O coração deserto,
Antonio Júnior

PRIMEIRO CAPÍTULO

Um relâmpago incendeia a paisagem. A lagartixa cinza-rósea, a cauda desenhando uma curva monótona, numa  imobilidade
absoluta no canto da vitrina da loja de calçados. Em uma distância calculável, o corpo ainda morno, de pálpebras dobradas. A manhã avança, longe dos reflexos da penumbra. Nuvens flutuantes com nesgas douradas e cinzentas. O círculo humano é
rompido. O deputado de meia-idade, cabelos grisalhos e óculos escuros, confirma: “É a minha senhora”. Os olhos fixos, em
seguida, na luz de mercúrio de um parque de diversões. A murada  beirando o rio vagoroso, o rio com um tom azulado de
lodo. Ah, Lúcio Cardoso, “o imenso rio, como um tigre fechado em seu âmbito de fome”. Nas margens, a massa verde de
folhagem dura, sem matizes. A imagem da sereia colocando uma peruca pouco convincente, a  um tempo escura e flamejante.
Os cremes e os frascos de perfume. Uma escova de madeira e um segundo pente, este de osso. Os dentes do pente passam e
repassam na cabeleira artificial, ondeante e armada. Os grampos enfiados entre doses de uísque e cafungadas de cocaína. Ele
limpara o nome da mulher manchado em lojas como uma escroque e, tal como uma criação apaixonada, afogara-a em roupas
caras, viagens, jóias e uma cerimônia nupcial megalômana. Aceitou injúrias e outras razões para induzir o ódio de seus
eleitores, mas nunca deixou de apoiá-la. A ruiva impôs leões na porta da catedral gótica e orquídeas frescas espalhadas como
um tapete para uma imperatriz exótica. Os animais ameaçaram os convidados e as flores murcharam com o calor intenso. Dois anos depois, essa mulher ambígua, na fronteira entre o demoníaco e o mundano, sofria de insônia.
O telefone tocou. Chamam-na de puta. Desligou o aparelho como se não dissesse respeito a eles. A peruca não a deixava
satisfeita, encorajando a uma fúria estúpida. A cabeleira escorria por entre os dedos crispados, com rapidez  a escova descia e subia, ajeitando-a. Em sua pressa de chegar ao fim, Darlene suava, blasfemando. Aconselhou um médico, ela recusou,
passando a língua nos grãos de pó, apontando um envelope branco com uma cobra carimbada: “São uns sórdidos”. Rasgou o
envelope e, na mesma proporção de simpatia, reforçou o uísque. Darlene não se emocionou, alimentava um coração selvagem.
Ajoelhou-se para juntar os pedaços da carta sem assinatura e quase caiu, os olhos escondendo uma história inverossímil. “Não vou conseguir esquecer”. “Eu não me incomodo com coisa nenhuma do seu passado”, ele emendou.
O sapato de verniz preto esmagando orquídeas no seu casamento. Sentia-se violentado. A mulher finalmente possuída e ele
sofrendo por flores massacradas. O espírito tirando pouco proveito de batalhas vencidas. Enfrentara a família e arriscara a
carreira para estar ao seu lado, testemunhando agora a insignificância do amor. Na noite lisérgica, Darlene na soleira da porta:
“Volto à meia-noite”. Um momento extraordinário. Ele sentiu suspiros de anjos maus. Ela nunca abrira a boca para oferecer
oportunidades para a derrota. O que viria a seguir? Ficaria demente e seria internada, delirando e urrando perversidades?
Assustou-se com a fantasia macabra ao ouvir o som do carro partindo em alta velocidade. Uma intricada teia de dor. O
passado palpável. Sua primeira mulher, mãe de dois filhos seus, beija-se em bares com drogados. Ramón na medida do
possível, compreende as mulheres. Jamais perguntou à Lucélia se ela o traiu durante os quinze anos de união, substituindo a
dúvida pelo silêncio. Lucélia lutou para impedir sua ligação com Darlene, que era uma pessoa abandonada, erma como uma
imensa jaqueira no cume de uma colina. As portas fechavam-se para ela. Uma dama de má reputação.
