O coração deserto,
Antonio Júnior
QUARTO CAPÍTULO
Deixando os lençóis, Hilda abre a gaveta superior do criado
mudo, procurando uma passadeira. É uma mulher de quarenta e
sete anos. Nos primeiros tempos, um bocado magricela, fazia ponto na
Rua do Correio, ao lado de um terreno baldio,
entrecortado de arbustos amarelos. Do seu posto de observação,
esperava a juventude de dinheiro. Com um deles,
engravidou duas vezes. O primeiro filho entregou ao pai. O garoto atualmente
anda metido em complicações, com estímulos
pouco honestos. A cria mais nova, colocou num colégio de primeira,
custeando depois uma viagem de estudos a Paris. Há três anos
não tem notícias. Com os filhos no mundo, tomou fôlego,
vendeu o bordel Paradise que montara a duras penas, passando meses viajando
pelo litoral e com as notas restantes abriu o sórdido Shangai, não
largando quase nunca o local. Quando cansa do bar, recebe bêbados
sem exigências no quarto onde mora. Diz-se que foi responsável
pela iniciação sexual de metade dos homens da região.
Ela ri, sem entusiasmo, confirmando. “É caso que se deva vangloriar?”,
pergunta o cliente, vestindo a
camisa suada. “Não enche!”. O homem bate violentamente a porta.
Hilda na beirada da cama, a pele doentia. A blusa de
algodão aberta, o soutien negro iluminando a carne branca. Os
longos cabelos ajudam-na em sua interpretação de rainha
caída. Examina as notas deixadas em cima do lençol, amassando-as
e metendo entre os seios. Prende o cabelo, acende um
cigarro e, mesmo com o cheiro de perfume barato, o efeito é
sincero. Sacode os ombros. Numa certa idade não há mais
amargura. Teve chances de abraçar a tranqüilidade, recebendo
inúmeras propostas de casamento ou de deixar a cidade, mas
as descartou. Abre a torneira. O banheiro coberto por posters de artistas.
Estuda expressões, acaricia a face e fecha a blusa.
Cospe sangue, lamentando a falta de um calmante. “Preciso dar uma volta.
Tomar alguma droga”. Acende outro cigarro e sai
na chuva.
Uma chuva grossa e repetida. Em 1967, no lamentável mês
das enchentes, quando o município se afogou, amantes disputavam
sua companhia, enquanto fazia reparos na casa semidestruída pelas
águas. A beleza ficara para trás. Deixa as lembranças
de
lado, ao sentir que é seguida. Se apressa, e aos pouco cede,
diminuindo os passos. Sabe que o destino prepara mais uma de
suas peças inevitáveis. Ao virar a esquina, cambaleia,
deixando a bolsa a tiracolo cair. Um homem agarra-a pelos pulsos:
”Como tem passado?”. “Quem é você? Eu não quero
sexo. Estou doente”. “Não tem importância. Venha, pagarei
bem”.
Acompanha-o, sentindo o sangue subir-lhe à cabeça. Ele
mete-a num carro confortável. No motel, o feio de ombros largos
e
estrutura forte, enfia anéis nos dedos enrugados da mulher.
“Está brincando? O que quer que eu faça?”. “São verdadeiros
e
são seus. Roubei de uma zinha que não precisa deles”.
“Pois aceito! Estou lá me importando”. Inerte, apático e
romântico, tira
suavemente a roupa de Hilda. Parece contente vê-la nua. Oferece
vinho, ela finge alegria. “O senhor não é má pessoa.
O caso
é que não me conhece direito”. “Sim, sei tudo sobre sua
vida. Papai me contou toda a sua história”. Ela cala-se, teme continuar
a conversa. Não fazem sexo, o jovem adormece no seu colo. Um ronco
dócil. Ela afasta os braços compridos do amante que
poderia ser seu filho, ajeita o cabelo, retoca a maquilagem e, pronta,
rouba a carteira do bolso da calça pendurada em uma
cadeira. Salta a janela e atravessa o jardim.
A água arrasta frutos podres na praça da feira livre.
