O sorriso entre as árvores de ontem,
Maria Helena Bandeira
4º capítulo
PERDIDO DAS ÁRVORES DE ONTEM
Hoje é meu primeiro dia de trabalho desde que tive alta. Não
devo pensar no Grande Arquivo Pessoal, nem em Vera Escuderas.
Concentro-me nas tarefas rotineiras.
Sinto em mim Seu olhar cibernético e minha alma engatinha num pântano
insondável. Os pensamentos resvalam, procuram os desvãos
da mente, sobem e descem entre os contornos ásperos da realidade.
Às cinco horas não agüento mais. Deixo sorrateiramente
o Laboratório de Biomédica.
Na área de decolagem evito ser visto e sobrevôo a cidade como
um ladrão, temendo ser descoberto.
Estou sempre descoberto.
Ele me vê em todos os momentos.
Mesmo assim, desço bem em frente ao Grande Arquivo. O impessoa não
está mais lá. Talvez tenha morrido e o Aerocaminhão
da Limpeza Urbana o levou embora.
Este pensamento banal me faz estremecer.
O kristal negro parece sinistro ao refletir minha imagem amedrontada.
Mas me deixa atravessar sem problemas.
Percorro os corredores, quase desertos a esta hora. Um ou outro pesquisador
passa por mim, o olhar indiferente. Mas a cada figura que vejo, o coração
dá saltos e o pulso dispara.
Consulto o terminal da entrada do Setor Letra E, ao lado do branco ciborgue
imóvel. Procuro aparentar indiferença:
"Escuderas - Veríssimo.... Verônica..."
Um suor gelado escorre pela minha nuca... o nome dela não está
mais!...
Aflito, interrogo o terminal:
"Não consta dos registro com este nome. Tente outra vez" me responde
a suave voz cibernética..
Procuro então Rodrigo Escuderas.
Também desapareceu!...
Procuro seus avós: estão no programa como não
tendo filhos.
O Observador apagou Rodrigo Escuderas, o músico genial, apenas para
fazer desaparecer Vera de minha vida!...
Ele age como um deus.
Refaz o passado conforme seus interesses.
Esse é o poder que nós lhe demos.
Comecei a rir alto.
O Observador nunca amará a música. Sabe todos os seus sinais,
pode criá-la, reproduzi-la em milhares de composições
possíveis.
Mas nunca vai amá-la.
Para ele é apenas um instrumento, uma droga para essa nossa raça
degenerada que conhece tão bem e jamais compreenderá.
Pode impedir o Armaggedon. Pode reconstruir todos os atos, órgãos
e palavras que compõem o espetáculo teatral do amor.
Mas não pode entendê-lo.
Uma opressão dolorosa me aperta o peito, junto com uma revolta enfurecida.
Começo a esmurrar as paredes, agora como um verdadeiro psicopata,
chutando o kristal resistente.
Apenas as batidas ocas de meus próprios movimentos me respondem.
Porque os ciborgues não vem me buscar?
Onde estão os guardiões?
Reunindo minhas últimas forças, atravesso correndo
os labirintos espelhados, até o Setor-Letra T e procuro meu nome.
Teodoro - Carlos Rovenda
Está lá.
Respiro aliviado e coloco o meu holograma para funcionar.
Quando a luz se acende, apareço como um bebê, na cerimônia
da entrega, pelo Laboratório de Reprodução Humana,
a meus pais biológicos.
O Dr. Lannab, supervisor da fecundação e a Dra. Glenda, responsável
pela gestação in vitro, estavam lá, sorridentes, ao
lado do eminente físico Bruno Teodoro e da bióloga Angela
Rovenda cujos genes reunidos deram origem a esta pessoa imperfeita
que sou eu.
No holo estou tranqüilo, dormindo no colo de minha mãe.
Não vivi com ela mais do que dois meses. A maior parte de minha
vida foi passada nas creches e internatos do Programa de Educação.
Revejo as salas de aula, os vídeo-professores, como se estivesse
de novo participando de tudo aquilo.
Por um motivo obscuro, alguém que já esqueci registrou-me,
criança, na Praça da Liberdade, deslizando por um escorrega
de água que despenca sobre um lago cercado de flores.
É a parte mais alegre de minha vida holográfica.
Estou feliz, dou gargalhadas e espalho água em todas as direções,
enquanto desço vertiginosamente para o lago, onde mergulho com gritos
de prazer.
Os outros holos são convencionais: estudos, formaturas, prêmios,
meu casamento com Alícia, Bruno, o Laboratório da Biomédica...
Neste momento se inicia o horror...
Pouco a pouco, em pleno laboratório de pesquisa, as pessoas começam
a desaparecer ao redor de mim. O ambiente também vai sumindo e,
finalmente, sou apagado daquela cena.
Assustado, voltei o holograma ao ponto de partida. Febrilmente, refaço
a minha trajetória: bebê, colégio, escorrega, casamento...
e acabou!... as pesquisas, os prêmios, nada existe mais.
Recomeço o programa, tremendo, os dentes trincados no esforço
de entender... agora ele termina com a minha entrada na Universidade Integrada.
A angústia quase me impede a respiração. Luto para
recuperar o fôlego. O ar se prende na garganta contraída.
O Observador está apagando meu holograma na minha frente!...
É o castigo por não me adaptar às normas da Semiesfera:
minha vida inteira sendo desmanchada como uma cópia malfeita.
E eu aqui assistindo, impotente e apavorado, à destruição
da minha imagem...
Não!... o escorrega, não!... é crueldade demais!...
Pouco a pouco, diante do meu olhar desolado, vão sumindo as flores,
o lago, e deslizo no vazio até desaparecer, também tornado
nada.
Quero fugir, desviar o olhar, mas não consigo.
Fascinado, pregado no mesmo lugar, refaço pela última vez
meu percurso.
Sou apenas um indefeso bebê, embalado por minha mãe biológica.
O Laboratório, os médicos, tudo foi tragado pela máquina.
Meu pai.
O colo de minha mãe.
Já se foram todos.
Há apenas um bebê se desfazendo lentamente...
Rosto... nariz... boca...
Muito lentamente...
íris...
lentamente...
lentamen...
Lent...