O coração deserto,
Antonio Júnior
TERCEIRO CAPÍTULO
O leve oscilar da lâmpada, levada ao vento vindo da balaustrada,
desenha traços oblíquos na parede. Marion fecha a janela,
retira a peruca e se deita agarrando a parte dianteira do corpo do
vereador. Beija-o de um lado e de outro. Aldo responde
como um animal domado. Sentado numa poltrona observando a cena, Cain
e sua mágoa inerte. Por que não lhe deixam livre?
Em volta da boca, um tremor reflexivo. Em cima da bandeja, a pedra
de pó. O obeso dobra os lábios e pragueja de
brincadeira, envolvido nas tramas do deleite, como uma mosca afogando-se
na sopa. “Tudo se desmoronou. Acreditei que
podia confiar no conhecimento, que deveria me equipar no plano intelectual,
e nada era verdade”. O motel rosa, a piscina de
hidromassagem, a cama redonda. “Ao diabo essa depressão!”. O
apartamento, se preciso queimá-lo, não seria de grande
perda, mesmo sendo o ponto de encontro mais cobiçado, onde os
noivos passam lua-de-mel e casados levam amantes. Os
motivos complexos, a vigília. Cain de olhos confusos e a face
lisa, sem rugas. O riso é ingênuo, delicioso. O andar pouco
firme, trôpego, passos rápidos e nervosos. Conhece o ser humano,
é capaz de descobrir a ignorância e a enfermidade dos neurônios
com uma olhada. Observar Aldo e Marion abraçados é o mesmo
que apertar brasas na palma da mão. A sua carne sofre, a lógica
é rasteira. A tendência ao martírio leva-o pactos.
“Obedeça sem discutir, Marion!”, impõe o vereador. “Envelheço,
e
minha carcaça dói”. “Cada coisa a seu tempo - avisa o
homem - Vamos acabar a droga”. Marion coloca a peruca. É uma
mulher sublime mesmo com o pênis pendurado entre as pernas. Ela
mergulha os lábios numa dose dupla de uísque,
impaciente. “Diga o que quer, mulher. Dinheiro?”. Aldo tira a carteira
do bolso e joga notas para o alto. “Quero o paraíso”.
“É honrada como minha esposa?”. “Sou uma puta eficiente cansada
de motéis”. Ela continua, sem fôlego: “Nunca amei um
homem. Por que então cheguei a tornar-me fêmea?”. “Não
me ama?”. Não o ouve. Põe o vestido, escova os cabelos
artificiais. Os longos cílios e as lentes violetas são
quase uma marca pessoal. Aldo sorri, devorando o uísque. É
um comediante de cinema mudo, uma calamidade exagerada. Pensando um segundo
sobre a noite, perderá o controle. A cada fungada no pó,
destila gotas de sangue. Marion abre a cortina, deixando invadir a claridade
soturna de inverno. “Então - vira-se para ela -, o que será
de nós?”. “Podemos passar o dia inteiro presos neste inferno”.
O céu plácido. Todos os tons do arco-íris. Cain
enternecido. Será que poderá escapar? Na porta da casa dos
pais vê uma
ambulância. Como poderia estar morto se ainda enxerga o amanhecer?
A mãe na varanda: ”É melhor ficarmos calados”. Os
sinos tocam. Sempre que um sino badala, um anjo passa, dizia sua bisavó.
Nada vê no infinito, além da solidão. O pai e Cibele
no mesmo pavilhão do hospital. A moça não morreria,
não que volte a ganhar concursos de beleza. Na UTI, através
de uma vidraça, enxerga os olhos úmidos paternos. Perturba-se,
é a segunda vez que o coração dele falha. Chorava
noites inteiras, deprimido, enquanto fumava um cigarro atrás do
outro. Cain numa escuridão desconhecida, numera gemidos. A enfermeira
lúbrica toca em seu ombro. Ele poderia cuspi-la. A mulher de uns
trinta e cinco anos, a farda apertada desenhando uma carne robusta. A mistura
de sexo e dever profissional, enojam-no. Talvez fosse burlesco convidá-la
para sair após o expediente, à beira do sofrimento. Baixa
os olhos, deixando a sala sem olhá-la. O silêncio o enlouquece.
O idoso numa tumba de vidro, sem movimentos, olhos dilatados. A vibração
sinfônica de personagens doentes. Cain avança por corredores
e escadas, cumprimentado por desconhecidos e envergonhado de ser herói
de tevê.