Hilda acomoda-se numa barraca de flores, embaixo de uma marquise. Os
vigias adormecidos. O temporal acabou com a sua pintura, criando-lhe
uma máscara cubista. O vestido de lamê verde, justo, é
inadequado. Ratos fuçam o lixo. Ela ri, tosse e sangra. “Quanto
tempo vai demorar para morrer, moça?”. Os olhos rolam nas
bolsas de banha. Um homem de branco protegido por um guarda-chuva atravessa
o seu caminho sem olhá-la. Seria um Anjo?
Ela procura um cigarro na bolsa, acende-o. O Anjo já está
longe. As aflições começam a se agravar. “Eu poderia
ter dito: Oi
bonitão, tem um fósforo?”.
A calçada coberta de barro vermelho. Daqui a horas os ratos
brincarão com o seu corpo. Será que terá importância
sua morte para os filhos? Tira os sapatos, andando na ponta dos pés.
A chuva é severa, um raio parte uma árvore. “Hilda!”. A voz
é cheia de energia. Com dificuldades, deliberadamente frágil,
localiza quem a chama, reconhecendo Jean-Pierre. De um salto, ele a beija.
“Você parece uma boneca de trapo. Está com uma péssima
aparência. Venha comigo”. Leva-a para um hotel barato ao lado da
rodoviária, retirando o vestido molhado e a envolvendo em lençóis
quentes. Ela ri sem ânimo, a voz fininha e
trêmula, quase não se escuta o que diz. “Está melhor?”.
”O que quero é morrer”. “Deixa de besteiras. Quer que conte como
foi minha noite? O cara da tevê não quis nada comigo e
me deixou na chuva perto do rio. Então um enfermeiro me convidou
para passar umas horas com ele no dormitório do hospital. Era
aquele que passou por você”. “Não estava mal”. “Não
me
aborreceu, é o que interessa”.
Jean-Pierre risca um fósforo para queimar o silêncio doentio.
Não sabe o que fazer com ele, terminando por jogá-lo no chão
de assoalho, apagando-o com o tênis. ”Passei dias neste hotel
esperando um homem que amei. O quarto era outro, deserto e
mofado. Numa tevê, imagens desfocadas em preto-e-branco. Eu cantava
uma canção boba, sentimental, em espanhol. Ele
nunca voltou. Será que o tempo não passou e continuo
a esperá-lo?”. “Não desanime, garota, amanha estará
pronta para
outra. É que você bebe com um certo exagero”. “Tecem o
vento. Não tenho fantasmas, / Um velho numa casa onde sibila a
ventania / Ao pé desse cômoro esculpido pelas brisas.
/ Após tanto saber, que perdão?”.
Hilda morre. Tanta batalha para nada. Lembra o sermão do pai:
”Não vá se preocupar quando já for tarde demais”.
O pai que anda sempre nu da cintura para cima, pois acha que tem um físico
espetacular. Trabalhou como policial e aos quarenta anos nada tem. Em sua
angústia, segura o filho único pelo pescoço, obrigando-o
a olhá-lo: “Procure uma vizinhança melhor, não se
meta neste bairro. Abandone-nos. Coma esses pederastas e arranque deles
todo o dinheiro possível”. “Está entendendo mal”. “Reconheço
garotos do seu tipo. Não o estou censurando, somente exijo que faça
o serviço bem feito. O meu pai foi um
guardinha fudido que matou o filho de um magnata na frente de todos.
Não parou na prisão, pois cumpria com o seu trabalho,
mas pecou pela honestidade. Morreu sem um vintém. Entende? E
eu repeti a mesma merda”.
Hilda morta e ele lembrando um pai que não lhe interessa para
nada. Ouve o som de um caminhão de lixo. Abre a bolsa da
mulher e encontra a carteira roubada: dinheiro, cartões de crédito,
talão de cheques. Leva também os anéis, deixando os
documentos sobre o criado mudo. É um pária, um desajustado,
escondendo suas chagas debaixo de mentiras e subterfúgios.
Ao amanhecer toca a campainha estridente de Herbert Henrique. O cadeado
fechado, uma luminária brilhando entre
bananeiras. Nenhum ruído. Por que a demora? O costureiro acorda
cedo. Jean-Pierre é um visitante habitual desta fortaleza,
traz suburbanos dispostos a ganhar trocados. Herbert presenteia-o com
roupas e permite que beba o quanto puder. Aparece
uma vez ou outra, ficando à disposição.
