O coração deserto,
Antonio Júnior

SEGUNDO CAPÍTULO

O grito agudo e rápido, de um carnívoro noturno, ressoa sobre o casarão a quinze minutos do centro, levando em conta que o
meio de locomoção corte a avenida, faça o contorno pelo Jardim do Ó e atravesse a ponte. Numa ladeira, cercadas por um
muro de pedra, se sobressai laranjeiras em flor, pouco mais altas do que um homem. Os largos portões levam a um jardim
japonês com riacho e carpas. Na parte baixa da varanda, uma faixa de bananeiras plantadas recentemente e um grupo de
plantas de múltiplas cores, de idades diferentes, unidas na direção sul, em uma profusão de desenho e energia. Vista da
entrada, a residência é sóbria; atravessando o corredor, a ilusão se dilui: troféus, obras de arte sem cotação no mercado,
fotografias de personalidades, estátuas de deuses gregos, anjos apagando velas, querubins, bustos de figuras históricas, plumas
de avestruz e penas de pavão se propagam sem nenhuma dificuldade, além de dezenas de pássaros engaiolados. Decoração
descontínua de conchas, folhas de acantos e toda espécie de extravagância. Um exército de humildes limpa diariamente cada
peça. Na sala de leitura, santos barrocos saqueados em igrejas exibem coroas em ouro e prata e vestidos de linho.
A dona deste palácio, Linda Beatriz, nascida sem fortuna, comporta-se entre suas paredes como uma cadela educada para
não destruir objetos preciosos. Antes de erguer a propriedade, arrastava o marido ao terreno baldio, mostrando a cidade vista
do alto: “Aqui será a minha fortaleza”. O bêbado afogou-se na piscina do Clube de Tênis, e com a sucessão de comentários
sobre os golpes da viúva, diminuíram os convites sociais. Recuperou o seu lugar na burguesia construindo o casarão em menos
de um ano e dando festas disputadas.
Retocando arranjos de flores, consultando o cardápio, Linda grita com os criados, recomendando a utilização de determinados
objetos. Um balde cheio de gelo, numa mesinha baixa, conserva a vodca fria. O telefone toca às nove da manha e não pára
mais. “Não, meu amor. Não mesmo. Não será cancelada. Pode preparar o seu vestido de renda antiga. Não é aquele
comprado em Veneza?... Claro que não vou ao velório. Não tenho intimidade com os Santos. Com licença, preciso telefonar
para os músicos”. Está cansada. O nariz arrebitado, pouco queixo, pálpebras pesadas. Telefona para Cesário Verde,
ofegando: “Sinto cheiro de fracasso, querido. Ouvi a noite inteira o farfalhar das asas de um morcego... me apavora os
pressentimentos funestos”. Bebe vodca, contornando os olhos com sombra lilás. Sente-se mal. Um médico recomendaria o
controle da ansiedade. Às dez horas chega o primeiro convidado.
Zezé, jogando o cabelo de um lado para outro, informa que muitos foram ao velório e ao enterro, e o viúvo chorou.” Que dia!
A defunta me fez perder horas. Se não fosse o atraso do maldito enterro teria tempo de escolher um penteado melhor”. “Não
me interessa comentários sobre o funeral, Zezé”. “E sobre as cartas, Linda? Ninguém confessa que as recebeu, mas é um
segredo inútil. Conversei com o seu mordomo. O homem falou do envelope longo, branco, com uma cobre carimbada. O
mesmo que Darlene recebeu pouco antes de morrer”. “O que dizem essas cartas?”. Beija Linda sem responder, e agarra a
haste de uma taça de champanha do garçon que passa. Como abertura da festa, pede ao vocalista uma serenata. Percebera o
vexamento da anfitriã. Não saberia lidar com ela esta noite, ninguém saberia.
O salão repleto. Falam em surdina, culpados da cumplicidade do coquetel de fantasia e morte. Cain atravessa a porta da
entrada com um famoso travesti. Trocam palavras cordiais com Linda. Dicção perfeita, maneiras finas, Marion fala de uma
reunião semelhante em Paris. O efeito é triunfal. Ele não está na lista de convidados. Cibene sentada do outro lado do salão, se
apavora, pensa em gritar, cerra os lábios e morde-os. A discórdia invade o seu coração como em um texto grego que arrasta
seus personagens à tragédia. Cibele fatigada, sorriso forçado, olhos mais transparentes do que o de costume. Ocorre-lhe
pesadelos. O céu de cabeça para baixo. O sentimento intolerável de solidão. Qual a causa da angústia? A presença de Cain
com um travesti? O seu envolvimento com Darlene Santos? Ela não o ama. Nunca seria devorada por uma febre emocional.
