A SAGA DOS VÊNETOS
Tenini

SÉTIMO CAPÍTULO
Novo Século

        O tempo passou e os Brunetto misturaram-se com outras raças, mas algumas características ainda permanecem imutáveis: são traços familiares que ficaram marcados para sempre. A principal delas é a teimosia, a ousadia para vencer dificuldades, o bom humor, a honestidade. Em alguns, o excesso de religiosidade, em outros, um certo quê de nobreza, em outros, ainda, certa irreverência no linguajar e costumes. Mas, sobretudo nas mulheres, um romantismo que vai até ao limite do platônico. Quanto aos homens, são sedutores e adoram uma paquera, em qualquer idade... Descontando algumas infidelidades, até que são fiéis às esposas.
        Mas voltando ao Giuseppe, ele teve uma alegria muito grande, antes de morrer. O retorno do primogênito Jerônimo, que havia acompanhado os italianos que passavam filmes no Brasil. Tomou gosto pelo negócio cinematográfico e, mesmo quando eles se foram, continuou no mesmo ramo, percorrendo o Brasil, com incansável dedicação. Associou-se a amigos, algumas vezes dando certo, outras dando com os burros n’água... mas, fiel ao sonho e ao cinema, que tomava conta do mundo, como uma nova expressão de arte.
        Claro, Jerônimo, aproveitava as viagens que fazia para conhecer o Brasil desde o Amazonas ao centro do país, aventureiro que sempre fora, treinado pelo pai... E foi lá pelo pantanal do Mato Grosso, que encontrou a mulher de sua vida, seu amor definitivo para todas as horas. Boas e más.
        Filha da terra, a eleita tinha uma mistura de índios, com a raça espanhola e portuguesa. Seu pai era um coronel dono de fazenda, onde Jerônimo caçava. Aquela mocinha, de olhos muito glaucos, cabelos negros e lisos, cor bronzeada, aquela mistura de uma nova raça brasileira, o deslumbrou. Apaixonar-se foi fácil, aliás, durante o período que esteve afastado de casa, foi uma sucessão de romances, que o tornaram um “expert” na conquista das nativas da terra... O difícil foi tirar a moça daquele paraíso que era o Pantanal, mas insinuando-se junto à família dela, acabou por conquistá-la. Seu nome era Joana e fora criada com os maiores mimos pelos pais e nada sabia fazer. Era o oposto das mulheres italianas, que não tinham pejo de arregaçar as mangas e pegar no pesado. Foi com paciência que ia ensinando Joana, para as lides de uma dona de casa.
Um dia, com saudades da família e ao saber que o pai estava doente, resolveu regressar. Mas, não desejava substituir o patriarca, como era costume nas famílias italianas. Não, Jerônimo era um homem do mundo, prezando sua liberdade de ir e vir. Além do mais, pensava que cada um devia ser dono do próprio nariz. Mesmo no casamento, procedia assim. E foi num maio de 1920 que voltou à terrinha. Emocionado, encontrou no portão de casa, os leões de Veneza, que Giuseppe trouxera da Itália. Um de cada lado. Ele o transpôs, como se estivesse entrando na velha cidade veneziana... Foi um dia inesquecível: pai e filho se abraçaram chorando. E a mamma Margherita, tão pequenina, pendurou-se naquele homenzarrão que se transformara o seu piccolo Jerônimo. A mulher de Jerônimo, Joana, ficou um pouco perdida no meio daquela gente que falava outra língua. Às vezes se assustava: Estariam brigando? Não, era a energia dos italianos que se manifestava em efusões de carinho.
        Giuseppe, que sempre apreciara as mulheres brasileiras, pelo tom bronzeado de pele, ficou impressionado com a beleza de Joana. Pensou, colocaria um pouco de café na cor leitosa da família...  Já as irmãs de Jerônimo, cercaram a cunhada de agrados, mas sempre tinham a indelicadeza de pedir para que ela levantasse os punhos da blusa para verem os braços dela que eram mais morenos. Comparavam a cor com os braços delas, de um branco leitoso e comentavam que ela era muito escura... Joana se irritava com tais apreciações das cunhadas e, muitas vezes, negava-se a atendê-las... A bem da verdade, logo notou que elas eram implicantes... Seria ciúmes do fratello? Mas, Margherita e Giuseppe eram sogros atenciosos e simpáticos. Giuseppe, logo se tomou de amores pela nora e ficava conversando com ela, longas horas, contando a saga da família. Enquanto isso, Jerônimo ia à Capital, procurar residência para o casal, além de um prédio para abrir um Cinema. Joana estava grávida do primeiro filho e ele queria que o menino nascesse ali, perto da clã dos Brunetto, porque tinha a intuição que viria um belo ragazzo. Nunca pensara na hipótese de que pudesse ser uma menina. A estirpe dos Brunetto estaria garantida.
Giuseppe andava com má circulação no sangue, segundo seu genro que era médico, residindo ali na cidade, onde acabara de abrir uma pequena Casa de Saúde para internar seus pacientes.
        Giuseppe fora proibido de tomar vinho, coisa que o desagradava, uma vez que, desde “piccolino” tomava vinho. Então, colocaram a barrica no quarto onde Joana estava hospedada, para que Giuseppe não bebesse. Mas, Joana, sempre se acordava pela madrugada, quando via o Babbo entrar sorrateiro com uma caneca nas mãos e sorvia o vinho da barrica, como se fosse um cálice dos deuses... Logo saía, sem perceber que Joana vira tudo. Ela era uma mulher reservada, discreta e nada quis contar aos familiares. Não trairia o sogro. Nascido o herdeiro, finalmente, pode seguir para a Capital, onde a esperava um novo futuro naquela terra, onde costumes e clima eram tão diferentes de onde nascera, o Brasil Central.
