A SAGA DOS VÊNETOS
Tenini

SEXTO CAPÍTULO
Peripécias da nobreza

        A notícia de um Conde italiano visitando a colônia alvorotou todo mundo... Casadas e solteiras se assanharam... Era certo que os nobres estavam em baixa na Itália, mas “quem foi rei, sempre tem majestade”, pensavam as mulheres e também os homens da cidade.
        Como Giuseppe seria o hospedeiro de tão ilustre figura, como Cônsul honorário da Itália, suas filhas passaram a ter intenção de fisgar o ilustre nobre italiano das longínquas terras de seus pais. Afinal, ali, elas eram as mais cultas, algumas até, estudavam em colégios da capital em internatos particulares. Além disso, eram prendadas e belas.
        Mas, Volpe era a única desinteressada e passou a troçar das irmãs, dizendo que o Conde deveria ser um canastrão, um arruinado, cheirando a alho... Mas, elas aprontaram os melhores vestidos, os melhores adereços que pudessem realçar seus dotes de beleza e simpatia. De alguma delas, ele não escaparia.
        No dia aprazado, lá surgiu o Conde, de malas nas mãos.
        Não era propriamente feio, mas tinha os cabelos escorridos, cor de fogo, nariz adunco e olhos estrábicos... Se olhassem bem, talvez parecesse uma coruja, no entanto, seu porte altivo, denotava a origem nobre, segundo dados que foram repassados.
        Declarou beirar os 34 anos, mal vividos confidenciou, mas não convenceu Giuseppe, que descobriu certos deslizes de linguagem no visitante que insinuavam o contrário.
        Na apresentação às meninas Brunetto obedeceu o ritual dos nobres, com ligeira reverência ao ilustre visitante. Houve dúvidas se alguma teria agradado ao Conde, em virtude do estrabismo dele dificultar quem seria a preferida...
        Volpe, que andava de namoro com um Chefe de trem da ferrovia, vindo da capital, no comando do trem “Maria Fumaça”, achou-se desinteressada de atrair o visitante, mas como era a mais falante de todas, decidiu oferecer-se para levá-lo a visitar o vinhedo do pai, cujas uvas estavam maduras...
        Disse às irmãs: “Deixem comigo...” E lá se foi ela com o Conde, sob um solaço de verão convidativo a uma sesta, depois do lauto almoço, do que a passeios em extensos vinhedos de família.
        Ninguém soube o que aconteceu, pois depois de duas horas, ao voltar do passeio, os olhos dele brilhavam mais que estrelas em tons esmeraldinos..., estando mais estrábicos do que o comum. Queimado pelo sol da serra, estava num vermelhão que lembrava “gamberi” (camarões). Não se soube se ele ficou impressionado com a pujança do vinhedo de Giuseppe ou das artes de Volpe, que sorria de forma enigmática. Teria dançado a tarantela na barrica de uvas só para mostrar as pernas? As irmãs apostaram nesta hipótese...
        A verdade é que, para surpresa de todos, em uma semana, veio o pedido de casamento do Conde, sendo a escolhida, justamente Volpe. Foi uma surpresa geral e a colônia não parou de fofocar sobre o caso. E o namoro de Volpe com o Chefe de trem da via férrea acabou ali.
        O casamento foi apressado e realizado na Igreja Matriz, enfeitada com flores do campo, comparecendo toda a colônia italiana em trajes de domingo. A noiva ostentava uma coroa de Condessa, o que inebriou o público presente. O Conde usava um fraque elegante, onde pendurou uma insígnia que deveria ser brasão de família. A festa, além de regada a vinho dos melhores sabores, apresentava uma mesa com uma variedade de queijos, salames, massas, raviolis, inhoques, corações de galinhas, galetos, doces e tortas da colônia, com uma fartura jamais vista. Os noivos foram brindados ao som de uma bandinha de colonos que tocavam e cantavam cançonetas italianas, como Sole Mio, Santa Lucia, Massolin di fiori, Funiculá e outras músicas do folclore italiano. Giuseppe, emocionado, tocou seu violino Stradivarius, pois fora ele quem fundara a bandinha da cidade. A noiva vestia um vestido de cetim branco, onde ela bordara algumas pérolas rosas. O povinho, maldoso, especulou sobre a cor das pérolas...
        Estaria feliz a noiva? Amaria o Conde? Eram perguntas que todos faziam. Quem a visse, certamente, diria que sim, mas na verdade, Venézia era fascinada por novidades e o fato de ir morar na Itália, foi o suficiente para descobrir no Conde encantos que antes não vira...
        Na partida para a Capital, de onde seguiriam para São Paulo rumo à Europa, em transatlântico, foram saudados com arroz da colônia, na falta do legítimo arbório... Soube-se que eles morariam num castelo às margens do rio Pó. Passado tempo, as fotos que vinham de lá, atestavam uma nova Volpe, mais bela, rechonchuda e elegante, usando um longo colar de pérolas que descia até o colo. O penteado era ultramoderno, cortado curto, com passadeiras dos lados e vestido de cintura longa arrematado por fitas...Era uma bela Condessa!
        Parecia que tudo ia às mil maravilhas, quando a família recebeu notícias de que o nobre casal estaria imigrando para o Brasil, já que a situação econômica européia andava periclitante, agravada pelas sucessivas perdas humanas dos italianos, apesar das vitórias. A Itália estava pra lá de Marrakech e o Brasil seria a salvação da lavoura... Vieram de armas e bagagens para cá.
        O Conde chegou como representante de um laboratório italiano, fabricante de pílulas para prisão de ventre, Dr. Manfrediani. Tal ocupação para um Conde parecia pouco condizente, mas a atividade deveria ser rendosa.