Não é um ser à procura de seu par. Linda Beatriz toca o seu ombro dardejando a cabeça como um dragão. Impossível
racionalizar um bicho desse valor. “Ele voltará para você?”. E continua: ”Entendo o seu silêncio. É realmente humilhante”. O
pânico envolve Cibele, experimentando aflições. Um grito agudo e mudo, histérico, de um só fôlego. Acossada, é levada à
suíte, no andar de cima. “Lave o rosto, arrume o cabelo, descanse se tiver vontade”. O grito primal buscando impor-se sobre
o intelecto.
O ar fresco, a chuva ainda cai, o coração de súbito se aperta. O costureiro Herbert, num concurso de beleza que Cibele
venceria, narrando naturalmente: ”Os patrocinadores não permitirão sua derrota. Admiram seu pai. Está tudo arranjado, você
será a vitoriosa”. “Não sou a mais bela?”. “Tem um triunfo maior: foi a escolhida pelos deuses”. Recebeu a faixa de Rainha da
Cidade magoada com a idéia de corrupção. Não articulou palavras de agradecimento. O namoro com Cain também foi contra
seus princípios. Saía com ele incentivando um desabamento emocional. A carta recebida sem o carimbo do correio, colocada
diretamente debaixo de sua porta, descontrolou-a. Como descobriram verdades guardadas a sete chaves? Luta com
sentimentos estúpidos e vozes distantes. A poltrona de metal de design arcaico, o obscuro e o inevitável. Joga álcool no belo
corpo e risca o fósforo. Está num lugar inusitado, a uma milha de distância da maldade, onde as montanhas são perfumadas e o
céu sem nuvens.
Marion fala da suposta importância da liberdade a um vereador embriagado: ”Quando não quero dormir, caminho pelas ruas.
Vejo as pessoas, os luminosos, as roupas nas vitrines e os rostos vampirescos. Às vezes, o táxi é a minha casa. Quando o
motorista é o mesmo, me sinto familiar, conhecida”. Cain se enche das palavras de Marion e da imagem dissimulada de Cibele
que não parara de segui-lo com o olhar. A aura frívola dos anos oitenta. Deus gravemente entediado das fraquezas humanas.
Normalizar posturas? Reinventar o nada? Já não sabe situar o equilíbrio. É uma questão de charme indolente, massacrante,
senil. Num início de verão no Central Park de Nova York, onde passavam o final de semana, Melina interpretava em voz
dramática, trechos de Jean Christophe, de Romain Rolland, enrolada em lençol imitando uma túnica romana: “A criança acorda
e chora. Seu olhar nublado move-se. Que pavor! As trevas, o clarão da lâmpada, as alucinações de um cérebro egresso do
caos, a noite asfixiante e cheia de mistérios que o cerca, a sombra sem fundo de onde se destacam, como jactos
deslumbrantes de luz, sensações agudas, dores, fantasmas: aquelas figuras enormes que se inclinam sobre ela, aqueles olhos
que penetram, que se cravam nele e que ele não compreende!... Não tem forças para gritar; o terror o retém imobilizado de
olhos e bocas abertos, estorterando o fundo da garganta”. Conseguia captar a beleza, mas Melina era somente uma fotografia
fora de foco, não tinha amor por ela. Poderia decorar Jean Christophe do princípio ao fim que ele continuaria enxergando-a de
maneira apática.
A noite é longa. Coloca o smoking na cadeira. O garçom, um anão de rosto pérfido - dessa associação do bem e do mal que
só os deficientes possuem -, informa que Cibele não se encontra bem, fora ao banheiro. Não se preocupa. Marion, com ar
bonachão, conta piadas sórdidas. O vereador, encantado, segue a conversa do travesti: as casas noturnas européias, os
amigos influentes em Brasília, a possível mudança de sexo. Duas da madrugada. Linda fatigada, o genocídio visível.
“Chamo-me Aldo”, apresenta-se o vereador pela décima vez. Marion ri. Um ruído interrompe a apresentação. A mestre de
cerimônias escorregara, levantando-se rapidamente. Aplaudem.
Cain cheira pó direto de uma colherzinha de prata, o pensamento ausente. “Posso ir?”, perguntou. “Vá e não volte”, respondeu
Melina. Ele se foi, assim como Cibele iria a qualquer momento. Agora vive de recepções, coquetéis, vernissages e lançamentos
literários. Fala tolices e exercita a insignificância. “Volta - escreveu Melina- , estou esperando”. Nem uma palavra como
réplica. Um relacionamento marcado por cenas, cartas, ciúmes, flertes, promiscuidades. Ela conversava num sofrível inglês.