Não havia perguntas e pouco falavam. O garoto acolhe de bom agrado
as
manifestações de simpatia. Não faz parte do círculo
de amizades de Herbert, mas se sente confortado com a cortesia. A
natureza dele apresenta, nesses instantes, um aspecto digno e grave.
“Sente-se, meu rapaz” - e depois de cinco minutos,
oferecia um cuba-libre.
Na noite de quinta-feira, a mesma que Darlene morreu, levou um mecânico
bonito de cérebro de passarinho. Herbert tratou-os formalmente.
Altas horas e várias pessoas de distintas classes reunidas no quarto
principal. No vídeo, um filme sem público de
Gus Van Sant. River Phoenix caminhando numa estrada infinita. Os convidados,
perfumados, preparando-se para uma noitada no Registro 69, um clube notório.
Jean-Pierre acompanhou pratos esquentados nas chamas do fogão, giletes
destruindo grãos
e formando carreiras finíssimas. O telefone tocou, Herbert atendeu-o,
conversando em voz baixa: “Passe amanha. Sim, estou
acompanhado... Não, não sei de nenhuma carta”. A ansiedade
anuviou o rosto de alguns. Herbert conserta um quadro na
parede supostamente torto, oferecendo uma nova roda de drinques.
Um gordinho de voz aflautada revelou o que não devia
ser dito. ”Não fiquem calados. Todos nós recebemos a
maldita missiva, e somente Linda Beatriz poderia ter feito essa
desfeita”. “Percebe o que diz? Não vê que é uma
acusação possivelmente infundada?”, indagou outro, em pânico.
O acusador
se voltou, brusco: ”Vocês acreditam que essas cartas são
rugas que podem ser eliminadas com uma cirurgia? Elas são os
primeiros demônios de um tenebroso inferno. É preciso
falar delas para vulgarizar sua importância”.
As recordações são interrompidas com passos rápidos
vindos da varanda, em direção ao canteiro de azaléas.
Jean-Pierre se
esconde. Herbert não se comportaria assim, apareceria na escada,
jogando a chave. Um jovem de olhos azuis, a camisa
manchada de sangue, deixa apressado a residência, abandonando
um papel amarrotado na calçada. A névoa da manha não
permite enxergá-lo perfeitamente. Um barulho de automóvel
partindo que, logo em seguida, passa velozmente com uma
senhora ao volante. O garoto coloca o papel no bolso. Sobe a escadaria
e vê através de um espelho um corpo na sala de
entrada, mexendo-se num mar de sangue. Ao lado da vítima, uma
faca. O costureiro tem os olhos abertos e aperta o peito
com as mãos, como se quisesse evitar a fuga do líquido
rubro. “Foram facadas impiedosas, meu rapaz. Eu contei-as como
quem conta carneiros para dormir. Não chame a polícia,
apenas disque o número do pronto-socorro mais próximo e passe
o
telefone para mim. Depois, vá embora. Evitaria complicações
para você”. Jean lê a carta deixada pelo criminoso. Não
leva
assinatura e é endereçada a Herbert. Trata-o como um
monstro. Conclui que homem possuidor de tamanhas vergonhas pode
perfeitamente coroar sua existência com facadas. Por que não
matá-lo de uma vez? Sempre pensou em exterminar um
velhaco, seria como pisar num inseto. Faz um barquinho com a carta
e o coloca numa poça de sangue, surgida de um filete
vindo de um dos orifícios. Enrola o vídeo numa toalha,
põe debaixo do braço, liga a tevê e vai embora.
Depois de vender o roubo na oficina de um parceiro, aceita a carona
de um homem maduro, de óculos de graus pesados, que
promete um cigarro de maconha. Ele cumpre o trato e em troca passa
o braço em torno do pescoço de Jean. “Não está
feliz?”. O garoto o analisa como um ator fracassado ao ouvir de sua
boca uma piada inútil. “Vou levá-lo a um lugar
encantador”, diz, marcando as palavras como um professor primário
ensinando uma criança pouco instruída. Na porta de uma
casa dos anos cinqüenta, param o carro e sobem uma escadaria estreita.
