VIA ZAMBI - Marta Rolim
Capítulo Três
· Época Atual
· 19.980 Séc. CC
OÁSIS A M A Z O N A S - BRASIL
Sentei-me à beira da mesa e mirei o menino, enquanto ele balançava suas pernas finas no ar, distraidamente, fazendo a superfície da poltrona flutuante subir e descer.Uma ameaça não pode causar
nenhum mal, se não for aceita.
Paulo Coelho
Zambi, você é muito jovem, não tem maturidade suficiente para participar deste projeto! - repreendeu-me o pequeno Babalô, no tom paternal que sua voz aguda permitia.
Aos seis anos I.c. (Idade cronológica), o menino Evol Super Precoce me considerava um idiota, entretanto, era evidente que negava e invertia os fatos. Sua Idade maturacional era de aproximadamente quatorze anos, não mais do que isso, em nada justificando seu ar autoritário e sua postura um tanto rude, exceto o fato de que ele era um adolescente. Ao contrário da postura arrogante, esperava que ele me recebesse como a um igual, um amigo. Talvez o jovem Babalô quisesse compensar o azar que tivera: seu corpo não acompanhara plenamente seu brilhante desenvolvimento cognitivo; sua Idade orgânica era de aproximadamente onze anos, o que provocava uma jocosa disparidade. Babalô era um fabuloso adolescente com um corpo absolutamente infantil. Isso o faz transpirar de inveja, pensei, afinal ele tem diante de si um belo jovem Digitalis, que goza seus incríveis dezenove anos I.c., na mais singela harmonia entre corpo e mente.
Professor Babalô, com todo o respeito, não me faltam referências profissionais positivas! Tudo que lhe peço é uma chance, uma única chance para fins de comprovação, uma oportunidade de demonstrar minha utilidade no projeto Tentei argumentar, humilde, mas enfaticamente, ciente de que este seria o único meio de convencê-lo a me ouvir. Nada como um argumento claro e honesto!
Uma chance de provar sua maturidade e capacidade? - falou Babalô, cheio de ironia, alçando os músculos da testa desnuda Parece-me razoável... Muito bem! Pegue um dos suínos rosa e lave-o com água e sabão. Agora mesmo!
Os suínos rosa eram animais de laboratório, cobaias-clone, artificialmente criados com o fim de estudarmos e monitorarmos os efeitos da radiação solar, além de servirem para testarmos toda sorte de produtos dermatológicos. Evidentemente, Babalô verificava minha capacidade de suportar ordens, bem como minha humildade ao ter de banhar porcos de laboratório, tarefa que nem os robôs auxiliares faziam manualmente.
Professor, eu posso me sujeitar às suas ordens, mas creio que estamos perdendo vidas, tempo e recursos! afirmei em tom grave.
Pela primeira vez o menino me olhou diretamente, algo admirado.
Bem... Você está certo... Não vamos perder tempo! Vou incumbi-lo de uma tarefa mais produtiva, e se você cumpri-la adequadamente, será membro de nossa equipe. Agora, meu jovem, preste atenção, se eu considerar o seu trabalho insatisfatório, vou mandá-lo embora tão depressa que não vai ter tempo nem de suspirar!
Sim senhor! - respondi triunfante e esperançoso.
Ótimo! Apresente-me uma tese com as suas hipóteses referentes às condições que propiciaram o surgimento do Homo Sapiens Evolution.
O garoto Evol atirou-se para trás na poltrona flutuante, folgadamente, como se desfrutasse férias num delicioso oásis sombreado. A aparência de Babalô não me enganava. Era pequeno, porém um salto em seu desenvolvimento físico era iminente, e dentro de pouco tempo seu corpo tomaria as formas de um típico adolescente, isento de primitivos pelos e unhas, mas ainda acossado pela explosiva testosterona. Contudo, no momento ainda era um infante atrevido, que se destacara, excepcionalmente, pelos conhecimentos avançados em manipulação genética e que, para o bem ou para o mal, chefiava uma importante equipe de pesquisadores. Além da costumeira precocidade Evol, Babalô manifestara alta habilidade, especialmente no que dizia respeito às ciências biológicas, mas, sem dúvida, ainda carecia de maturidade emocional, que só viria nos anos seguintes, aos nove ou dez anos I.c.
Posso lhe apresentar a tese em forma discursiva? perguntei, abrindo mão dos recursos holográficos.
Perfeitamente! falou o pequeno arrogante, aparentemente impressionado com minha ousadia.
Pois bem, a tese que defendo é a seguinte: estamos sendo bombardeados por radiação solar nos últimos séculos; assolados de forma ímpar pelo sol. Esse fator ambiental, a radiação solar, claramente mutagênico, associado à Lei de Darwin de Seleção Natural, nos brindou com avanços na escala evolutiva!
Babalô ficou em silêncio. Parecia meditar.
E os símios?
Os macacos? O que tem os macacos? indaguei sem entender aonde o professor queria chegar.
Porque os macacos não evoluíram?
Senhor, se refere aos chimpanzés? perguntei apreensivo, sentindo que o raciocínio do garoto me escapava.
Precisamente! Mas não apenas aos chimpanzés, mas também me refiro aos Bonobos, Orangotangos e Gorilas. Por quê não evoluíram? Foram igualmente torpedeados pela mesma radiação solar ímpar, e também sobreviveram a Grande Mudança de 2030.
