O sorriso entre as árvores de ontem,
Maria Helena Bandeira
2º capítulo
ENTRE AS ÁRVORES DE ONTEM
Eu conheço cada gesto, expressão e movimento de Vera Escuderas
no Arquivo Pessoal.
Algumas vezes ela sorri para mim, como no concerto, mas é o sorriso
vago e distante das fotografias. Anda na minha direção, olha
o meu rosto e não me reconhece.
Há alguns holos de sua juventude, antes do casamento com o pai de
Rodrigo que eu adoro:
Vera joga tênis, ainda mocinha, os braços queimados, as pernas
musculosas...
Ri, com os cabelos ao vento, num barco sobre o mar...
Como eu gosto dos hologramas no mar!... Ele invade as paredes estreitas
e se espraia em torno de mim, verde e infinito...
( Obviamente só existem lagos nas Semiesferas e tão pequenos
para se comparar com o oceano!...)
Ela navega ao meu lado, os cabelos soltos contra o ar salgado... quase
posso sentir o cheiro de óleo e maresia que só conheço
dos sonhos programados.
Infelizmente, a quantidade de material é pequena. A família
de Vera Hertz, mais tarde Escuderas, pôde se dar ao luxo de gravar
a filha única em holos suficientes para manter a sua imagem através
de vários anos de sua vida.
Mas não o suficiente para minha sede de apaixonado.
Analiso seu rosto, o olhar as vezes triste, quase sempre distante, sonhador.
Vera Escuderas morreu, aos 44 anos, me informa o computador em sua linguagem
impessoal.
O último holograma em que apareceu foi aquele do concerto no Parque
Itatiaia.
É o meu preferido.
Inúmeras vezes retorno ao ponto de partida só para vê-la
caminhar em minha direção e sorrir daquele jeito luminoso.
Embora eu saiba (com precisão milimétrica de segundos) que,
logo depois, irá dar as costas para mim e se perder na multidão
anônima de um dia longínquo.
Observo-a chegar, andando graciosamente.
A saia balança ao suave movimento das pernas e uma brisa qualquer
agita uma mecha fina dos cabelos.
Divirto-me fixando o holograma no momento em que se aproxima.
Ela fica parada na minha frente, todo o cenário imobilizado, o sorriso
estático, os olhos que não me vêem.
Então, prefiro deixá-la ir embora, sumir entre as árvores
do parque.
As vezes penso que estou me tornando inadequado, com essa fixação
por uma mulher morta há mais de duzentos anos.
E tento resistir.
Mas é como um vício. Não consigo parar. Nas horas
de folga, durante o almoço, nos feriados.
Minha maior diversão é viajar com ela no tempo.
Vera levanta a raquete, suas pernas se flexionam, a bola estoura na rede
e ela ri. O céu é muito azul contra os seus cabelos escuros.
No barco, a blusa curta, a barriga morena aparecendo, a curva macia dos
seios.
Como um furtivo caçador espero a hora em que um movimento mais brusco
irá revelar alguma parte desconhecida do corpo que adoro...
Sei perfeitamente que isso nunca vai acontecer, mas é com emoção,
o coração aos saltos, a respiração ofegante,
que a vejo saltar com a raquete nas mãos.
A saia rodopia mostrando as coxas fortes.
E paro a imagem.
Fixo-a no ar, no chão, a cabeça estendida para trás,
no barco, os cabelos voando, como um instantâneo vivo.
Passo e repasso as cenas. Uma, duas, milhares de vezes.
Estou sempre a espreita de que se mova de alguma outra maneira, desvie
o olhar, pare de rir ou acerte aquela bola que, inevitavelmente, cai na
rede.
Mas ela continua a repetir, obsessivamente, a mesma pequena vida limitada
de seu programa imutável.
E no meio do concerto, entre as árvores do Parque Itatiaia, caminha
para mim, sorri luminosa e se afasta para sempre de sua vida e do meu mundo.