        O casal preferiu instalar-se na Capital, onde o mercado para negócios farmacêuticos pareceu mais promissor. Foram recebidos pela sociedade brasileira, com honras, uma vez que não era comum, terem entre eles, um Conde estrangeiro. O título de nobreza era charmoso e os convites para almoços, jantares e solenidades oficiais choviam. Nas festas o casal não gastava mais do que o essencial.
        As pílulas do dr. Manfrediani, logo ficaram famosas, pois tiveram franca aceitação popular. Afinal, eram boas para o fígado, rins e intestinos... Num “pum”, o Conde progrediu...
        Uma das netas de Giuseppe gostava de visitar a tia Condessa e ficava perdida em longos e escuros corredores, pesquisando retratos de antepassados do Conde. Prestava atenção nos alvos lençóis que cobriam as poltronas e sofás, além dos reposteiros nas janelas.  Ela sorria, pois concluiu que tais hábitos pareciam escaramuças para esconder as velharias...
        Tia Volpe recebia sempre sorridente, usando o famoso colar de pérolas do retrato. Servia chá com bolinhos de chuva, deliciosos, com sabor de limão...
        Certo dia, alguém pegou Jerônimo confidenciando à esposa, de que o Conde seria “tramposo”... Por quê afirmaria isto? Seria por causa das pílulas? Poderia ser um pouco de inveja de Jerônimo, pelo status do cunhado... Talvez quisesse se referir aos olhos dele, pois costumava dizer que o Conde tinha “um olho a favor e o outro, contra o Governo”... A verdade é que nunca se ficou sabendo o por quê da maledicência de Jerônimo, que a bem da verdade, fizera o comentário, embalado numa boa garrafa de vinho tinto...
        Os anos passaram e um dia, o Conde morreu, de infarto, diziam... Contaram a boca pequena, que ele teria uma amante que engravidara de um brasileiro cor de cuia... Suprema vergonha para um nobre!!!
        Volpe, imutável, sorria por trás dos olhos miúdos, finalmente, alguém se vingara dos anos que não pudera abrir a boca para dizer palavrões, nem namorar homens bronzeados, com olhos de veludo...
        Tudo mudou. A miséria bateu na porta da Condessa Volpe, que apesar de viver num palacete, mal conseguia sobreviver com a venda de quadros que pintava a preços módicos.
        Volpe tinha carradas de razões, um povo que desconhecia o que era Arte, só apreciava Naturezas Mortas... A fartura deveria estar nas mesas e nas paredes. Assim, seus quadros eram repletos de frutas e flores.
        Um dia, soube-se que ela mudara de religião e que um tal de Zumbareguy, um castelhano que viera à cidade para fundar uma nova Igreja, a havia convertido, ficando como seu hóspede por um longo tempo, causando escândalo na família, tradicionalmente fiel à Santa Madre Igreja.
        Volpe era o braço direito do tal iluminado, porque o esquerdo era da mulher dele. Donativos daqui, donativos dali, oferecendo o céu como recompensa, a tal igreja ia de vento em popa. Volpe passou a ter longas confabulações com o tal iluminado, o que causava murmúrios caluniosos da vizinhança, pois diziam que acontecia na casa dela, mais do que assuntos religiosos, pois ouviam “tangos pasionales, na vitrola da casa dela.”
        As sobrinhas foram proibidas de visitar a Condessa Volpe e seus bolinhos de chuva, embora o mano Jerônimo continuasse a fazê-lo para dar apoio moral à irmã preferida. Indignava-se com os comentários da vizinhança dela, mas também não se atrevia a por a mão no fogo.
        Os filhos de Volpe deixaram a casa, porque, também eram rebeldes como a mãe.  Ela pareceu não se importar, pois gostava de sua independência total e irrestrita.
        Com o tempo, até o iluminado desapareceu. Talvez ela percebesse a exploração do povo e o enriquecimento rápido da tal igreja, afinal era uma Brunetto e a honestidade era um traço muito forte de sua família. Mais uma vez mudou de religião e voltou-se para o espiritualismo, para as cartas ciganas e outras magias esotéricas... Ganhou um bom dinheiro com isso, mas era uma coisa que a contrariava. Afinal, não estava sendo honesta com a credulidade alheia, então, voltou à pintura onde se realizava mexendo com tintas e cores.
        Lá pelas tantas, internou-se numa geriatria, por vontade própria.
        Quando a visitavam ela gostava de cantar canções de amor, italianas e brasileiras, do século passado. E sempre queria saber dos casos de amor das netas e sobrinhas, aconselhando: “Non dimenticare... L’amore é tutto nella vita”...
        Tais declarações faziam supor que ou ela amara muito ou deixara de amar como sempre desejou. Muitas vezes, ela levantava um pouco a saia e dançava uma tarantela, mostrando que ainda tinha belas pernas, apesar da avançada idade.
        Parecia feliz, mas não se sabia se era mesmo ou fazia o jogo do contente. Mônica, uma das sobrinhas mais chegadas à Volpe, certo dia, ao passar por uma porta envidraçada, levou um susto. Reconheceu na imagem refletida a tia Volpe. Teria herdado dela as matreirices e seduções que tanto encantaram àqueles que a conheceram? Os traços característicos de tia Volpe têm aparecido em outras gerações, assim ela sempre será lembrada com carinho e afeição pelos Brunetto.
        Finalmente, Volpe adormeceu para sempre num quarto da Geriatria, em companhia de outras idosas que conhecera ali. Sua morte foi bastante sentida pelos familiares, que acompanharam de perto sua movimentada passagem por este mundo.
        O que teria acontecido aos demais membros da família Brunetto?

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