O vento forte. Vê-se estragos causados por ele, o mais comum
são galhos arrancados de mangueiras e latas de lixo viradas.
Despidas as velhas árvores. Sem sono, visitaria Clarice, uma
pessoa de confiança, e falariam de Darlene, das cartas anônimas,
da sucessão de acontecimentos mórbidos. Seria como saquear
túmulos. Reforça o uísque, bebe a dose de um gole
e fica
indeciso se valeria beber outra. Clarice cruza as pernas longas, retoca
unhas. “Desculpe-me o silêncio, é que estou
parcialmente destruída”. O rosto vermelho, suado e o olhar vago.
A roda inalterável da superficialidade. Onde a discussão
metafísica, a erudição filosófica?. “Acusei
Lúcio da morte de Darlene. Ele irritou-se e foi embora. É
um mentiroso, leu uma
carta não assinada cheia de elogios à sua pessoa, dizendo
que será o único perdoado”. “Tanto horror. Como o delegado
pode afirmar que foi suicídio?”. Com uma das mãos brincando
com o cigarro, Clarice atende o interfone. A secretária avisa do
compromisso às quatro. Ele despede-se. Um epílogo silencioso.
Em casa, procurando ser gentil, oferece uísque à Lúcio.
Na primeira página de um jornal jogado sobre o sofá, a morte
de
Darlene e a falência de Cesário Verde, dono de imóveis
e proprietário de uma rede de tevê. Lúcio, na janela
do vigésimo
andar, fulmina a província. Os olhos enormes são características
de sua pessoa. Ele recusa admitir um Deus, não acredita na
Sida e acha que os fascistas nunca serão exterminados. “A imbecilidade
goza de imortalidade. Os neonazistas na Alemanha
reunificada, o moralismo norte-americano, a liberdade ameaçada,
as perseguições, a fome do Terceiro mundo. A demência
atinge recordes”. “O que será de nós, Lúcio? Nunca
me senti tão perdido. Lembro de Melina dizendo: Você é
uma flor na
escuridão. Ou seria, você é um junquilho -minha
flor favorita - na escuridão?”. O telefone toca, Lúcio em
volta do aparelho
como um réptil pronto para o ataque. Atende-o. “Claro que estou
sozinho... Soube da concordata, está no jornal de hoje... A
mulher de Cesário vai superar o trauma na Iugoslávia?
Ela tem uma santa protetora lá? Imagino o tamanho do pau desta
santa... Tenho que desligar, Nilsinho”. A amargura impõe-se
em círculos. As confissões acompanham-no e ele nunca afirma:
“Não quero ouvi-las”.
Abatido, Cain Infante folheia um romance. Os dedos dormentes, pesados.
Ao lado do livro, junto da garrafa de uísque e do
balde de gelo, sente dificuldades em juntar as peças do quebra-cabeças.
A morte de Darlene impunha-se como a peça
principal. Deve investigar o crime? Ramón sabe algo? Lúcio
merece a suspeita de Clarice? Vê-o roncando no sofá. “É
um
tempo de trevas crescentes”, acredita. Darlene flamejante com seus
cabelos vermelhos em um coquetel para políticos. Os
homens devoram-na insinuantes. Ramón não perde a mulher
de vista. Tomando doses duplas de uísque, ela se faz acompanhar
por Cain. Não suportava viver mais um segundo neste ambiente, parece
guardar uma visível vingança. Com gravidade, revelou: ”Agarrei-me
ao supérfluo, aos artifícios, às impossibilidades,
às vaidades culturais, aos sentimentos alternativos, às páginas
de exibição, às performances minuciosas, aos happenings
galantes, às riquezas de forma, aspirando sempre a extensão
do caráter, e nunca cheguei nem de longe a isso, tornei-me um monstro”.
Os olhos nebulosos, as mãos duras. Uma senhora despede-se.
Ela é formal. “Desprezo as enfadonhas...Essas donas-de-casa
e suas receitas de bolo só merecem o suicídio, o sexo bárbaro,
o crime, a ironia, o vício, o adultério e a perdiçao”.
Cain compreende que Darlene não pode ser ajustada em critérios:
uma
contunde cabeça deslocada, de diálogos agudos: ”Nada
de coerência ou modéstia, rapaz. É um tempo de trevas.
Por que
refletir sobre a responsabilidade, a lealdade e, sobretudo, a retribuição?”.
