A SAGA DOS VÊNETOS
Tenini
PRIMEIRO CAPÍTULO |
Giuseppe Brunetto interrompeu
a arrumação da mala e foi à janela da ampla vivenda,
que todos chamavam de castelo. Nascera ali, na casa cercada por um imenso
bosque, onde árvores frutíferas e as flores, um dia, foram
cultivadas com esmero. Olhou para o jardim, agora em abandono e divisou
as doze pequeninas estátuas de anõezinhos que davam idéia
de um lado meio infantil ou burlesco dos moradores... Giuseppe, adolescente,
protestava contra aquelas esculturas, pois achava que o pai deveria substituí-las
por outras de melhor gosto estético. Mas, o pai, não dava
ouvidos e a casa passou a ser conhecida como Castelo dei Nanni... Nevava
na pequena aldeia de Montebelluno, e o panorama lhe pareceu mais triste
e desolador. Havia sinais de destruição por toda a parte,
após a dominação austríaca no norte da Itália,
que durou de 1815 a 1866. Estava em 1880 e não havia mais o que
fazer, a não ser fugir dali... O pai, Domênico, sempre se
mostrou contra os invasores austríacos. Estivera preso e fora condenado
à morte, por esconder em sua casa, patriotas italianos. Havia recebido
indulto do Rei da Áustria, por intercessão da Rainha Sissi,
que atendera um pedido desesperado do Vaticano, horas antes da execução.
Vários membros da família Brunetto eram vinculados ao clero,
entre os quais importante Bispo, por esta razão o Papa intercedera
em favor do condenado. Assim, Domênico foi libertado, sob a condição
de deixar a Itália, o que não chegou a ocorrer, face aos
acontecimentos políticos que restabeleceram o norte da Itália
para os italianos... Os seis meses em masmorras e sevícias abalaram
o velho Domênico para sempre. Nunca mais seria o mesmo.
Giuseppe, primogênito
de Domênico e Gioconda, havia estudado no Seminário, por imposição
familiar, mas nas vésperas de ser sagrado Padre, desistiu,
não se achando talhado para a vida sacerdotal, devido a sua inquietude
para coisas terrenas . Voltou para casa e encontrou a mãe, em desespero
e doente, às voltas com a indústria do pai, que fora importante
fabricante de instrumentos agrícolas e de ferrovias. Tentou agilizar
os negócios familiares, mas não havia compradores para o
material produzido, nem tampouco, operários para a produção
da pequena industria. Todos haviam ido embora. Só havia uma salvação,
deixar a Itália e imigrar para os EUA ou algum país sul americano,
onde ofereciam extensas terras devolutas e todo o tipo de ajuda... Uma
dificuldade surgiu... Como possuíam bens territoriais na Itália,
não eram considerados elegíveis para imigração
por conta do Governo. A única alternativa seria viajarem por conta
própria e arriscarem o futuro nas terras prometidas... Depois de
muitas discussões, ele e o irmão Giácomo, decidiram,
na moeda, o destino da família, América do Norte ou do Sul?
Deu Sul, Brasil... Este resultado foi muitas vezes lembrado com pesar
pelos familiares, agora certos, de que a América do Norte teria
sido a melhor alternativa para o progresso desejado, como aconteceu aos
outros Brunettos que foram para lá. A Mamma Gioconda faleceu
pouco antes da viagem. Giuseppe desconfiava que ela havia morrido de desgosto
por tudo que passara, culminando por ter de abandonar o país, sua
gente e enfrentar, sabe lá, quantas dificuldades mais... Gioconda
como os Brunetos pertencia à nobreza italiana, agora reduzida a
nada. Nobres italianos viveram um tempo de fausto, interrompido com a ocupação
dos autríacos no norte da Itália. Giuseppe, preocupava-se
ainda com Babbo (papai) Domênico, que apresentava sintomas
de confusão mental depois da prisão na Áustria. Embranquecera
subitamente e insistia em portar-se como nobre, embora o momento não
fosse propício a tais manifestações... Porém,
ninguém conseguia demovê-lo de seus delírios, muito
menos arrancar-lhe o fraque e a cartola, sendo fiel comungante nas missas
diárias. Tinha momentos de plena lucidez, dando a palavra final
nas discussões dos filhos. Giuglio, o filho mais moço, era
o único que optara ficar na Itália, mas a decisão
paterna, prevaleceu. Todos imigrariam para o Brasil. Que fariam das propriedades
na Itália? Deixariam sob a responsabilidade da Igreja, até
que pudessem retornar... ricos e poderosos, pensaram. E, assim, decidiram.
