Diário de uma cachorrinha
José Celso Garcia
— Local: A família mora num sítio em São
Lourenço, Minas Gerais — o médico José Celso Garcia.
Tem o grandão que me foi buscar e que chama Zé, tem uns que
chamam ele de doutor.
Dona Maria é a esposa dele — Maria Lúcia Garcia. A mais
brava é Maria ou Dona Maria Lúcia... Acho também que
a Dona Maria, a brava, gosta de mim — quando estou sozinha com ela
ganho festinha. Ela gosta de me dar as coisas para ver eu ficar na ponta
dos pés. E também às vezes elogia minhas estrepolias.
Dona Maria — a de pêlo branco — é a sogra do autor — D.
Maria Resende.
Tem outra que também chama Dona Maria, tem os pêlos da
cabeça branquinhos, e ela é mais fraquinha. Ela chegou outro
dia, depois que eu cheguei, e é muito divertida. Puxo o pano que
ela usa em cima do couro e ela não berra comigo, e me dá
biscoitinhos o tempo todo.
Uma outra — uma das filhas do casal, que mora em outra cidade. Tinha
uma outra, a que chamava a Maria de mãe, e que brincava comigo o
dia inteiro. Me deu até banho, arre! Mas ela sumiu.
Dona Cidinha é a empregada do sítio.
E completando a tchurma tem a Dona Cidinha, mas ela só aparece
de dia. De noite ela some. Às vezes, quando o grandão não
está por perto é ela que dá comida para nós.
Dona Juma e o Seu Dinho — os cachorros do sítio —Quando saí
da caixa verifiquei que havia mais dois cachorros na casa. Um casal de
nome Juma e Dinho.
Meu Diário
Diamantina Edgarda
Estou com dois meses e meio, aproximadamente, não sei a data exata do meu nascimentinho pois ainda não fazem registro civil de cachorrinhas, não de vira-latas pelo menos. Mas ainda estou pequenininha e, pelo jeito, agrado aos grandões que me adotaram, eles fazem festinhas, me alisam o pelo, pegam-me no colo — não todos — me dão comida a toda hora — estou até me preocupando como meu peso - só não me deixam entrar em alguns lugares, como o lugar em que dormem, onde vêem televisão, onde recebem outros grandões eventuais. Sei destes detalhes porque burlei a vigilância deles e fui até lá algumas vezes. Quando pegam-me em flagrante saio correndo — já levei umas chineladas, fora os berros que dão comigo. Minha memoriazinha é muito nova, mas lembro-me, vagamente, que morava com minha mãe e meus irmãos em uma varanda, num segundo andar que dava para a rua. Toda hora os caminhões com seu barulhão tirava-nos do sono. Um belo dia um grandão foi lá em casa - eles andam engraçado, sobre as patas traseiras - e disse:
-- Quero a pretinha, que lá em casa já tem muito cachorro amarelo.
E lá fui eu para outra moradia. Entrei num caixote de metal com quatro bancos, dois na frente e dois atrás, e que andava e fazia o mesmo barulho dos caminhões. Pude ver pelo buraco ir passando muitas outras varandas. Não tive mais notícias de minha mãe e dos meus irmãos - meu pai eu nunca conheci. Mas também esse negócio de família é coisa dos grandões, eu não dou a mínima para isso. Ainda mais que chegando na casa do grandão — era de noite, não deu para ver bem — colocou-me numa caixa grande e alta e me deu leite com pão, a mesma coisa que eu comia antes. Só não tinha o leite da mamãe, mas também não precisava disputar com meus irmãos para ver quem mamava primeiro. Na caixa, se eu ficasse na ponta das patas traseiras, como os grandões, dava para ver o lado de fora, mas não dava para pular. Mas, eu que não sou boba, em dois dias já conseguia me livrar da caixa.
Começaram a me chamar de Diamantina, logo abreviado para Tina, ou até Tininha. Tudo bem, eu não tinha nenhum nome mesmo.
