VIA ZAMBI - Marta Rolim
Capítulo Um
Século XXI ao XXV
Visão-linear
Tudo é relativo.
Albert Einstein
Se Charles Darwin, o pai da evolução e da biologia
moderna, tivesse considerando os estudos de Einstein - se tivesse tido
a oportunidade de fazê-lo - talvez descobrisse que o processo evolutivo
jamais se deu de forma lenta e linear. Tampouco a adaptação
dos seres vivos ao meio ambiente foi um processo gradual e meramente acidental.
Sim, faltou-lhe uma compreensão mais plena dos movimentos cíclicos
da vida. Porque dadas espécies evoluem para outras formas, enquanto
outras permanecem sem grandes modificações? Porque algumas
espécies evoluem e desaparecem e outras não evoluem e permanecem
até a atualidade? Tudo é relativo, inclusive o que denominamos
evolução.
Eis o que Darwin não compreendeu, a alavanca mestra do processo transformador: o sofrimento, o sofrimento relativo! A dor contínua e transgeracional; o desconforto torturante, mas não fatal, eliciando o processo evolutivo. Não de forma lenta, mas súbita e dramaticamente. O processo em si, dispensando algum breve tempo no espaço, poucos séculos, e a mudança decisiva sobrevindo rápida e inesperadamente, como um inédito amanhecer que se instaura com o nascimento de uma nova estrela. Descobrimos isso da forma mais vívida...
Já no princípio do século XXI, nos idos anos de
2030 DC, sentiam-se os efeitos primordiais. A Terra apresentava uma considerável
elevação de temperatura, o verão tornava-se paulatinamente
mais quente e a cada nova estação podia-se perceber e lamentar
o incremento do insuportável calor. Por sua vez, o inverno tornava-se
progressivamente ameno e curto. As causas de tal mudança climática
deviam-se a fatores conhecidos na época: a poluição
e a destruição ambiental e atmosférica. O que não
esperávamos diante de tal situação adversa, era presenciar
um salto evolutivo.
O começo da Grande Mudança deu-se quando a temperatura média do planeta alcançava os quarenta e dois graus centígrados à sombra, sendo que na África a temperatura média era ainda mais elevada, girando em torno dos quarenta e seis graus. Não tínhamos conhecimento de uma tal tragédia climática, que se anunciava arrasadora. É bem verdade que, teoricamente, sabíamos que populações inteiras haviam sido dizimadas em mais de uma ocasião na história da Terra, sendo cabalmente eliminadas, mas agora chegara a nossa vez! Não estávamos preparados, absolutamente, para tal infortúnio. A seleção natural mostrava a sua face mais cruel. O que tomáramos como “Seleção Natural” agora nos parecia uma bestialidade.
Foram os brancos... levas e levas de homens e mulheres brancos, como espectros pálidos, apresentando carcinomas e tumores pela extensão do corpo. O calor lhes queimava a pele, tornando-a uma manta rugosa e vermelha, e a radiação solar transfigurava-a em feridas incuráveis. Pouco adiantavam os protetores solares, que rapidamente se tornaram placebo de luxo, tal a procura desesperada por eles. O sol emitia radiação de forma que mesmo à sombra o sujeito era parcialmente atingido por seus raios. Numa primeira leva, pelo menos um bilhão de brancos morreram, envoltos em carcinomas. Isso num período de apenas doze fatídicos anos. Tudo registrado e documentado pela mídia.
Houve um grande movimento mundial para nos livrarmos de seus corpos o mais rapidamente possível. Se não destinássemos os corpos agilmente, muito mais mortes haveria, a contaminação e a doença prevaleceriam de modo insustentável. Enterramos muitos em imensas valas coletivas e a tantos outros cremamos no deserto, montanhas deles. A demanda era absurda. Foi quase um milagre termos conseguido. E era apenas o começo...