Giuseppe fechou as malas,
contendo roupas e algumas jóias deixadas pela mãe e que faziam
parte do acervo da família. Levavam todo o maquinário necessário
à fabricação dos instrumentos agrícolas, sementes
de alimentos, lembranças, livros, alguns móveis e um violino
Stradivarius, instrumento que tocava por prazer. Aliás, a música,
a literatura e as artes plásticas eram, além da religião,
assuntos preferidos de Giuseppe, sendo erudito nelas, além da extraordinária
habilidade manual para a confecção de objetos. Poderia ter
sido um artista, se não fosse a imposição familiar
que o levou ao caminho do sacerdócio. Fechada a casa com cuidado,
entregou as chaves para o Frei Gabriele, que recebeu também os documentos
de propriedade da família, para serem guardados pela Igreja. Os
Brunetto dirigiram-se, então, ao Porto de Genova, onde milhares
de italianos se comprimiam no navio que os levaria às terras estrangeiras...
A despedida da Itália foi emocionante, todos choravam e acenavam
lenços brancos, enquanto cantavam canções de suas
terras. Giuseppe sentiu o coração em pedaços e teve
o pressentimento de que jamais voltaria ao seu país... Ajoelhou,
beijou o solo e chorou copiosamente, antes de entrar no navio.(Um século
depois, uma descendente de Giuseppe ao visitar Montebelluno, juntou saquinhos
de terra, e de volta ao Brasil as espalhou pelo jardim de sua casa... E,
guardou os sapatos que pisaram o solo dos ancestrais...).
A viagem longa ocasionou
muitas mortes e entre elas, a de Giácomo, que morreu sem assistência
de qualquer espécie. Fora acometido de febre muito alta e não
pôde ser salvo. A ‘causa mortis’ foi “barriga d’água” e este
dado constou do registro de óbito do navio... O corpo, como todos
que morriam, foi jogado ao mar, enquanto os demais passageiros entoavam
o hino dos patriotas italianos, composto por Verdi, Va pensiero...
A família agora,
se reduzia a Domênico, Giuseppe e Giuglio...
Durante a viagem, Giuseppe
fez amizade com uma família de Belluno, gente humilde mas
honrada. Uma das filhas, de nome Margherita, chamou sua atenção.
Era uma jovem de pele muito rosada e aveludada, cabelos negros, lisos e
reluzentes. Tinha apenas um metro e meio de altura, não mais
que isso, mas na escultural beleza dos seus quinze anos. Olhos negros e
luminosos, completavam sua figura sedutora... Giuseppe havia passado dos
trinta e era virgem em assuntos de mulher. Não era um “homão”,
mas, certamente, marcava “presença...” Cabelos loiros, crespos,
pele branca, rosada e olhos verdes. Alto de estatura e magro... O detalhe
estava no nariz: longo e aquilino, próprio da raça italiana.
Ou seria herança dos judeus? Havia uma lenda familiar que apontava
para esta hipótese... Botou os olhos na jovem e pensou: “Questa
ragazza sara mia”... Mas, a ragazza era noiva de outro imigrante, cujo
casamento se realizaria no Brasil.
Giuseppe, portador de uma
cultura invejável, adquirida no Seminário, era considerado
o líder naquele navio e respeitado como um integrante da nobreza
de sua pátria...Eram dos poucos que viajavam por conta própria.
De repente, sua atenção voltou-se para as tagarelices de
Margherita, que falava em Bíblia, em Luthero como o iluminado de
uma nova religião e nos romances de Agatha Christie, que trazia
na bagagem... Giuseppe viu nela, disparado, a mulher ideal, personalidade
forte, inteligente, diferente das outras moças do navio. E ficou
a observá-la. Toda a vez que ela passava, segurava-lhe o braço,
olhando-a com os olhos cobiçosos... Nada dizia. Portava-se como
um cavalheiro. Qual a mulher que resistiria a tais apelos?
Chegados ao Brasil, viajaram
para o sul, onde finalmente foram levados em carretas, para montanhas,
cujo panorama assemelhava-se ao da Itália. A natureza exuberante
logo os conquistou. Mas deu-lhes saudades dos castelos e das fortificações
que cercavam as aldeias italianas... e sonharam reconstruí-las aqui,
um dia...