Os monumentos  da cidade são suas pedras pretas. Elas se acumulam sobre o leito seco do rio. Na beirada desse reino
semi-aquático, Ramón lembra de um filme francês no qual o marido é abandonado e, para rever a mulher, enfia a cabeça
dentro d'água. Essa imagem é uma incógnita, o que menos o surpreende é a realidade: Darlene, sem uma gota de sangue,
largada na entrada do edifício mais alto da região, o Catalunha Center. “No oitavo andar, da minha sala, vi o corpo passar pela janela e espatifar-se no asfalto. Um barulho terrível”, repetiu muitas vezes uma voz feminina. A carnívora multidão em volta dela. O infinito, o topo do edifício, a perplexidade. A história acabada. A morte de olhos abertos. “Roubem as jóias —
murmura sem entusiasmo — Façam isso enquanto a polícia não chega. É um presente meu para vocês”. Relutante, um garoto
tira do bolso um canivete, puxa a mola, abrindo-o, e corta o polegar da morta retirando um anel . Arrancam pulseiras, anéis,
brincos, o colar. Um velho, ao agarrar uma pérola da orelha, fere-a. Darlene morta, e depois de sua morte os minutos não
cessam de se renovar.
A chuva e o vento levam folhas amarelas das amendoeiras. Neste momento em que a natureza domina, descobre a ponta de
um envelope saltando do decote. Embola-o entre os dedos. Não precisa abri-lo para descobrir o conteúdo. Sob a chuva de
setembro, como acontece em contos de fadas, uma andorinha pousa numa marquise. Morremos dia-a-dia da vingança secreta, sem vestígios.
Em um restaurante freqüentado por empresários, ela alarmava antipatia pelos bóias-frias vistos através de janelões de vidro.
Eles gritavam, brandiam cartazes e faixas, pedindo a não extinção de uma fábrica. “Eu poderia cobrar direitos autorais por esta audácia” disse, atravessando o salão onde zanzavam garçons-insetos. Ao chocar-se com o carrinho de sobremesas, foi vaiada pelos operários. Ramón abraçou-a pela cintura. O restaurante em silêncio, nenhum barulho de talher ou respiração. “Quero ir-me. Esse jantar está intragável e vocês me causam aversão e náusea”, ela gritou.
O deputado crê que fora colocada em seu caminho para destrui-lo. Na última eleição, vencera por pouco. Os eleitores
pareciam descontentes com sua atuação no Parlamento. Tudo resultado das anarquias da mulher com quem fora casado dois
anos. Todos lucram com sua morte. Imaginavam-na mutilada, enferma, estrangulada. Darlene aceitava esse rancor coletivo, e
incentivava-o, rasgando convenções sociais como um guardanapo sujo, rindo da própria perseguição. “Quase um demônio.
Sou um anjo que o céu rejeitou”, dizia. Não havia como fazê-la ser aceita. Andava na boca do povo: o horror espiritual.
Cain foi sua única ligação com os vivos. Conversavam horas por telefone. É um intelectual contraditório. Ramón e ele nunca
falavam nada importante, raramente sustentavam um  diálogo por mais de um minuto, mas Cain parecia esconder enigmas e ter opiniões ao estar com sua esposa. Não o suportava. Uma apatia quase catatônica. O corpo atarracado do rapaz impunha um peso a cada uma de suas observações. “Sua senhora é incapaz de conseguir comer biscoitinhos caseiros sem provocar graves incidentes”, disse publicamente numa recepção. Pensou em socá-lo, arrebentar seus músculos. Darlene, controlando uma crise de riso, passou o longo braço em volta do pescoço do rapaz  e ironizou antes de irem para a beira  da piscina: “Não tenha ciúmes, querido. Cain não é meu amante, só faz parte do meu mundo mítico e heróico. Ele lê, em voz alta, para mim, novelas que desintoxicam minha ignorância”.
