A SAGA DOS VÊNETOS
Tenini
SEGUNDO CAPÍTULO |
Giuseppe sentou-se para descansar,
depois de construída a casa de pedra no terreno que a comuna dos
Bugres entregou sob contrato, dando prazo de cinco anos para pagamento
da dívida do terreno. Sorriu, “agora só falta Margherita”...
Mas, ela, ainda não tivera coragem de dizer ao noivo que amava Giuseppe.
Adiava e não resolvia nada. Ficava embromando os dois. Deliciava-se
em ser amada por dois homens. Se decidisse perderia um... pensava. “La
donna é mobile”... dizia uma ópera e Giuseppe também
tinha dúvidas cruciais. Tinha idade para ser tio de Margherita,
poderia dar conta do recado? Poderia ser um Pigmalião educando uma
Galatéia? E a religião que sempre tolhera seus impulsos
mais verdadeiros? Sim, ele tinha certeza que a amaria com paixão.
Poderia satisfazê-la, pensava... Mas e depois? Daqui a alguns anos,
ela não despertaria para um novo amor ? Afinal, seu noivo tinha
a mesma idade dela... Havia mais um detalhe importante, pertenciam a classes
sociais diversas, embora, hoje, ele estivesse tão pobre quanto ela.
Havia um passado longínquo, uma possibilidade de retorno à
Itália e aos seus bens, à sua família. Margherita
seria bem recebida? Não tinha classe para comportar-se como uma
dama... Como se portaria? Por mais de uma vez, a ouvira dizer palavras
de baixo calão: Porco Dio... Porco cane... Maledetto... ou então...
Mascalzone... Farabutto, além de outras expressões mais agressivas...!
Palavras que não cabiam na boca de uma moça... Sorriu.
Ah, mas ela era verdadeira! Ele, não. Tinha vontade
de dizer as mesmas coisas, mas sua educação, a religião
o tolhia... Estes pontos, tinha certeza, seriam de atrito se viessem casar...
e ela gritaria, com toda a certeza: “Vate futere!!!”... E ele colocaria
a viola no saco, sem saber se aquela palavra era italiana ou não...
Outro ponto de diferenças
é que Margherita era dada a dançar desbragada, levantando
a saia, de um modo indecente e baixando o decote abaixo do convencional...
e na frente de qualquer um como se fosse uma “putana”... Será que
ela era virgem? Por que procedia como se não fosse?
Que intimidades teria com o noivo, já que se conheciam desde a infância?
Estes pensamentos atordoavam a cabeça de Giuseppe. Ele tinha ciúmes...
Mas também tinha dignidade. Desejava uma família honrada,
digna. Teria filhos e que educação teriam? Não
bateria em mulher, como estava acostumado a ver certos colonos embriagados
e brutos. Detestava, ainda, a hipótese de ser conhecido como
marido enganado... Outro ponto, cismado por ele, eram os romances que ela
lia escondida, mas que ele tivera oportunidade de perceber: policiais,
eróticos, impróprios a uma menina...
Então, até
era bom que ela não tivesse decidido nada... Ele poderia ir levando
a vida, como até agora. De vez em quando indo na casa daquela “putana”,
índia, dos bugres, que morava lá no cerro das Marrecas...
Esta índia era usada pelos italianos que não tinham mulher
e o pagamento era feito com caças ou algum alimento da horta...
Era fogosa e tinha um belo corpo moreno, que os enlouquecia de prazer...
Ele tinha um fascínio por peles morenas, quanto mais escuras melhor...
Os bugres haviam habitado aquele lugar, mas com a chegada dos colonos foram
se afastando para o interior das matas. Houve algumas emboscadas e alguns
imigrantes dos pioneiros foram mortos com certeiras flechadas. Giuseppe
os compreendia, afinal, defendiam suas terras, como eles em Belluno...
Havia outras mulheres de
sua raça, que recebiam homens, por baixo dos panos, como diziam
vulgarmente... Geralmente, eram casadas com homens que não as satisfaziam...
Falava-se que as alemãs eram mais livres, ainda. E que as polonesas,
idem... Mas, Giuseppe recusava-se a trair alguém de sua própria
raça. Seus companheiros de infortúnio... Fora que detestava
escândalos que pudessem envolver seu nome... E quantos escândalos
assistia, Santo Dio... Tinha de ter cautela... Afinal, era um Brunetto!
Levantou-se, foi até
a Oficina. Começara a produzir materiais agrícolas. Eram
feitos com tanto cuidado que nos mínimos detalhes do uso, tornava-os
fáceis de manejar. Então, colocava seu nome e o brasão
de família... Não produzia em grande quantidade, eram
verdadeiras obras de arte. E isto ele fazia, com a pá, enxada, foice
ou o que quer que fosse. Os colonos encantavam-se com seu engenho e ele
trocava o seu trabalho por alimentos ou algum pagamento em dinheiro. Ainda
era cedo para dizer se venceria ou não naquelas novas terras...