A iluminação avermelhada do Shangai. A proprietária,
uma velhusca com físico de quem gastou a vida nas madrugadas, atende
clientes que berram. Cain senta ao lado de um aquário. Um adolescente
vigia-o com hesitação frouxa. O rosto é sonso, os
cabelos molhados e o andar despreocupado. Não tem mais que dezessete
anos. “Conheço você da televisão. Eu sou o
Jean-Pierre”. “O que quer?”. “Um conhaque. Há mal nisso?”. Pede
conhaque e uísque. Com exceção de um advogado
boêmio, cercado por prostitutas, os clientes são vagabundos
piolhentos. Jean-Pierre arrasta a cadeira e encosta o joelho na
perna de Cain. “Pode parar”, corta o repórter. O garoto não
se encabula com a derrota do método. É bastante magro, usa
camiseta de malha branca, apertada. Da abertura dela, sai uma corrente
dourada. “Eu conheço esta cidade, o segredo das
pessoas, o jogo de interesses, sedução e dinheiro. Eu
estou aqui e ali”. A proprietária interrompe o discurso do garoto:
“Salve! Apresenta-me o seu parceiro? É o moço da tevê,
não? Eu sou a Hilda. Vou mandar um trago por conta da casa”. A mulher
se afasta, um poeta oferece livros mimeografados de mesa em mesa, porém
não consegue vendê-los. Cain deseja ir embora, mas Jean-Pierre
tem tão boa aparência e é tão alegre que poderia
ficar mais uns minutos, reverenciando a beleza canalha. “Eu me dou com
gente da alta. Conheci a grãfina que morreu. Fui buscar umas muambas
no Paraguai para ela. Parte da mercadoria foi presa, obrigaram-me a falar
para quem eu levava os batons, uísques, perfumes e videocassetes.
Ela gastou uma nota para não parar nos jornais”.
As palavras cortam como navalhas, o passado complexo de Darlene, a
intensa nitidez. Uma mulher sujeita a metamorfoses.
“Quero cocaína”. “Receberei gorjeta?”. Acrescentou: ”Pode cheirar
comigo”. “Confie em mim. Quantas gramas?”. “Duas”.
Pega a grana e aproxima-.se de três homens beirando os cinqüenta
anos. O de olhos caídos passa a mercadoria por baixo da
mesa, recebe o dinheiro e pragueja.
Sob um céu indiferente, Cain deixa o Shangai. Não sabe
onde ir. Pára o carro ao lado de uma ponte. “Este lugar é
perigoso”,
diz o garoto. “Perigoso para quem?”. “Deste ponto, o filhinho-de-papai
jogou a namorada depois de matá-la com um tiro de
fuzil na testa. Ele colocou a morena num saco cheio de pedras, atirando-o
no rio. Você deve saber dessa história mais do que
eu”. O barulho das águas. Uma canoa com um pescador. A menina
no fundo do rio, atrelada ao limbo. “Você quer que a
gente fique junto aqui?”. “Pegue a bandeja no porta-luvas”. Cheiram
em silêncio. Sempre que Jean-Pierre tenta abrir a boca, o outro toca
os seus lábios com a ponta do dedo. “Não vai aproveitar?
Não me acha bonito?”. “Cale a boca e cheire”. “Muito
bem, mudo de assunto. Um amigo meu, um político, disse que na
região o consumo de cocaína aumentou 100 % no ano
passado e que há muitos crimes ligados ao pó que são
abafados”. Cain fecha os olhos. Abre-os ao sentir que Jean-Pierre
morde o seu pau. Ele havia retirado a camiseta. Cain liga o carro,
mal articulando as sílabas desencontradas. “Melhor deixá-lo
aqui, no coração da cidade, neste lugar perigoso”. Não
aperta a mão dele, nem sequer o olha.
Por volta das três da madrugada, se encontra na montanha Castália.
A estação de tevê metros adiante, a escuridão
completa e ele conferindo a dimensão heróica do vazio. É
um anjo do mal. Qual seria o meio de salvação? Está
submisso ao destino
milenar, autocrítico, absoluto e, se ameaçado, perigoso.
A instituição da derrota. O regresso não é
possível. Um homem de
trinta anos, sem direção, numa madrugada chuvosa. A estrada
de chão iluminada com a luz lunar, nunca a de mercúrio. No
mato queimado, múltiplos troncos petrificados. A noite se faz
de sutilezas. Estaria arriscando a sua vida, a sua glória? Por que
o pavor? Darlene o observa? Com o rosto borrado, escondendo seus poucos
valores, furtivamente penetra na calada da noite. Dormiria à base
de barbitúricos.