Voltara há quinze meses dos Estados Unidos. A América atrai Infante. É a terra do jazz, a pátria de Nathanael West. Sem
apoio financeiro, trabalhou como prostituto em São Francisco. Usava jeans escuros e não economizava um dólar. Dividiu um
minúsculo apartamento com uma bailarina alcoólatra, Melina Contreras, e atuou como figurante em policiais de terceira classe,
considerando o instante singular para repudiar o moralismo. Aos 30 anos, não há traço de felicidade desenhado em seu rosto e a ausência de esperança é uma lição tirada das regras do jogo existencial. Nega, sem cólera, o amor. Vive em paisagens
lunares, sombras fantasmagóricas. Afugentar a realidade levara-o a um privilegiado sacerdócio. Pergunta incontáveis vezes o
que pode haver de  mais podre que o homem. No entanto, diverte-se como uma virgem enamorada por Dionísio. Percebe-se
seus eclipses. A agitação, as frases feitas e a geografia acidentada são motivos de ardor. Voltara da América do Norte falando inglês perfeitamente, escreve poemas neste idioma. O líquido espesso de sua criatividade escorre sem utilidade. O que fazer para evitar o naufrágio, quando não se consegue enxergar o amor? Pensou em heroína, nos hippies, na geração de 70,
terminou noivando Cibele Ávila, uma dessas garotas de classe média que se candidatam a concursos de beleza. Ela aceitou-o
por enfermidade de caráter, mesmo aprovando a repercussão que a união provoca. Já Cain utiliza o encanto dela em benefício próprio: é preciso uma legião de coadjuvantes para sustentar o ego. A glória, a riqueza e a imortalidade são uma confusa procura do Oculto. Em cada ser que atravessa o seu caminho, reconhece a calúnia, e estimula-a: “Acredito no cinismo. Cada vez que o encontro fico arrepiado. Excita-me também a mentira. É como uma descida ao túmulo, uma subida aos céus, um fervor cristão”.
Na noite, as conversas, as intrigas e as experiências são servidas como um banquete. Cain ignora a vilania, mesmo
envolvendo-se em truques. De fato, ele escapa de armadilhas como um réptil escorregadio, levando estímulo de
contrariedades. Chegando do estrangeiro, participou da intimidade de Linda Beatriz, se é possível tal afirmação. Falavam de
poesia, cinema, sexo e, o eixo central da engrenagem, o consumo de cocaína. Cinqüenta anos, viúva de um bancário, longas
túnicas que não desenham o corpo. Cain enxerga-a como um personagem de caráter miserável misturado ao poder, “Todas as cidades tem seu satã de estimação e Linda Beatriz é esse delinqüente, mesmo que muitos acreditem que o  título pertença a Darlene”.
Não confia na voz, no andar, no cansaço do rosto de Linda. Os imperativos de movimentos inseparáveis: o passado, a
ignorância, a avidez. A relação perigosa durou dois meses, mas nunca deixaram de trocar frases de efeito educado em
encontros públicos. Linda, sem nunca confiar nele, camuflava uma situação insustentável. Ele não se interessava, mas ela
insistia, confessando não amar ninguém e ter optado pelo isolamento depois da viuvez, quando era sabido que arrancava o que podia de Cesário Verde. Este ligava para a casa de pássaros engaiolados, Cain percebia as frases truncadas, a voz baixa, o corte rápido. Terminaram enjoando. Não podiam continuar desse modo, carregando penosamente os embates à tragédia.
Afastaram-se um do outro antes que fosse tarde.
Convenceu-se da inadaptação à província. Um pouco relutante, aceitou trabalhar no departamento de jornalismo na tevê local. Entrevista políticos, atletas, assassinos e empresários. Suas indagações para os artistas são sentimentais, convencendo o
público da ingenuidade deles. A tentação do entorpecimento, encanta-o. “Não há ligação entre a mídia e o real. Tudo é
ficção”, desabafa.
O prédio da emissora no topo de uma montanha. A sensação de exuberância desordenada. A primeira matéria do dia: o
suicídio de Darlene Santos. Jogara-se do salão de festas de um edifício comercial. A reportagem é para o jornal do meio-dia.