Quando sai da caixa verifiquei que havia mais dois cachorros na casa. Um casal de nome Juma e Dinho — grandes! — do tamanho da mamãe. Eu logo procurei amizade mas não quiseram nada comigo. Quando eu me aproximava para um bate papo ou mordidinhas nas patas e orelhas deles, davam uma rosnada e mudavam de lugar. Se eu insistisse acabavam indo embora e só voltavam na hora do rango. Fora da caixa o espaço era infinito, e infinito para cachorrinha é um lugar em que por mais que você ande você nunca chega. E eu prefiro ficar aqui por perto mesmo, o infinito parece muito perigoso e sem comida.
Eu só comecei a escrever meu diário hoje porque ainda não sabia ler e só agora consegui operar o computador. Eu mordo um fio que tem lá — não é qualquer fio — uns dão choque e outros desligam alguma coisa que deixa o grandão bravo comigo. Aliás as palavras que mais ouço são: "Pára! Tina!" e "Fora! Tina!". Mas tem um fio que eu mordo e que me permite digitar meu diário no "DogWord".
06.03.99 - Hoje, droga!, o grandão me mergulhou no tanque de água — ainda bem que estava morna — mesmo assim fiz tudo para escapar. Molhei o grandão todo, mas como sou muito pequena e fraquinha, tive que me conformar. Arre!, me ensaboou toda! Disse que eu estava fedida. Fedida uma ova! eu estava com meu cheiro normal de cachorrinha. Se ele pensou que eu ia ficar com aquele perfume de sabão, estava muito enganado. Assim que me livrei fui me espojar na grama e na poeira.
Fui apresentada hoje ao osso de suã. Grande pedida! Tem umas carninhas que ficam no meio do osso que é difícil de tirar, mas quando a gente consegue é ótima. E entretém a gente por muito tempo, além de não engasgar.
07.03.99 - O dia que vi a televisão foi um espanto. Fiquei prestando uma atenção danada naquele caixote que muda de cor a toda hora e fica mexendo e fazendo barulho. O que mais me chamou a atenção foram os latidos e rosnados — essa língua eu entendo — mas depois perdeu a graça. Não sei o quê os grandões acham naquilo, a ponto de ficarem horas a fio olhando para ela. A única coisa boa naquela sala é o sofá — macio e quentinho — mas eu só posso usufruir quando os grandões não estão por perto. Tem uma grandona então, que se eu não me cuido ela me passa umas chineladas.
Eu acho que os grandões também tem nome. A mais brava é Maria ou Dona Maria Lúcia, e tinha uma que a chamava de mamãe — mas como mamãe?, se ela não tem focinho e anda só nas patas traseiras? Deve ser outro tipo de mamãe. Tem outra que também chama Dona Maria, tem os pêlos da cabeça branquinhos, e ela é mais fraquinha. Ela chegou outro dia, depois que eu cheguei, e é muito divertida. Puxo o pano que ela usa em cima do couro e ela não berra comigo, e me dá biscoitinhos o tempo todo. Tem o grandão que me foi buscar e que chama Zé, tem uns que chamam ele de doutor. Tinha uma outra, a que chamava a Maria de mãe, e que brincava comigo o dia inteiro. Me deu até banho, arre! Mas ela sumiu. E completando a tchurma tem a Dona Cidinha, mas ela só aparece de dia. De noite ela some. As vezes, quando o grandão não está por perto é ela que dá comida para nós.
A Dona Juma e o Seu Dinho já estão voltando para a cadeira que tem aqui em casa. Já permitem que eu chegue perto. Eu que não estou chegando muito perto deles. Só vou quando tem grandão por perto. Se não é bocada na certa. Fora o xingamento: Grrrr, Uaaauuu, Brunhauuu, e vai por aí.
15.03.99 - Não estou muito bem hoje. Estou espirran, atchim,
...... espirrando. E minha vozinha está meio estranha: dau dau,
ao invés de au au. O grandão disse que eu estou com febre,
resfriada. Não sei bem o que é isto, mas é ruim a
bessa. Estou sem vontade de ficar pentelhando todo mundo. Sinto-me cansadinha.
Tchau, vou dormir.