Cain nem sequer acreditava em sua origem judia , tinha, pois, que se defender. Quando ela o apertou nos braços contra uma
parede, teve uma seca revelação: ela o enojava. Como quem descobre pedras preciosas e não sabe o que fazer com a fortuna,
abandonou os Estados Unidos. Milena dissera, numa noite nervosa, que o via como um junquilho na escuridão. “É trabalho
meu, nesta vida, aniquilar oportunidades”, respondeu.
As vozes alteradas dos convidados. Os cravos vermelhos vivíssimos em cada mesa. A música sentimental. Linda falando sem
parar, mexendo as glândulas mamárias enormes. Uma festa desagradável, empestada pelos burburinhos e fofocas. Que
ninguém ouse tocar o nome de Darlene em sua presença. “Preciso dar uma volta”. “É a minha presença que o incomoda?”,
brinca o vereador. Vai até o jardim. A chuva chicoteia a noite. Como um mago derrotado, acompanha à luz de uma lâmpada,
a suavidade de uma mulher dançando entre palmeiras, hibiscos, buganvílias e bananeiras. “Vem buscar-me?”. O vestido da
bailarina tem algo de coração partido. “Algum ressentimento? Eu fiz o que pude para evitar a sua morte”. Ela se aproxima, os
olhos luminosos e melancólicos: ”Mereço ser esquecida?”. A sobre-humana agilidade cerebral. A cor e a textura de cada
superfície. Ela não desejava a morte? Não a buscou dia a dia? Perplexidades existenciais, fluxos, ímpetos e ânsias
inesgotáveis. Cain, pálido, despeja cocaína numa mesa de vidro sob um coreto neo-clássico e prepara um canudo com uma
nota de cinqüenta.
Zezé se aproxima. “A senhora cheira?”. “Tomo comprimidos com uísque... Sei que não tenho direito em estar aqui,
incomodando o seu divertimento, mas necessito saber se o motivo da morte de Darlene Santos foi uma carta como esta”.
Observa os cabelos alvos da mulher, bem penteados, e a mão seca, de grossas veias dilatadas, segurando um envelope. Um
gato salta sobre uma orquídea e some na escuridão. Cain analisa a esquisita personagem como um médico à sua paciente.
“Não conseguirá nada comigo”. “Quero ajudá-lo”. “Não me convence. Guarde sua política para coitados”. “Ofenda-me,
rapaz - completa ela, enrugando ainda mais a testa larga - , mas saiba também que não quero morrer. Darlene não existe mais
por carta igual a esta. Eu também recebi uma , e bastante infame. Falei com Linda Beatriz, que também tem em mãos este
comunicado perverso e ela evitou o assunto. Acredito que Herbert é o autor desta peste”. “Por que não vai procurá-lo? É o
que lhe resta”. “Não estou mentindo. A letra de cartilha, o papel francês, a maldade, o compromisso com a infelicidade, a
egomania e a auto-indulgência são signos daquele verme”. Cain supõe que o cheiro de farmácia vem do medo da
decomposição. Ela emagrece com a velhice, os ombros curvam-se, a fisionomia alterada com a plástica apressada, o corpo
flácido. “Que peça quer pregar, minha senhora? Por que eu tenho que ser personagem deste jogo bizarro?”. Zezé, não
podendo aceitar palavras duras, deixa o jardim. Darlene ri sem controle. Cain torturado: a memória infalível. Todos, mesmo se
fossem sinceros, não valeriam uma conversa de cinco minutos.
“Herbert Henrique é o autor dessas cartas infames que a gente respeitável dessa cidade vem recebendo nos últimos dias”,
denuncia Linda ao microfone. A frase soa clara, definitiva, cortando cabeças como uma guilhotina afiada. A orquestra toca um
jazz popular. Cesário Verde arranca a toalha de sua mesa, derrubando copos e um cinzeiro de cristal. “Você é uma meretriz
sem classe. Se ousasse me ofender assim publicamente cortaria a sua língua!”. Agarra a esposa por um dos braços e sai sem
olhar para trás. Destruída, Linda atropela cadeiras e mesas. Luzes e fogos de artifício explodem no ar. Rasgara-se
definitivamente a paz de espírito. Copos partidos, músicos guardando seus instrumentos, os convidados desaparecendo sem
despedidas, garçons limpando a batalha. A acusação de Linda badalando como um sino diabólico. A festa terminada. Então,
um grito apavorante. Os convidados que saíam voltam-se para a criada. ”O que falta acontecer?”. “Encontrei uma mulher
queimada na suíte de madame”.


 

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