“O padre! O padre! Onde está o padre?”,
assanha-se o homenzinho. O padre surge. Não está de batina
e Jean o conhece da igreja do bairro onde mora. Passam para
um quintal coberto .Música oriental, sanduíches, um Cristo
crucificado num altar e uma piscina pequena e portátil com
rapazinhos nus. Brincam jogando água um no outro. Com um sorriso
terno, o padre convida Jean a participar da farra. “Vá,
menino!”, incentiva o de óculos ao acabar de cochichar. “Não
aprecio piscinas, mas se o que interessa é que eu fique nu, não
há problemas”. Dois garotos iniciam uma discussão selvagem.
A balbúrdia chega ao fim quando um deles chora e resolve ir
embora; outros o acompanham. O padre angustia-se como um náufrago
numa ilha deserta. Jean-Pierre se cansa do circo e,
enquanto a besta de seu companheiro conversa sem parar, solucionando
o incidente, aproveita para ir partir sem ser notado.
Uma movimentada manha de tempo sombrio. Atravessa metade de uma longa
avenida e numa lanchonete, na praça do relógio, pede um cachorro-quente.
Do banco onde está sentado, vê Ramón Santos
no seu escritório num segundo andar de um
prédio tradicional. O deputado raramente aparece na cidade,
vive no Congresso ou nas fazendas, talvez resolva coisas em
relação a morte da esposa. Um ventilador de teto rodopia
sem parar. Ramón surge à janela, impaciente. Jean devora
rapidamente o lanche, enquanto disca de um telefone púbico.
“Não vê, senhor? Estou em frente ao seu prédio”.
A sala deserta, sem secretária ou assessores. “Pois é,
este é o nosso segundo encontro...”. Jean numa poltrona verde-limão
acende um dos cigarros do estojo em uma mesinha de vidro, dirigindo
um sorrisinho nada sadio para o político.
Empalidecendo-o. O deputado hesita, antes de perguntar: ”Esteve com
minha esposa na noite de sua morte?”. Os olhos
brilham ferozmente, ao mesmo instante que os músculos se enrijessem.
“Explique direitinho”. Ramón, com um tique nervoso
nos lábios, não tira os olhos do interrogado. Jean ,
tragando lentamente a fumaça do cigarro, mente: ”Levei cocaína
para ela e
estava bem viva”. “Estou tendo problemas com você, rapazinho”.
“Nunca abri a boca”. “Minha ex-esposa me chantageia. O
que disse para ela?”. Os homens de pé, frente a frente, sob
o ventilador histérico. Jean perde o sentido de realidade durante
esse êxtase e volta a si graças a uma frase piegas e ameaçadora:
”É uma pena que tenha chegado a esse ponto”. “Senhor, eu
não sei o que fazer. Não estou envolvido diretamente”.
Vem a mente o corpo de Herbert molhado de sangue. Aconteceria o
mesmo com ele? Aproxima-se ainda mais, segurando o braço peludo
do deputado quase como se o amasse. “Não me toque,
seu verme. Que diabo pensa que sou? Seu amiguinho? Como pode acreditar
em afeição, levando a vida que escolheu?
Enlouqueceu? Você é um delinqüente e nada mais”.
Ramón agarra os cabelos do outro, jogando-o ao chão. Acerta-o
com
vários pontapés. Jean lança um grosso cinzeiro
contra a testa do endemoniado, jorrando sangue como um poço de petróleo.
Procura escapulir da jaula, mas a porta está trancada. Os olhos
apavorados passam por todo o escritório: os livros vermelhos
e verdes, os móveis modernos, o casaco cinzento de Ramón,
uma garrafa de uísque e uma cafeteira, o retrato de Darlene
numa moldura, a brasa vacilante do cigarro. “Você vai me pagar,
canalha”, ameaça, retirando de uma gaveta a pistola alemã
com silenciador. Aponta-a para a cabeça de Jean-Pierre, este
fecha os olhos com gravidade: “ Vai destruir sua carreira,
senhor? Sou apenas um puto sem dono, por assim dizer. Com a minha morte,
nem mesmo meus pais chorarão. O certo é que
não o deixarão em paz em busca de uma polpuda indenização
para não abrirem o bico”. O deputado baixa a arma. Jean se
apodera da penca de chaves. Está livre.
Sob um céu nublado e trovões, Jean espera Lucélia
na porta do Cine Marabá. Fora informado que ela faria ali um transação
importante. A mulher maltratada salta do carro, não se preocupando
se é seguida. Ao colocar o salto agulha no chão, tropeça.
