O sorriso entre as árvores de ontem,
Maria Helena Bandeira

1º capítulo

O SORRISO

                   O Kristal negro e brilhante reflete minha imagem, traço por traço, mais fielmente que o melhor espelho.
                   Um erro pode ser fatal.
                   Quando a pedra se dissolve numa névoa tênue e acinzentada, eu a atravesso decidido.
                   Se os dados  não estiverem corretos, meu corpo se fragmentará nas células que o compõem, transformado em partículas de poeira.
                   Mas chego inteiro ao outro lado.
                   Os corredores espelhados são luminosos a minha frente. Por todos os ângulos me vejo, multiplicado nas paredes, no chão, no teto, acompanhando meus passos em direção à letra E.
                   De alguma forma, o Observador me vê, quando caminho dentro do Grande Arquivo, silencioso e sozinho.
                   Na verdade, nunca estou sozinho.
                   Ele está sempre à espreita, gravando nossas imagens com Seu olhar implacável.
                   Sua absoluta certeza permite que a vida nas Semiesferas seja preservada eternamente. Nunca mais nossa mesquinharia e ganância construirá o Apocalipse.
                   Aqui estaremos sempre em segurança.
                   Junto Àquele que Tudo Provê.
                   O que não tem ambição nem dúvida e cujas decisões são sábias.
                   Seus circuitos cerebrais são mais perfeitos, Seu corpo mineral pode se autorecuperar até o infinito desconhecido.
                   E aqui, no Grande Arquivo Pessoal Seu olhar eletrônico me acompanha.
                   Os terminais das paredes vão me indicando o caminho nesse labirinto que reúne dados, filmes, vídeos, disquetes e hologramas sobre todos os habitantes do planeta, desde que o primeiro homem surgiu na sua superfície.
                   Nossa raça quase se extinguiu, mas o Observador, o coração de toda a ciência criada por nós, preservou a memória.
                   E dentro das Semiesferas sobrevivemos à Catástrofe.
                   Diante de cada Setor-Letra, dois enormes ciborgues guardam o portal de entrada, imóveis como estátuas gregas.
                   Embora seja biomédico, interesso-me pela Arte Arqueológica, especialmente do Período Clássico, no chamado século V AC. Porisso os ciborgues de quarta geração me fascinam. Não têm mais aqueles músculos hipertrofiados dos primeiros tempos. Sua estrutura é vigorosa e ágil como a dos atletas atenienses. Além disso, a pele branca e luzidia lembra o mármore das cópias romanas. São brancos também os cabelos encaracolados que cobrem a cabeça pequena. Os olhos frios, de um azul transparente, movem-se em todas as direções, encravados nas órbitas arredondadas.
                   Chego ao Setor-Letra E e passo por eles, cuidadosamente, evitando me aproximar.
                   Na única vez em que toquei, acidentalmente, um desses guardiões, ele me derrubou no chão antes que pudesse entender o que acontecera e sua mão de ferro manteve meu corpo imobilizado durante terríveis minutos, até que um funcionário do setor, alertado por seus sensores, viesse me libertar.
                   Ele não me faria mal. O Observador controla seus circuitos cerebrais e não permitiria.
                   Apesar disso, tive muito medo.
                   De qualquer forma, satisfiz uma curiosidade: sua pele é gelada e dura como o mármore a que se assemelha.
                   No terminal do saguão digito o nome:
                   Escuderas - Rodrigo
                   Recebo de volta umas vinte identificações.
                   Entre elas seleciono o músico, nascido em 21 de janeiro de 2080, há mais de duzentos anos atrás.
                   Completo o programa e entro na sala retangular e escura das projeções holográficas. Nenhum objeto ou cor deve interferir para que a sensação de realidade seja total.
                   A única parede transparente se ilumina.
                   Estou em um quarto de hospital antigo, do tipo onde ainda havia nascimentos através de partos ou cirurgias.
                   Uma jovem, que identifico como a mãe natural, segura contra os seios o bebê Rodrigo Escuderas e o mostra a mim, com gestos estudados. A técnica holográfica era recente naquela época e, embora as pessoas estivessem em três dimensões, como figuras vivas, pareciam estar posando para o espectador, tensas e pouco a vontade.
                   Mesmo assim, posso observar que a jovem mãe tem a pele clara e sedosa e seios firmes que aparecem através da renda de sua vestimenta.
                   Afasto essas imagens que me distraem e concentro-me na pesquisa.
                   Rodrigo Escuderas, o brilhante compositor, fôra um inadaptado mental e sua vida cheia de contradições e mistérios. Com seu código genético, todos os dados de seu registro físico e a ajuda do Observador, venho investigando a ligação entre seu padrão cerebral específico e os desvios comportamentais de sua vida atribulada.
                   Os hologramas daquela época, ainda que restritos e pouco científicos, me ajudarão a decifrar o enigma dessa e de outras mentes inadequadas.
                   Como se estivesse participando dos acontecimentos, passam por mim as várias fases de sua vida, entrada na Escola de Música, etc, atésua morte, registrada por um discípulo, quando já se tornara o grandecompositor, conhecido em todo o planeta.
                   É quase penoso observar, como um intruso, a agonia domestre e o desespero de parentes e amigos.
                   Finalmente, o trabalho termina mas, em vez de me retirar,volto o holograma até seu início e dou um longo Stop, admirando a mãebiológica de Rodrigo Escuderas.
                   Seus cabelos são escuros, mas ela  tem a pele clara egrandes olhos cor de mel. Chama-se Vera.
                   Bem devagar, revejo todo o programa.
                   Há uma parte que me fascina especialmente: um concerto, ao ar livre, no Parque Itatiaia, no Rio de Janeiro, Brasil, entre exemplares centenários da Mata Atlântica.