Mas, já a amava... Era sua nova pátria. Tinha, no coração,
Brasil-Itália... O clima era maravilhoso, lembrando eterna primavera
da Europa...
Ao penetrar as matas, maravilhava-se
com a quantidade de ervas medicinais que encontrava, cujos poderes de cura
foram intensamente estudados quando estava no Seminário. Ia armazenando
pequenos ramos, atados com fios de capim, colocando-os no saco que levava
quando fazia pesquisas. Era uma espécie de conselheiro dos
colonos, quando adoecia alguém. Então, abria o saco e ia
escolhendo os chás que tinham poder de cura... O agradecimento vinha
em forma de galinhas, massas feitas em casa ou pão e bolos.
Ao chegar na terra, já
encontrara ali os primeiros imigrantes que vieram para a colonização.
Eram suíços-franceses, alemães e poloneses. Alguns
italianos do norte, que eram confundidos como austríacos. Os Intendentes
ainda não tinham assimilado que o norte da Itália era dos
italianos e não dos invasores austríacos... Tentava explicar,
mas eles não lhes davam ouvidos. Então, na relação
deles, italianos da região do Vêneto eram conhecidos como
austríacos. Uma humilhação!
Os franceses plantaram videiras,
que começavam a produzir um vinho genuíno, tipo francês.
As castas eram mais rudimentares, mas ainda assim, produziam um vinho de
boa qualidade. E Giuseppe era bom apreciador do vinho. Afinal, como todo
italiano, acostumara-se a bebê-lo de manhã, com queijo e o
pão feitos em casa. Assim se criara, como todos os italianos, só
que lá, as castas eram mais refinadas. Também ele plantara
as cepas que trouxera da Itália. O terreno era ideal, um vale cheio
de pedras, bem como as videiras gostavam. Suas plantas começavam
a brotar, exuberantes, naquela terra virgem presenteadas por Deus. Ajoelhou-se
a agradeceu ao Senhor. Aliás, diariamente rezava, antes das refeições
e de dormir. Gostava de improvisar seus agradecimentos e pedindo a ajuda
divina para novos dias naquela nova pátria, e sempre relia os livros
que trouxera da Itália, como a Bíblia, literatura, filosofia,
artes etc. Estava cheio de idéias para melhorar as condições
dos imigrantes e daqueles que chegavam.
Já havia um galpão
da Societá italiana di mutuo soccorso Stella di Venezia... (sociedade
italiana de mútuo socorro). Mas era acanhada para recebimento dos
seus patrícios — ele mesmo teve de abrigar-se por meses, em baixo
de lençóis, feitos como barracas. Não fazia parte
da diretoria, mas conversava com ela e dava palpites. Sugeriu a construção
de um prédio de material, em substituição ao barracão.
Ficaram de pensar. Haveria de dirigir aquela casa, um dia e faria dali
um lugar aprazível, onde a colônia italiana pudesse reunir-se
alegremente. Era cedo ainda, havia outros na frente e respeitava cada um.
Como tinha bons relacionamentos na Itália e como era amigo do Embaixador
em São Paulo, Conde Brandolini, escrevia-lhe sobre tudo que observava
e pedia ajuda para socorrer seus irmãos, abandonados a própria
sorte. O Conde respondia-lhe e isto era um bom sinal de que a Casa Real
da Itália poderia interessar-se pelos seus filhos aqui, do outro
lado do mundo. A primeira sugestão de Giuseppe foi aceita e a Embaixada
passou a designar em todas as colônias brasileiras, um cônsul
honorário para servir de intermediário entre o governo italiano
e os colonos.
Aqui, na colônia dos
Bugres, ele foi designado, recebendo apenas uma bela faixa para uso em
cerimônias oficiais e uma bandeira da Itália. Não mandaram
verba. Tudo saía do seu bolso. Passou a ser considerado como autoridade
italiana, não só entre os colonos como perante as autoridades
brasileiras. Tal encargo tomava o tempo de suas noites, pois os colonos
faziam filas na porta de sua casa, para pedirem que escrevesse cartas para
os familiares, já que a grande maioria era analfabeta. As dificuldades
de comunicação eram imensas. A estrada que ligava a uma aldeia
próxima não passava de uma picada, que muitas vezes só
passava uma carroça e em alguns trechos tinha-se de caminhar
a pé, com a mochila nas costas... Então, urgia que fosse
construída uma estrada. O governo brasileiro propôs uma pequena
importância em dinheiro para que os italianos, nas horas de folga
trabalhassem nela. Todos concordaram e os domingos, sábados à
tarde e nos dias de folga, todos trabalhavam, abrindo uma nova estrada
para que o correio, o comércio pudesse transitar com maior facilidade...
Enquanto o tempo passava ia esperando a resposta de Margherita até
que...
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