O sorriso entre as árvores de ontem,
Maria Helena Bandeira

3º capítulo

LONGE DO SORRISO

                   Estou atrasado para minha visita diária ao Grande Arquivo. Sobrevôo a cidade distraído. Ao descer, quase esbarro num impessoa que caminha esfarrapado pela limpíssima rua metálica.
                   Desde cedo somos treinados a não apenas ignorar os impessoas, mas a não vê-los realmente. Eles não existem. São menos que os fantasmas sobre os quais podemos conversar em noites de insônia.
                   Ninguém fala sobre eles. Apenas nos treinamentos, durante a infância e parte da adolescência.
                   Costumo passar por esses não-seres sem notar, mas hoje, meus nervos tensos, meu estado de extrema agitação não me permitem ignorá-lo.
                   Mesmo sem olhar diretamente para ele, percebo que é absurdamente magro, pálido e que tem fome.
                   Seu andar é trôpego. Ele titubeia... apoia-se na parede e finalmente cai, num turbilhão de trapos esvoaçantes. Um transeunte passa sobre ele e quase lhe pisa a mão. Ele continua imóvel, trouxa esquecida sobre a calçada brilhante, objeto incongruente na organização perfeita das Semiesferas.
                   Esforço-me por tirá-lo do pensamento e entro no Grande Arquivo Pessoal.
                   Um psicólogo me espera na entrada da Letra E, entre os dois gigantes ciborgues.
                   Eu já sabia que ia acontecer.
                   Desvio do Padrão Comportamental.
                   Sigo-o pacientemente.
                   Durante duas horas perdidas, ele procura analisar a minha compulsão por determinados hologramas da antiguidade e eu tento, inutilmente, explicar a ele que sou apenas um homem comum apaixonado por uma imagem.
                   Como previa, recebi duas semanas de licença para tratamento no Sanatório do Biomédico. O meu setor.
                   Sei perfeitamente que não tenho nada. Mas ele diagnosticou uma espécie de Síndrome da Semiesfera. O confinamento obrigatório afeta o psiquismo, mesmo dos indivíduos aparentemente mais ajustados. Existem várias formas de fuga mental do ambiente aprisionador das cúpulas protetoras.
                   A minha, segundo o psicólogo que me atendeu, nem ao menos é a mais original.
                   No entanto, eu sempre vivi aqui dentro. Nunca estive em nenhum lugar além dos muros de kristal.
                   Sinto-me triste e cansado. O observador me parece distante e Seu olhar eletrônico já não é indispensável.
                   Ele pode prover quase tudo.
                   Mas este quase me faz um falta terrível.
                   O pior é ficar duas longas e tediosas semanas sem Vera.
                   Sou um bom cidadão. Programando o autotransportador, dirijo-me ao Sanatório dos Inadaptados.
                   Os edifícios são retos e feios, pintados de branco. As árvores  ao redor deles parecem melancólicas, de um verde mais escuro, altas e esguias: ciprestes, pinheiros e cedros.
                   Nos bancos, sob as árvores, homens e mulheres de olhar perdido, sempre acompanhados de outros, vestidos de branco: os guardiões.
                   Mas ninguém foge dos Sanatórios. Todos estão lá por sua livre e espontânea vontade.
                   Como eu.
                   Desço suavemente ao encontro dos médicos na área da Terapia. Eles são gentis. Mostram-me um quarto limpo e arejado que será o meu por quinze dias.
                   Olho pela janela envidraçada. O céu é tão claro que dá para perceber o brilho da cúpula protetora.
                   Estarei, realmente, sofrendo de um tipo de claustrofobia? Os campos se estendem verdes do outro lado e tudo parece calmo e conhecido. Há uma videobiblioteca no meu quarto. Coloco o capacete e concentro-me em verouvir um livro.
                   De repente, sem motivo nenhum, me lembro do impessoa que quase esbarrou em mim. Uma náusea irresistível faz com que atire longe o capacete e corra para o banheiro.
                   Dois preocupados enfermeiros aparecem, reprogramam o capacete e o colocam , delicadamente, na minha cabeça.
                   Tudo fica escuro e caio num sono sem sonhos.
 

 

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