com relativa facilidade, mas nenhum de nós subestimava sua mente.

Marcos elaborou uma estratégia. Não iríamos atrás de Vando, mas deixaríamos que ele viesse até nós. Esperaríamos que ele nos procurasse e quando isso acontecesse, nós estaríamos juntos para pegá-lo.

Depois desse acordo tácito entre nós, cada qual retirou-se para suas casas, não sem pensarmos em proteger o nosso plano com algumas estratégias de despiste. Estávamos lidando com pessoas que não podíamos subestimar de modo algum, e se isso fizéssemos, seríamos derrotados. Fizemos uma falsa reunião na sala de reuniões da genetrônica, mantendo o mesmo padrão anterior das reuniões e comentando nossa indignação diante da perda do controle sobre os gerenciadores. Nessa altura já sabíamos que Vando acompanhava nossos movimentos, pelo simples fato de ele ser um portador de Unidade Cerebral Eletrônica e por ser uma pessoa com a mente de um gênio, mas que para nós continuava mantendo uma postura de garoto obediente. Nós não estávamos subestimando a inteligência de Vando, mas ele subestimava a nossa, nos considerando mero brinquedo em suas mãos. Também, ao nos relacionarmos com Vando, combinamos que deveríamos buscar ser sinceros com ele, o máximo possível, pois se Vando percebesse que sabíamos quem ele era, jamais o pegaríamos.

***

Dali há duas semanas, alguém bateu à porta de minha casa e, para minha surpresa, era Vando. Viera brincar com o rato, pensei comigo mesma, enquanto o recepcionava:

— Vando, que surpresa, você por aqui?

— Sim, doutora, posso entrar?

— Claro, entre.

Olhando para o rosto de Vando, se diria que ele estava calmo, mas na verdade não estava. Retorcia as mãos ansiosamente e apresentava sudorese.

— Doutora Raquel, não estou me sentindo muito bem. Queria lhe pedir um favor.

— Se eu puder ajudar...

— Por favor, eu preciso que a senhora me amarre.

— Como assim? — de repente a conversa estava ficando interessante.

— Doutora, eu ando sentindo vontade de matar e destruir... eu... não sei quanto tempo vou agüentar ficar nesse estado.

— Se você quer ser contido Vando, preciso chamar um amigo, certo?

— Claro, doutora, claro!

Afastei-me um pouco e acionei meu comunicador. Avisei Marcos, dizendo apenas que eu estava em casa e precisava de sua ajuda, prioridade zero. Marcos entendeu perfeitamente e me disse que estava a caminho, sem fazer mais perguntas.

Não acreditei em uma só palavra de Vando. Aprendera com CM10 o jogo deles e sabia que Vando estava brincando comigo, exatamente como CM10 fizera. Se Vando realmente desejasse ser contido devido a seus impulsos agressivos, ele não me procuraria, mas a Nei ou a Marcos, qualquer homem suficientemente forte. Ele não procuraria uma mulher com apenas um braço-OE. Havia outro indício de sua teatralidade, sutil e subjetivo, era um clima que pairava no ar, mas eu não conseguia determinar exatamente o que o provocava. Ele não me inspirava confiança e a sensação de que ele vinha me fazendo de presa aumentava desde que o conhecera. Eu tinha uma sensação de ser a presa dele e estava sendo paulatinamente acuada até não poder escapar mais. Meus instintos me diziam isso, mais do que qualquer dado teórico.

Enquanto Marcos não chegava, percebi que corria grande perigo ao lado de Vando, proporcional ao tempo que ficasse exposta a ele. Precisava decidir rapidamente o que fazer. E decidi.

— Vando, gostaria que você me falasse um pouco mais como se sente e o que tem feito...

— Claro, doutora. Veja bem, como lhe falei, tenho sentido ondas de vontade de destruir varrendo meu corpo e sinto uma tremenda vontade de matar... inclusive pessoas. Esse desejo vai além da razão, ele simplesmente está lá e vai tomando conta de mim até se tornar torturante, compreende?

Escutei atentamente Vando. Era muito triste vê-lo atuando daquela maneira, tentando me incutir medo, tentando me deixar apavorada como só as presas ficam. Eu conhecera Vando antes da síndrome e ele fora um garoto fantástico. Agora sua mente distorcia e confundia tudo.