As promessas de ajuda governamental
eram uma balela, não receberam nada e tiveram que contar com os
próprios braços e recursos para construírem os abrigos
que necessitavam e meios de subsistência...
Foi justamente o pai de
Margherita quem ajudou os Brunetto na construção de uma casa
de pedras, onde os três homens ficaram alojados, depois de viverem
em barracas, armadas com cobertores e lençóis, sujeitos a
todas as intempéries, embora não houvesse neve como na Itália.
E era Margherita quem cozinhava para os Brunetto, enquanto trabalhavam,
além de cuidar de Domenico. Isto a aproximou mais de Giuseppe. Muitas
vezes as mãos de ambos se encontraram quando ela servia a refeição.
Nesses instantes, os olhos de ambos buscavam a linguagem do coração.
Certo dia, o forte calor impedia que Giuseppe conciliasse o sono, então,
resolveu dar uma volta fora da barraca , encontrando Margherita sentada
numa clareira próxima. Ela pressentiu sua presença e sorriu,
estendendo-lhe a mão para que se sentasse ao seu lado. Era
notório o clima de paixão que os envolvia, num impulso abraçaram-se
e o primeiro beijo foi dado como se descobrissem o paraíso... Desajeitado,
mas excitado, Giuseppe ergueu-lhe a saia e acariciou-lhe as pernas.
Foi interrompido pelo pai da jovem que a chamava para dormir... Escondeu-se
como pode, mas teve certeza de que ela seria sua para sempre, amanhã
ou depois... nem que se casasse com outro.
Giuseppe e seu irmão
tiveram consciência de que deveriam plantar alimentos para a própria
subsistência e lavraram a terra fértil, plantando as sementes
trazidas da Europa. Entre elas, várias castas de uvas e especiarias
diversas. Passaram fome, mas tinham fé de que as terras seriam produtivas,
nas mãos do bravo povo italiano. Mostrariam aos nativos da
terra, ao que vieram... Havia solidariedade e esperança que os animava,
entoadas nas canções italianas, especialmente pelas mulheres,
enquanto trabalhavam, mesmo nos momentos mais trágicos ou difíceis.
“Quem canta, seus males espanta”... era o lema dos italianos. Muitos sucumbiram
às doenças e as principais vítimas foram as crianças
e os velhos. Os homens embrenhavam-se nas matas plenas de araucárias
e caçavam, trazendo alimentos para as famílias. Iam em grupos
pois havia o medo das onças e animais selvagens que povoavam a região.
A derrubada de araucárias foi iniciada para a construção
de casas de madeira no extenso vale da serra sulina. Descobriram ali, o
pinhão, desconhecido deles e fruto da araucária, como fonte
de alimento e energias... Deus oferecia a natureza como ajuda. Fiéis
à Santa Madre Igreja, esperavam que ela os ajudasse naquela empreitada
em um novo mundo. Mas, ledo engano, nem os Padres podiam ajudar, ao contrário,
pediam dízimos de tudo que produzissem, em troca ofereciam assistência
espiritual... Em todas as situações difíceis, era
normal que apelassem para o sobrenatural. Por isso, a religiosidade dos
italianos e as crenças nos santos de suas devoções,
nunca estiveram tão presentes. A fé remove montanhas, diziam.
Giuseppe apesar de praticar
a religião, era reconhecidamente teimoso e começava a rejeitar
certos dogmas da Igreja. Discutia com os padres e freqüentemente,
discordava da orientação religiosa dada aos imigrantes. Giuseppe
tornou-se, então, uma pedra nos sapatos do clero. Havia ainda, o
preconceito da Igreja contra aqueles que abandonavam o sacerdócio...
perseguia-os. Mesmo assim Giuseppe continuou como líder dos colonos
e foi indicado como “cônsul” da Itália para toda a região
serrana. Estavam certos. Nenhum tinha o preparo intelectual dele. Nessa
função, correspondia-se com a Casa Real da Itália
e foi incumbido de erigir sedes para abrigo dos italianos que chegassem,
já que o governo brasileiro omitia-se dessa obrigação.
Com o brilho de sua atuação, e certo de já ter conquistado
o coração de Margherita, exigiu o rompimento do noivado dela.
Mas havia muitos fatores que impediam a realização de seu
desejo...
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