O homem que pensou ser Deus - Ronaldo Torres

Capítulo  5

Tinha Um Morto no Meio do Caminho

Zé do Norte acordou cedo para levar a sua mãe ao aeroporto. Ela viajara quase dois mil quilômetros para passar o dia das mães com ele, vez que seu filho era um rapaz muito ocupado, trabalhava o dia todo fazendo transporte coletivo alternativo em sua Kombi, e não podia se dar ao luxo de viajar a lazer, mesmo sendo para ver a sua mãe, parentes, aderentes e amigos. Só quando as coisas melhorassem ele retornaria à sua terra natal para matar a saudade. Não existia satisfação maior do que a do reencontro com os amigos de infância em um brinde espumante numa mesa de bar. E saber notícias dos que ficaram, se inteirar das novidades e contar a sua vida ao seu modo, valorizando os acertos e suprimindo os desacertos. Assim passaria a idéia de um homem bem sucedido, vitorioso, realizado. Na vida, o que conta são as vantagens; as desvantagens são acidentes de percurso.
Foi idéia da sua amiga virtual trazer a sua mãe para passar uns tempos com ele naquela cidade linda, maravilhosa e cheia de mistérios. Era uma pena que essa sua amiga morava longe, em outra cidade, em outro estado da Federação, e não puderam marcar um jantar de despedida. Aliás, ele se lembrou que nunca perguntou a ela a cidade do seu domicílio. Faria isso mais tarde, quando retornasse da labuta. Se ela morasse numa cidade perto, poderiam marcar um encontro para se conhecerem.
A virtualidade internética tinha suas vantagens e desvantagens. A vantagem era a correspondência em tempo real. Bastava um clique e no minuto seguinte a outra pessoa já recebia a mensagem, bem diferente da época do correio convencional, que levava até semanas para entregar uma carta. Isso quando não extraviava.
As desvantagens são várias, sendo que as principais se resumem na falta de cheiro e no anonimato do destinatário. A carta convencional é igual a carro novo e a bebê: tem um cheiro característico, próprio, inconfundível; a carta eletrônica não passa de combinações binárias de zeros e uns que nunca traduzirão o nosso perfume, o nosso cheiro. Já o nome e o endereço, do destinatário, são verdadeiras incógnitas, sendo que uma pessoa que se apresenta como Raimundo, pode na verdade, ser um cidadão cujo nome civil é Antonio. Outros se apresentam como sol, estrela, mar, rio, jacaré e o escambau. Uma grande parte das pessoas que transam uma amizade virtual não diz seu nome verdadeiro. É igual àqueles anúncios nas páginas de revistas de antigamente, como "procura-se amigo", em que todo mundo era loiro, de olhos verdes, um metro e setenta e super-inteligente.
E o endereço então? Como mandar flores para o endereço eletrônico Manoela arrouba qualquer  coisa ponto com? Como enviar um presente de aniversário ou fazer uma visita de surpresa? Havia dois anos que tinha conhecido a sua amiga virtual, em um grupo de literatura, trocaram correspondências sigilosas, confidências criptografadas, no entanto até aquele momento ele não sabia seu nome verdadeiro. Se escondiam na malícia de inventar nomes e se limitavam no tratamento de Zé do Norte e de  Formiguinha. O sobrenome era pontocom. Ele, em momento de rara sinceridade, disse que o seu nome de batismo era João de Deus. Zé do Norte era apelido por ele ser da região Norte. Também não disse ondemorava, vez que ela nada revelou de si. Mistérios que se escondem atrás da combinação digital e que tornam os amigos mais íntimos em obscuros poços de informação e desconhecimento.
Zé do Norte, ou João de Deus conforme sua certidão de nascimento, divagava sobre tudo isso no retorno do aeroporto, dirigindo acima do limite de velocidade urbana, pois estava em cima da hora de fazer a sua primeira viagem transportando passageiro. De repente ouviu um baque seco na lataria da Kombi e instintivamente levou o pé ao freio, travando as rodas e queimando pneu no asfalto. Viu um corpo passar voando e cair na calçada, espirrando sangue no pára-brisa. O motor estancou e Zé do Norte desceu do carro sem compreender o que havia acontecido. Atropelara alguém?
Se atropelara, só podia ser  O Homem Invisível.Refeito do susto, viu um corpo estendido no chão, miolos aparentes, o carro sujo de sangue e o teto todo amassado. Levou as mãos à cabeça e vociferou uma praga.
Teve vontade de chutar o defunto quando se inteirou do acontecido. Que filho de uma cadela! Por que simplesmente não tomou um copo de veneno ou deu um tiro na cabeça, em vez de causar prejuízo aos outros? E agora, como ia sobreviver sem o carro e ainda tendo que arcar com os prejuízos? Filho de uma puta!