— Sim, Vando, acho que compreendo... mas ao que você atribui a origem desses sentimentos? Você lembra quando tinha dezessete anos?

— Você acha que antes da operação eu não tinha esses desejos que hoje tenho?

Inadvertidamente, eu havia dado uma pista a Vando de que sabia da verdade e do jogo. Meu Deus, estremeci. Tentei retomar a situação amena de antes. Precisava ser esperta, muito esperta, se quisesse viver.

— Talvez, não sei, isso quem pode me dizer é você mesmo. O que sei é que você sempre teve uma mente brilhante, Vando, quer antes, quer depois da cirurgia de acoplamento de UEC; no entanto, gostaria de localizar no tempo a origem de seus sentimentos, se possível. Você lembra se quando tinha dezessete anos já sentia algo da mesma natureza?

— Na verdade eu já sentia doutora, mas reconheço que tais desejos de destruição vêm se intensificando.

— Ótimo, esse dado é importante! Se você já nutria desejos de destruir, talvez você esteja passando por um estresse pré e pós operatório. Mas essa é apenas uma hipótese, precisamos investigar isso melhor, sem dúvida.

— Doutora, não estou entendendo. Está me dizendo que um estresse pré-operatório pode levar alguém a ter desejos de destruir. Está brincando comigo!

E o sorriso amplo de Vando surgiu em sua face, desaparecendo com todo traço de tristeza. Vando era genial, mas não lera os livros que eu havia lido por anos e tampouco estudara a fundo o campo da psiconeurotrônica como eu.

— Vando, Vando, você ficaria abismado ao saber que tipo de desejos e fantasias as pessoas alimentam num período pré-operatório. Com certeza, esses desejos que você manifestou não são nada inviáveis. Podem perfeitamente ter sido a sua reação a uma situação muito estressante, que envolvia vida e morte.

Nesse momento a campainha soou e o gerenciador de minha casa, anunciou visitas. Na semana anterior eu o havia configurado para não identificar as visitas, nem por nome pessoal e nem por número de pessoas. Levantei-me para recepcionar Marcos quando Vando gritou:

— Espere! Não abra a porta agora!

Mas antes que Vando terminasse de falar e me alcançasse eu já havia pressionado o botão que liberava a porta. Esse movimento, quase que logístico, também havia sido planejado por nós, uma vez que os gerenciadores, mesmo os domésticos, não eram mais confiáveis e bem podiam estar programados para executar funções contrárias as ordenadas por nós, os ditos "mesquinhos". Havíamos combinado que na hora estratégica usaríamos os recursos manuais e não os gerenciadores. Para minha alegria, Marcos, Nei, Hélio e Roger adentraram pela sala e seguraram Vando firmemente, tapando-lhe a boca e abafando seus gritos. Em seguida Roger iniciou procedimento de anestesia ali mesmo.

Carregamos Vando até o aeromóvel de Marcos e o conduzimos ao sítio. Nossa laboratório lá instalado não passava de um local de pesquisas precário, mas com pelo menos alguns equipamentos importantes. Conseguíramos retirar do Centro Federal de Pesquisa-OE um equipamento de ultrafilmografia disfarçado num carro-container de lixo.

Imediatamente demos prosseguimento a fase dois do plano. Vando começou a ser escrutinado por nossa equipe e estudamos com afinco cada pormenor de seu acoplamento. Após algumas semanas de investigação incessante, Hélio descobriu a falha na UEC. Vírus! Um vírus de computador. Um simples e maldito vírus. Estava escondido num game chamado "Total War". De alguma forma o vírus mesclara o jogo na personalidade dos acoplados, de tal forma que eles apropriaram os valores do jogo. A guerra pelo mero prazer da luta e do exercício tirânico de poder sobre os outros. A vida se tornara um jogo sádico para eles e suas mentes brilhantes se viram aprisionadas num game de guerra. Tudo que importava era matar e sobreviver, realizando seus desejos insaciáveis. Embora nossa descoberta sobre a gênese da síndrome fosse alentadora, havia muito ainda a ser feito. Providenciamos uma cirurgia. Recebi um acoplamento de Unidade Eletrônica Cerebral para aumento de memória e multiplicação neural, mas sem o vírus do game Total War. Sinto-me ótima! Mas não tivemos tempo de comemorar esta vitória. Nosso laboratório foi descoberto.
 

 

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