O editor de jornalismo quer saber quem foi ela, o que a  levou à morte e se há uma carta de despedida. Ele pensa em
transformar esse trabalho, em manha mórbida, numa sombra de dúvida. Suicidara-se? Cain, o amigo confidente. Uma aspiral
vertiginosa de perplexidade e possibilidades, além de  julgamentos superficiais. Darlene não foi a inventora das adversidades,
mas ninguém obteve tanta repercussão no gênero como ela. O jogo, sob uma pátina de normalidade, tem estranhos
sentimentos e ações. Chorava, confessando o sonho de menina: ser rica. Com o  dinheiro, esbarrou em elucubrações
perversas e descobriu que os nascidos ricos são diferentes dos que ficam ricos. Cain procurou salvá-la da dor. Ela não aturava a realidade que não cessava de se mascarar e duplicar. Nunca foi aceita pela alta sociedade. Não que faltem putas, viciados, trambiqueiros e cafajestes no meio, mas é sempre preciso um vilão oficial num folhetim. Foi a escolhida. Mesmo apavorada com a ausência de instrução, atacava com frases inesperadas. O amigo reconhece a sua falha central: a não aceitação da condição de persona non grata. A carta anônima a marcou profundamente. Telefonou, tensa. Nunca mais conseguiria ler nada comparável. Um tiro no escuro. As paredes falsas, os pontos secretos, os mecanismos, os esconderijos. “Também recebi uma carta e não levei a sério” —  mentiu, lembrando sua obsessão por cartas: caixas antigas de madeira trabalhada cheias; todas em perfeito estado, em envelopes que figuram selos muitas vezes estrangeiros. Houve um silêncio, o desespero no vácuo.
“Cain, estou louca?”. “Flaubert preferiu escrever a se suicidar. Você resolveu enlouquecer”. “Há uma falha nesta receita”,
disse, como quem fala em outro idioma, e continuou: “Encontre-me no Galo Vermelho”.
Tomou uma dose de uísque e, ao deixar a garagem, a sofisticada Clarice Luna estacionava o seu carro prateado. Uma da
madrugada, a cidade despovoada e ela de turbante, pantalona, o rosto pálido. “Darlene ligou-me. Falou-me de uma carta
maligna. Eu não sei do que se trata, não desejo nenhum mal à coitada”. Escutou de forma monótona o monólogo, pouco
convencido de sua mentalidade peculiar. Apressar-se era a chave do enigma. Deixou Clarice e sua harmonia expostos a uma
noite corrupta e violenta. Não encontrou Darlene no bar. Tocou a campainha do apartamento secreto, mesmo sabendo que
subira acompanhada. Nua e tombando, abriu a porta. Parecia divertir-se. As explosivas relações entre o adultério, a política e
o crime. “O que passa?”. “Não odiar os inimigos trás algumas conseqüências práticas. Isso não prejudica o raciocínio”. “Com
quem está? Estava na cama, pronto para dormir, você pediu ajuda”. “Entre, fique alguns minutos”. Fechou a porta que
separava o quarto da sala. “Cismam comigo”, disse apontando uma carta no sofá. “Lembra o que escreveu o mestre Balzac? Como poderiam realmente aliar-se os grandes sentimentos, a uma sociedade mesquinha, pequenina e superficial?”. Ela rompeu uma gargalhada nervosa. “Estou farta de suas citações  eruditas”. “Não mude de assunto. Conheço quem está no quarto?”. “Não posso mostrá-lo, pois vai me matar”. “Não é sensato ligar para Clarice depois do rompimento da cordialidade que as unia”. “Nunca fui sensata”. Protestou contra semelhante mistério. Não se sentiu seguro. Aceitando a inutilidade, retirou-se. Esperava o elevador, a mulher reapareceu. Estaria no Catalunha Center ao amanhecer.

Não conseguiu dormir. Na varanda repleta de flores azuladas, conscientizou-se que os acontecimentos chegavam ao instante
terminal. Acordou Lúcio, pedindo ajuda. Ele é o parceiro de Clarice, um homenzarrão de trinta e cinco anos com aparência
dócil. Cain não enxerga sensualidade em sua pessoa, nem outro tipo de mercadoria legítima. A amiga conhecera-o em uma
ilha, num hotel de cinco estrelas. O horizonte escaldante, de encontro a um coqueiro, viu-o desprotegido. Procurou não
notá-lo. Convidada para uma partida de tênis, recusou. A renúncia era esfumaçada e caótica. Depois de quatro anos de
casada flagrara um mulato truculento possuindo o marido. Voltara precipitadamente da capital, os filhos brincavam no jardim e
era visível o rastro da traição: cinzeiros cheios de pontas de cigarros e caixinhas de chiclete Adams, taças de vinho pela
metade, sapatos jogados no corredor e um par de tênis fedorentos e sem qualidade. No quarto do casal, suas pernas
tremeram. Poderia gritar, interrompendo-os. Sentou-se na poltrona e, através do espelho, acompanhou o ato sexual. O
estranho empurrava com mãos enormes o infiel contra o travesseiro, enquanto o penetrava, seguidamente, como um punhal
sanguinário. O homem gemia o nome de Deus, a sua perfeição, o seu apogeu. Parecia um boneco inacabado, cujo sentido de
desejo e duração não se anunciava. O mulato limpou-se com os lençóis de cetim e relaxou, segurando um porta-retratos.