                   A alta tecnologia do Arquivo permite que as paredes praticamente desapareçam. O Parque se estende ao meu redor como se as árvores estivessem aqui, ao alcance da minha mão. A música inunda o ambiente.
                   Estou a ponto de chorar de emoção.
                   Como era bela a Terra antes das Semiesferas!...
                   Destacando-se dos espectadores, uma mulher ainda jovem se aproxima de mim e sorri.
                   É Vera Escuderas.
                   Os dentes alvos brilham contra os lábios carnudos com uma claridade que obscurece as pessoas em volta dela.
                   Antes que eu possa responder a esse sorriso, ela se vira de costas para mim e some entre os assistentes.
                   Meio hipnotizado, retorno a cena.
                   Agora observo a mulher desde o início:
                   Caminha distraída, abraça o filho, ouve, com ar orgulhoso e meio distante, a sua música entre as árvores, arruma o cabelo displicentemente. Então, afasta-se dos outros espectadores, vem até bem perto de mim e sorri.
                   Retribuo aquele sorriso, desejando que permaneça para sempre.
                   Mas, novamente ela se virou, me deu as costas e sumiu na multidão.
                   Não sei quantas vezes retornei o programa para ver de novo o mesmo sorriso fugidio...
                   Após o concerto no parque, Vera desaparecia da vida holográfica do filho. Teria morrido relativamente jovem? Ou os realizadores dos novos hologramas julgaram sem interesse reproduzir a mãe do artista a partir do momento em que começou sua escalada para o sucesso?
                   Preocupava-me com Vera Escuderas mais do que com o músico que deveria estudar.
                   As luzes vermelhas se acendem.
                   Há outras pessoas querendo usar a cabine.
                   Saio para os corredores espelhados. Minha imagem, reproduzida múltipla e fielmente, parece ofegante. Dois  círculos vermelhos cobrem os malares que me rasgam o rosto abaixo dos olhos febris.
                   No terminal do saguão, digito outra vez o nome Escuderas.
                   Vera está lá. Um holograma só para ela.
                   Abençoei o Observador e seus implacáveis Arquivos Pessoais.
                   Meu terminal de pulso bipou:
                   Cinco e trinta. Muito tarde para assistir a um novo holograma. O edifício fecha às seis horas e todas as cabines até E S C estão ocupadas.
                   Não tem importância. Posso voltar amanhã. Nos septimus eu estou de folga.
                   Sem pressa, aciono o autotransportador do cinto, elevando-me entre as árvores da praça. O céu acima de mim está azul e quase é possível esquecer a cúpula protetora da Semiesfera  2.
                   Sempre que vôo para casa, costumo olhar para o alto pensando na Terra lá fora. Os robôs exploradores têm mostrado imagens de renascimento no planeta destruído. Uma nova vegetação e até pequenos animais vêm se adaptando ao ar contaminado.
                   Mas o nível de radiação ainda é perigoso para o homem, cem anos depois da última guerra nuclear.
                   O Observador nos assegura a melhor vida possível dentro das Semiesferas. Seus terminais são nossos braços e mãos, são nossas pernas e pés para construir um futuro melhor. E, talvez, redescobrir a Terra...
                    Alícia não sente nenhuma curiosidade sobre o planeta lá fora, sobre a vida que nenhum de nós conheceu. Ela é funcional e fria como um computador... Não quero pensar em Alícia, nem em Bruno. Nossos laços hoje são distantes. Quantos anos ele deve ter agora? Oito? Não, nove. Nove anos e há mais de três anos a gente não se vê pessoalmente. Apenas no videofone, de vez em quando, para não perder o hábito. Sua imagem no visor é séria e sem emoção.
                   Ele não é meu filho biológico, mas eu gostei dele em certa época de minha vida. Na verdade, sempre fui um homem muito só. Não me inscrevi como voluntário do Programa de Reprodução. Não desejo perpetuar meus genes.
                   Embora o Laboratório da Biomédica seja o que há de melhor em limpeza e organização. Bruno foi gerado lá. É filho biológico de Alícia. Como Cientista Comportamental, tem permissão de criá-lo ao seu lado. Será provavelmente um brilhante pesquisador como seu pai. Alícia sempre escolheu os mais importantes para suas cruzas genéticas.
                   Vera Escuderas nasceu entre fezes e urina à maneira perigosa e anti-higiênica dos antigos e assim concebeu e pariu seu filho. No entanto, parece feliz e linda na sua vida holográfica do Grande Arquivo e sorri luminosa para o futuro.
                   As árvores e os pássaros de cristal do Natureza B aparecem no horizonte. Ajusto os controles para descer.
                   Meu salário de Biomédico permite que eu viva num dos setores mais agradáveis da Semisfera. Os edifícios tem a forma de aves e plantas estilizadas.
                   São belos no crepúsculo.
                   A luz avermelhada do sol faz brilhar os cristais que emitem fagulhas multicoloridas.
                   Desço rente ao meu prédio-árvore e pouso no terraço, assentado sobre o quarto galho, à direita.
                   As esculturas envidraçadas ao redor de mim vão se esbatendo em sombras lilás no meio do parque. As outras árvores, as naturais, estão floridas: acácias, ipês, quaresmas... Só não há frutos por causa dos impessoas. Também por causa deles é envenenada a água das fontes e dos lagos.
                   A luz das estrelas trespassa a esfera que escurece devagar.
                   Sento-me na espreguiçadeira, observando os últimos raios do poente.
                   O sorriso de Vera Escuderas é como o verdadeiro sol perdido e aquece meu coração na noite que desliza, dentro da Semisfera 2, num planeta contaminado, entre milhões de astro indiferentes.
 

 

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