        Das filhas de Giuseppe, apenas duas ficaram solteiras. Uma delas foi Luna e a outra de nome Lucrécia, que se tornou uma concorrida modista da cidade, pois criava e desenhava os modelos que confeccionava. Uma cabeleireira e a outra, costureira... Isto era bom porque ambas ganhavam para ajudar a família e ainda podiam comprar coisas de seu agrado.
Duas delas eram professoras e lecionavam pelo interior do estado. Casaram, uma, com um viajante comercial e a outra, com um fazendeiro lá para os lados da fronteira com o Uruguay. Três delas casaram-se com italianos que se radicaram no Brasil, uma foi para São Paulo, onde o marido explorava o ramo de restaurantes e outra foi para Minas Gerais, onde o marido dedicou-se às pedras preciosas que enviava para a Europa e lhe dava um bom retorno em dinheiro. Havia, ainda, a Condessa Volpe, cujas peripécias sempre divertiram e preocupavam a família. Os dois irmãos de Jerônimo dedicaram-se ao comércio do vinho e tornaram-se abastados comerciantes de exportação e importação. Margherita continuava leitora de romances, agora, com maior facilidade para adquiri-los, pois já lia em português, ensinado pelas filhas. Não fazia nenhum trabalho, pois as filhas não lhe permitiam.
        Foi no início de um outono, lá por 1928, que Giuseppe adormeceu e não mais acordou. A colônia em peso foi aos seus funerais e a profusão de flores encheu o pequeno cemitério da região. Houve discursos e orações. Afinal, ali se extinguia um pouco da história da imigração italiana no sul do Brasil. Ali encerrava a história de um cidadão italiano que, mesmo cônsul honorário da Itália, amava o Brasil e encontrou aqui uma nova pátria, onde teve a satisfação de ser útil aos seus contemporâneos, tanto no trabalho como no exemplo de dignidade perante sua comunidade e como exemplar  chefe de família. Aqui viveu seu sonho, sem nunca alcançar o ápice, mas lutando até o fim por dias melhores. Essa foi a maior herança que legou aos seus descendentes; a saga pela conquista dos sonhos.
        Margherita partiu bem depois, pois sobreviveu ao marido por mais de 30 anos. Houve um episódio desagradável para todos italianos residentes aqui, foi quando o Brasil entrou na Segunda Grande Guerra Mundial contra a Alemanha e Itália. Os italianos e seus descendentes foram perseguidos pelas polícias da Ordem, Política e Social brasileiras, em todos os municípios onde se instalaram. Margherita viu horrorizada o arrombamento da sede do consulado por policiais, portando enxadas e foices, destruindo tudo. Os arquivos tão bem organizados por Giuseppe foram destruídos e queimados. Com esse ato, a história da imigração perdeu importantes documentos. Ela e as duas filhas, Luna e Lucrécia foram injuriadas com palavras de baixo calão. Margherita reviveu a invasão dos austríacos na sua pátria, há mais de meio século antes. Foi um dia muito triste e que marcou sua alma sensível, plantou em seu coração uma certa mágoa contra o governo brasileiro de então.  Felizmente a guerra acabou e o tempo trouxe paz aos italianos, alemães e seus descendentes. Margherita, apesar de muitos compatriotas terem tentado conquistá-la, preferiu ficar só com as filhas solteiras. Seu tempo era ocupado com a própria família e os netos que enchiam de alegrias sua casa. Foi uma mãe e uma avó inesquecível. Romântica por natureza, legou às filhas, netas e bisnetas este traço sedutor da mulher italiana.
        Giuseppe era descendente de família tradicionalmente voltada para a religião e também à literatura, além dos pendores para novas descobertas científicas e tecnológicas. Havia entre os ancestrais, historiadores, poetas, escritores, cientistas, famosos artesões e importantes revolucionários italianos.
        A nova geração de seus descendentes, netos e bisnetos, deu uma plêiade de artistas: artes plásticas, música, literatura em poesia e prosa, ramo imobiliário, metalurgia, tecnologia das comunicações, da medicina, além de alguns militares, entre os quais dois ou três generais do Exército brasileiro...
Mas, ele não viu nada disto, uma pena. Ficaria feliz se soubesse. Ele e Margherita deixaram aos descendentes o prazer da leitura e da poesia.
        Entre os bisnetos de Giuseppe e Margherita encontram-se alguns roqueiros, cantoras líricas, pianistas, tecladistas, guitarristas, violinistas, compositores e até uma Miss, Rainha da beleza Brasil-Itália, concurso realizado pela Rede de televisão italiana... mas, de cor bem bronzeada, só para contrariar as tias avós...
        Seus netos e bisnetos, sempre que sobra algum dinheiro, continuam percorrendo a Itália, atrás do castelo da família... Seria lenda? Ou seria algum castelo que os americanos compraram?   Os Castelos no ar e os de areia também impulsionam os sonhadores, como certa modesta e madura dama descendente da família Brunetto que sonha em escrever para o cinema, um dia, em memória de seu pai, o cineasta  Jerônimo.
        Há uma pista, o castelo tão buscado não leva o nome de Brunetto e sim o da mãe de Giuseppe, os Coralini... Tal descoberta foi por acaso. Um dia, na programação de viagens da NET, foi apresentado um castelo na Itália, na região do Vêneto, chamado Castelo Coralini. Tal castelo foi vendido para os americanos que o transformaram em pousada, mantendo o nome e o brasão da família... Seria esse o tão sonhado castelo de propriedade da família Brunetto? É bem provável que seja, porque constatou-se que no jardim existem 12 anões de pedra, que resistiram às passagens dos séculos...
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