Clarice estremeceu. “Sua mulher? Formosa”. “Asseguro que é inútil e estúpida”. Teve vergonha de abrir a boca, de continuar
contemplando a farsa. Os corpos exalavam um odor insuportável. Ela mesma suava frio, as gotas escorrendo pelo pescoço.
Chorar seria correto? Deveria humilhá-lo completamente? Com as costas do marido ao alcance da mão, tocou-as e deixou o
quarto. Decidiu não questionar o absurdo. Sem declarações bombásticas. Na medida do possível, esqueceria. Seis meses
depois, ele casou-se com outra mulher rica. Clarice, se é certo que toda infelicidade encontra meios para a sabedoria, um ano
após, num verão agitado, comprara Lúcio, o rapaz de olhos azuis. Conforme sua vocação, trata-o respeitosamente, sem impor condições à sua prostituição. Hospedou-o com Cain. Lúcio considera-a como noiva; sem ofensas no tom de voz, ela recorda a transação comercial. Sabendo da incapacidade de amá-la, planeja o casamento que vai tirá-lo da pobreza. Pretendendo
inicialmente não traí-la, saiu com Darlene. Excitou-o a falta de pudor da  mulher que não lhe deu intimidades, colocando-o
para fora do apartamento antes do amanhecer: “Não durmo com estranhos”. Abusou de sua cama outras vezes. Clarice nunca
desconfiou ou fingiu nada perceber. O rapaz desenhou na cabeça que o caso entre ele e Darlene era um encontro de seres
desajustados. Também pediu empréstimos nunca pagos. Cain Infante pensou nessas armadilhas quando o acordou, contando
o processo autodestrutivo. “Vá ao Catalunha Center. Acalme-a. Tenho de estar na tevê às sete”. Lúcio foi a encontro da
personalidade multifacetada.
Cain arrependeu-se imediatamente da covardia, resolvendo acatar as mazelas que o atingiam. Parou o carro na beira do rio,
adiante da entrada do prédio. O vigia dormia com a mão no revólver. Ruídos de felinos deslizando sobre telhados. Um ônibus
cortava a avenida principal, quinhentos metros do estacionamento. Fechou os olhos, São Francisco à mente. Voltava do
trabalho nesse horário, as pernas doendo, o coração arruinado. Morava no condomínio Braços Ansiosos e, geralmente,
recebia a  visita de vizinhos e do síndico, irritados com o som alto ou os reflexos do distúrbio macunaímico de Melina. “Você
está doente e vai piorar”, disse à companheira, perdendo a paciência. Odiava as dificuldades de viver clandestinamente.
Voltaria para o Brasil.
Oco, esperava ao amanhecer outra desesperada amiga. Lúcio, acompanhado, deu uma volta em torno do prédio e estacionou. Darlene neste mesmo instante abandonou o carro no meio da rua. Cain foi ao seu encontro. “Venha dormir no meu
apartamento”. “Tenho um encontro”. O carro de Lúcio desapareceu. Cain, aflito, rodou insone pela cidade. O corpo de
Darlene logo estaria na calçada sob apavorantes sirenes. “Não se sabe se Jesus Cristo existiu. Não há qualquer registro
romano de um Cristo na época em que ele teria vivido”, contou uma ex-namorada. Foi o que veio à cabeça: a falta de um
Cristo. As cisões, as filosofias, a história. Vestiu a jaqueta de pele de cobra. A cidade adormecida, devorada  pelas últimas
sombras, e Cain Infante rodando, rodando, rodando.
 

 

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