Um gato preto cruza a calçada. Ela não ajeita os cabelos
despenteados, colocando o bilhete de entrada na urna, sem acordar
o porteiro adormecido. Enquanto na tela um personagem fuma nervoso,
na platéia uma forma masculina levanta-se de uma das poltronas de
forro sintético, deixando um pacote. Lucélia contorna a sala,
entrega o envelope com o dinheiro e apanha o
material, seguindo discretamente o traficante que entra no sanitário.
Arma em punho, dispara dois tiros contra o negro,
recuperando as notas. Na porta do carro, é abordada por Jean-Pierre.
“O que quer?”. “Vi o crime”. Ela convida-o para
entrar.
Em cinco minutos estão em frente a um portão de ferro,
vendo-se o jardim sem flores. Entram. “Não tenho paciência
para
cuidar de plantas. Moro com meus filhos em outro lugar. Aqui é
o meu refúgio”. “Não percebe o que passa? Você matou
um
amigo meu”. Os olhos dela se dilatam e os lábios, entreabertos,
mostram dentes sujos de nicotina. “Um amigo? O que tenho a
ver com seus amigos? Sim, matei um bandido que me cobrava o tempo inteiro,
que ligava para minha casa dias seguidos...
Talvez tenha matado também a fulaninha, a Darlene, e estou com
o espírito em paz... Um homem, uma mulher... O que
importa? Estamos todos condenados”. “Sei que não matou Darlene...”.
Ela não responde. Acomodam-se no galpão. Não
existem móveis, um cenário inacabado com almofadas, uma
minigeladeira e centenas de livros em desordem. Uma jibóia
dorme enrolada. “Chama-se Alice e é minha melhor amiga. Não
tenha medo, é melhor que muita gente”. A chuva volta a cair,
um cão late furiosamente. Ela fecha a cortina, concentrada como
uma ave de rapina. Jean-Pierre não tira os olhos dela e
respira aliviado quando o revólver é guardado entre uma
pilha de livros. Ela aponta o uísque, o garoto prepara as doses.
O pó
é colocado em cima de uma enciclopédia. Cheiram sem esquentá-lo,
os grãos rasgando narinas.
Jean espreguiça-se, confuso e desconcertado, e também
prazeiroso em estar com uma assassina sem remorsos. “Abandonei
Ramón e fiquei só. Não suportava o discurso moralista
de um grande ladrão. Quando ele começou a sair com Darlene,
senti
pena dela, e depois a odiei pela forma mesquinha como tratava meus
filhos. Não que eu goste deles, mas é evidente que tem
todos os direitos de acesso a fortuna do pai... A verdade é
que eu odeio crianças... Conhece algum ser humano que gosta
sinceramente de uma criança?”. Jean não parece interessado
no monólogo em tom de voz mecânica. O ambiente não
é
confortável e a cobra movimentasse lentamente num canto de parede.
“Passei episódios inconsoláveis nesta cidade. Recebi até
cartas ridículas e não me deixei abater. E então?
Oh, então, o fracasso ficou fora de moda. Por que falo do fracasso?
Quem ganha e quem perde nesta vida?... Tenho medo. É a verdade direta
e simples”. Por um momento desconsolada, se serve de uma dose de uísque.
“Ah! Por que há de haver tragédia em tudo? Venha, me
beije. Estou com os nervos gelados”. “Não seria capaz. Esta é
a melhor forma de não decepcioná-la. Uma vez lhe disse que
preferia deitar com senhores como o seu ex-marido. Não mentia”.
“Poderia ter sido diferente - completa em tom de confidência- Poderia
puxá-lo para junto de mim e aliviar-nos”. Faz-se uma pausa. Os olhos
negros rasgados, frios, demasiadamente juntos. “Está bem, bichinha,
deixo você partir. Vê como eu tenho virtudes? A principal delas
é que minto para mim mesma”.
Anoitece. Jean ergue os braços para o céu bordado de
nuvens turvas e opalescentes. Havia tempo para comprar uma camisa
de marca, tomar um banho em uma pensão e buscar outra noite
divertida. Tudo o que está ao alcance para torná-lo feliz
será
realizado. “Aaah! Está a ficar melhor!”, grita para a
rua desabitada.