Num piscar de olhos me senti enredado, simplesmente não me ocorrera comparar os símios sobreviventes aos humanos sobreviventes. Simplesmente não me ocorrera comparar as trajetórias. E agora não sabia o que dizer.
Bem... Você tem razão. Humanos e símios são espécies suficientemente próximas para nos perguntarmos porque ambas, expostas às mesmas condições ambientais mutagênicas, seguiram rotas evolutivas tão diferentes. Porque a espécie humana apresentou saltos evolutivos tão definidos e espetaculares e os grandes macacos continuaram exatamente iguais aos seus antepassados?
Súbito, tive plena e dolorosa consciência do que significava ser um digitalis. O pequeno gênio de seis anos I.c. acabara de demonstrar o quanto eu, dezenove anos I.c., estava obsoleto. Senti-me uma tartaruga preguiçosa e lenta diante de um coelho esperto e ágil. Baixei a cabeça, humilhado.
Você foi aprovado! exclamou o menino, num grito de júbilo.
O quê? retruquei aflito, sem acreditar no ouvia.
Bem-vindo professor Zambi à equipe multidisciplinar de Estudos da COBRAPA (Comunidade Brasileira de Pesquisas Avançadas).
Fez-se silêncio na sala. Babalô sorria.
Desculpe, mas não estou entendendo. Eu errei, não respondi adequadamente à pergunta, não argumentei suficientemente bem... falei francamente.
O senhor apenas não havia pensado no que eu havia pensado, mas foi capaz de ouvir e reconhecer uma argumentação momentaneamente melhor do que a sua. Foi capaz de se guiar pelo raciocínio lógico e científico, mesmo quando quem lhe falava era um desprezível menino. Então, caro professor Zambi, o senhor está pronto para interagir com uma equipe que se guia pelas idéias objetivas e não pelos estereótipos, além disso, tenho ouvido falar que o senhor é o mais brilhante digitalis que já nasceu disse Babalô, assumindo uma nova postura profissional e estendendo a mão para me cumprimentar, exibindo um sorriso irônico no rosto.
Foi então que compreendi. Babalô era adulto! Deus do céu, como podia? Era emocionalmente precoce também!
Será uma honra trabalhar com o senhor! afirmei, sentindo a um só tempo respeito e admiração pelo homenzinho, mas também um pouco de rancor, afinal ele me enganara e acabara de tocar, embora sutilmente, numa questão extremamente delicada, ao me citar, talvez com intencional ironia, como o mais brilhante digitalis que já nasceu. O que ele pensava dos demais digitalis, supostamente menos brilhantes que eu? Além disso, não podia desconsiderar que acabara de ser derrotando por ele, numa espécie de artimanha intelectual; pensaria ele que derrotando a mim, todos os digitalis estivessem também definitivamente derrotados e inferiorizados? Naturalmente, eu não simpatizava com qualquer idéia que remetesse a uma possível superioridade Evol, ainda que do ponto de vista cognitivo ela fosse praticamente inquestionável. Desfez-se nesse dia qualquer tendência em mim a ver Babalô como mera criança mimada. Ele era um homem adulto e poderoso, tinha uma mente arguta, mas eu ainda desconhecia sua índole.
Deixei o gabinete do professor Babalô perturbado com os acontecimentos. Estava feliz por estar conquistando um dos meus maiores desejos, trabalhar na conceituada COBRAPA, uma das instituições científicas mais respeitadas do mundo; contudo, meus sentimentos estavam abalados. Eu seria um dos raros digitalis a trabalhar num universo de Evols fantásticos. Temia ser humilhado, mais do que isso, temia ser continuamente humilhado; temia não poder defender os digitalis, representá-los com dignidade. Nosso futuro estava em jogo. Se eu fracassasse em minha missão científica - não contribuindo efetivamente para a Comunidade - não restaria nenhuma dúvida de que os digitalis deveriam ser subordinados a um governo Evol, que as tarefas e missões menos importantes nos seriam delegadas, enfim, a porta estaria aberta para um regime ditatorial. A volta dos senhores e dos servos; dos arcaicos senhores feudais e seus vassalos! Sobreviveria o Capitalismo Solidário, conquistado a tão duras penas, a essa relação de poder tão desigual? Sobreviveria a solidariedade aos bafejos de tão grande dominação? O poder do conhecimento superior precisava ser distribuído urgentemente e eu era a maior esperança de que isso acontecesse!
Enquanto meditava sobre estas questões perturbadoras, percebi que o pequeno Babalô me prestara um grande favor, e talvez tivesse sido um verdadeiro amigo. Ele me mostrara o poder dos Evols, e derrubara meus conceitos precipitados e tolos, fazendo que jamais eu voltasse a entender os Evol simplesmente a partir da aparência física ou mesmo a partir de um diálogo breve, fora de um contexto mais amplo. Babalô também me mostrara que se eu conseguisse argumentar suficientemente bem, eles me ouviriam. Eu tinha alguma chance, concluí, mínima que fosse, mas tinha.
Do prédio da COBRAPA, no vigésimo andar abaixo do solo,
rumei para a via Atômica-Solar, que me transportaria em segundos
para casa. Mas antes resolvi subir à superfície e apreciar
um pouco a paisagem do Oásis Amazônia com sua magnífica
e preciosa floresta. Precisava relaxar e meditar. No dia seguinte eu seria
apresentado à equipe de Evols e talvez pudesse traçar alguma
estratégia inicial para esse primeiríssimo encontro...