Nós, os negros, não sofríamos do mesmo mal. Nossas peles se apresentavam lisas e sadias, ao passo que, com horror, assistíamos ao fim dos humanos deficientes em melanina. Com a morte do primeiro bilhão de brancos e amarelos, e de muitos humanos de tez mais clara, a população encerrou-se em suas casas e nos subsolos, tentando se proteger, mas era tarde demais. Todos já haviam sido expostos por tempo suficiente ao sol e às forças da natureza, que se mostraram irredutíveis. Não tardou para que os carcinomas surgissem nesses enclausurados também. Num período de apenas trezentos anos, os brancos foram extintos da face da terra. Portanto, por volta de 2355, somente os escuros ou negros sobreviviam. Eventualmente ainda nascia um exemplar de tez clara, mas simplesmente não sobrevivia ao primeiro mês de vida.
Foi assim que aprendemos o significado real do processo seletivo descrito por Darwin. Enquanto todas as criaturas carentes de melanina desapareciam, nós, os humanos providos de suficiente melanina, podíamos continuar a luta pela vida. Não havia maldade ou bondade no processo seletivo, era simplesmente uma guerra de vida e morte, indiferente ao sofrimento dos extintos e ao alívio dos sobreviventes. Uma mudança drástica no meio ambiente da Terra descartara todos os seres inaptos diante das novas circunstâncias. Todos os seres de pele nua e carente de melanina foram radicalmente extintos, incluso entre estes, os porcos cor-de-rosa e os gatos brancos, com hiper-sensibilidade à luz solar. Mas as mudanças maiores ainda estavam por vir.
A humanidade sobrevivente, apesar de não correr perigo de morte iminente, deparava-se com imensos desafios. Com o desaparecimento dos brancos precisávamos reorganizar a sociedade, tomar cargos e funções para manter a civilização em funcionamento, tal como a conhecíamos. Essa mudança foi se dando velozmente, à medida que os brancos iam desaparecendo. Contudo, muito ainda havia a ser feito. O certo é que, com extremo esforço e dedicação, conseguimos manter o nível tecnológico existente. As fábricas principais jamais cessaram de produzir seus sofisticados itens eletrônicos e as grandes empresas ligadas à informática, continuaram na ativa, desenvolvendo seus programas e soluções. Nos sentimos orgulhosos. Na sociedade dirigida pelos brancos raramente galgávamos posições de comando e gerência e agora provávamos para nós mesmos nossa grande capacidade adaptativa diante dos obstáculos, nossa superação diante da maior das tragédias. Simplesmente cerca de cinqüenta por cento da humanidade havia sido eliminada, e dentre estes, muitos dos instruídos, dos cientistas e inventores, mas nós, os sobreviventes, os histórica e socialmente excluídos, havíamos conseguido manter as conquistas da civilização. Tínhamos alimento industrializado, água potável, hospitais modernos, tecnologia.
Por volta do ano 2400 estabelecemos um governo mundial num promissor país da América Latina, o Brasil, que fora escolhido como país-sede-global devido a sua abundância em recursos hídricos (a preciosíssima água doce jorrava de seus rios caudalosos e de imensos depósitos subterrâneos!) e à qualidade preservada do solo, que não desertificara nos estados do norte; mais especificamente no Amazonas, Mato Grosso do Sul e no Tocantins. Do Brasil administrávamos as necessidades mundiais e socorríamos as populações e os países desestruturados, que ainda não haviam conseguido suficiente ordem e prosperidade. Em poucas décadas o Brasil tornou-se a nova potência mundial, exportando água potável em barris, como o precioso petróleo de outrora, fonte de energia que abandonáramos. A energia combustível utilizada agora, era a mais abundante e barata: a solar.
Se o calor insuportável nos oprimia e criava um novo meio, de alguma forma isso não era de todo estranho para nós, pois parecia que em nossas memórias ancestrais figurava uma lembrança primitiva de nossa terra mãe: a África! O calor quase insuportável nos remetia ao impiedoso Saara, que se parecia mau ao olhos de alguns, para muitos outros era o próprio lar. Nossos antepassados haviam caminhado pela terra de areia mole e fervente, e cobertos apenas com panos, haviam, não vencido o sol, mas se irmanado a ele. E o sol, como que testemunhando e aprovando essa irmandade, havia tornado nossas peles ungidas por um manto protetor negro.
Diante desse quadro mundial, acreditávamos que o pior havia passado.