O porteiro reconheceu o morador e lhe levou um copo d'água com açúcar. Zé do Norte se acalmou, se sentou na calçada e ficou aguardando a Polícia. Olhou para o céu e se deu conta que o dia ainda não havia amanhecido por completo. Nuvens de chuva se formavam em prenúncio de tempestade. Sentiu vontade de chorar, mas se conteve. Ficava feio um homem do Norte chorando feito menino no meio da rua e em terra dos outros. Que diriam os seus amigos se o vissem chorar? Haveriam de lhe comparar com um chanfrona, um baitola qualquer.
A polícia chegou e Zé do Norte foi interrogado pelo detetive-chefe. Queriam saber de detalhes que nem ele mesmo sabia. De repente um barulho, uma freada e um corpo no chão. E o seu carro amassado, sem poder conduzir passageiros.
O detetive-chefe, depois de mandar fotografar de vários ângulos, entrou no edifício para tomar o depoimento do síndico e do porteiro. Outros policiais o seguiram, inclusive o fotógrafo. O batalhão de trânsito apareceu e os guardas tomaram posição de orientação dos veículos. A perícia mandou Zé do Norte recolher a Kombi, que estava atrapalhando o trânsito.Zé do Norte levou a Kombi para o estacionamento do prédio. Ainda não sabia o que fazer pois o carro não tinha seguro. E as suas finanças estavam a zero. O jeito era apelar para alguém. Mas quem? Entrou no prédio. O porteiro conversava com uma moça. Se dirigiu ao elevador e a moça que conversava com o porteiro pediu para ele segurar a porta e correu em sua direção.
Era uma moça simpática. Antes de ele apertar o botão, ela pressionou o número 25. Era para lá que ele também ia e ficou na dele. Estava tão absorto em seus pensamentos que se esqueceu de puxar conversa.
Desceu no vigésimo quinto andar no exato instante em que alguns moradores puxavam o síndico à força. Parou para conversar com eles e ficou sabendo que o síndico queria ser preso por desacato à autoridade e eles estavam evitando o pior. Ajudou a empurrar o síndico para dentro do elevador, fechou a porta e o elevador desceu.
Encontrou mais alguns conhecidos e trocaram impressões a respeito do acontecido. Falou do prejuízo que teve com a Kombi e de que não sabia o quê fazer. Estava ali para saber se o morto tinha algum parente que lhe ajudasse a pagar o prejuízo, que não fora pouco.
Dirigiu-se ao apartamento e pediu para falar com o detetive-chefe. Este mandou lhe avisar que havia localizado a esposa do suicida e que estava aguardando a sua chegada, mas que não era o momento propício de se falar de prejuízos. No outro dia ele fosse à Delegacia de Homicídios, que veria o que podia fazer por ele junto à família do morto.
Zé do Norte, com o coração aliviado, foi para o seu apartamento, no quinto andar. Chegou em casa e foi direto para o banho. Lembrou-se de que não havia forrado o estômago e se sentia faminto. Preparou um sanduíche de presunto, despejou leite em um copo e ligou o computador, na sala. Enquanto reinicializava, ele devorava o sanduíche. Satisfeito o estômago, conectou-se à internet, clicou no grupo literário que fazia parte e viu mensagens repetidas de Silveirinha procurando Formiguinha. Apagou todas e parou na mensagem de Formiguinha para Silveirinha. Abriu. Leu e não entendeu. Apagou e abriu a mensagem seguinte, de Paraná para os dois. Achou um absurdo a máfia mandar matar alguém em sua própria casa e o síndico estar envolvido com tráfico de drogas. Em que país nós estamos! E pra que o FBI? Será que Paraná não estava exagerando? Onde será que fica esse prédio da Paraná? Será que é nos Estados Unidos? Claro, é isso! Para ter o FBI só pode ser coisa de americano!
Lembrou-se então do acontecido no seu prédio. Clicou em responder, encaminhou a mensagem para os três, e escreveu: "Aqui no meu prédio também aconteceu uma coisa horrível. Um maluco resolveu se suicidar e achou de cair em cima do meu carro, estragando todo o teto da minha Kombi. Ainda não sei como fazer para cobrir o prejuízo. O chefe de serviço da Homicídios prometeu me ajudar, tentando um acordo com a família do morto. Mas isso só vou saber amanhã.
Paraná: que doideira é essa aí no seu prédio, mulher? Até o síndico envolvido com a Máfia! Ainda bem que aqui no Brasil não tem dessas coisas. Formiguinha: não entendi nada da sua mensagem, mas como não era pra mim, deletei. A minha mãe já voltou para o Norte. Deixou um grande beijo para você. É uma pena que não moramos na mesma cidade para um bate-papo informal. Estou precisando muito de um ombro amigo.Um beijo para as duas. Saudações para o Silveirinha.
Zé do Norte."