O homem que pensou ser Deus - Ronaldo Torres

Capítulo  6

Um Deus Que Não Sabia Voar

Somente depois que se atirou no vazio, Silveirinha recuperou seu estado de lucidez total e tentou voltar, porém mãos poderosas e invisíveis seguraram o seu corpo e o puxaram para baixo, em direção do solo, onde ele via as pessoas caminhar parecendo formigas na trilha do formigueiro. O seu fim havia chegado de maneira trágica e ele não entendia o resumo da ópera. Não se lembrava de nada daquela manhã, e não atinava sobre o que estava acontecendo: deitou-se à noite, depois de escrever o seu diário, e agora acordava em vôo suicida. Será que era sonâmbulo? Morreria sem saber a resposta. Ou estava sonhando? Sim, era um sonho! Antes de chegar ao solo, ele acordaria assustado e beberia um copo d'água com açúcar para se acalmar.
Mas estava real demais para ser sonho. Olhou para o horizonte e viu o último nascer do sol da sua vida. O céu estava cinzento, nublado, sinalizando chuva mais tarde. Que lhe importava se chovesse ou não? Dentro de instantes seria um defunto mal falado, pois nenhum suicida é bem visto pela Igreja nem pela polícia, que é obrigada a abrir inquérito policial para dizer que o morto tinha vontade de morrer. Lembrou-se de uns versos sobre um suicida, de um poeta amigo seu:

"Vai-se fundo em sua mais íntima vaidade
Perde o morto a sua nobre identidade."

Vasculhariam todas as suas intimidades em busca de uma explicação. Ficariam chocados se descobrissem que nem mesmo ele sabia o que aconteceu. Que diria a sua mulher a respeito? Conseguiriam localizá-la a tempo do enterro? Conseguiria a polícia descobrir o endereço real de sua Formiguinha?
Dizem que os suicidas vão direto para o Inferno, sem precisar de passaporte nem do carimbo da Imigração do Além. Ou então ficam vagando pelo mundo desencarnado, até cumprirem sua sina ectoplasmática nas sessões mediúnicas e receberem perdão dos deuses. E os padres nem perdem seu precioso tempo celebrando missa de corpo presente nem de sétimo ou trigésimo dia. Geralmente missas fúnebres não rendem óbolos e os padres trabalham a contragosto, pois só contam com a miséria do valor pago na hora da marcação da missa. E ainda têm que aturar o chororô dos parentes do defunto. Os judeus são mais radicais, pois nem aceitam que se sepulte em seus cemitérios. Para eles, o suicida é a parte que cabe no ditado "não tem onde cair morto".
Quando passou pelo décimo-quarto andar, Silveirinha vislumbrou a sua vizinha "galinha" sentada ao computador. Se ela tivesse aceitado o seu pedido de namoro, com intenção de casamento, o seu fim seria outro. A recusa, pura e simples, e ainda debochando dele, mandando um espelho para que ele se enxergasse, e ainda lhe chamando de velho lambão, fez com que ele perdesse o tino e se trancasse dentro de suas mágoas, com a alma ferida e decidido a não mais servir de ridículo para ninguém. A solidão é má conselheira e faz as pessoas cometerem loucuras. As longas noites que passou procurando alguém na internet para conversar, era só uma maneira de preencher o seu vazio interior, agravado pela timidez em procurar um amigo de verdade, de corpo e alma do mundo real, e pudesse olhar nos seus olhos e segredar  suas aflições e também pudesse jogar conversa fora no fim das tardes, sentados em uma mesa de bar, entre um flerte e outro dentro da realidade; em vez de preencher a solidão da noite saindo com a família para uma farra gastronômica ou até mesmo em um passeio pela praça, preferiu se trancar na redoma virtual e conversar, e até transar, com pessoas as quais nunca saberia a procedência nem de como eram na realidade.
Será que a Paraná e a Formiguinha chorariam a sua morte? Paraná, grande e complicada figura! Entrou na sua vida furtivamente para querer dominar seu mundo.
Era outra solitária perdida no tempo e no espaço. Em vez de procurar um aconchego amigo, preferia os meandros da discórdia e da intriga. Tão amiga da Formiguinha, e só vivia falando mal da criatura. E Formiguinha, coitada, burra e cega para as armações da amiga. Quando souber das traições, será capaz de ter um troço. Era uma pena morrer sem conhecer o desfecho nem o rosto de nenhuma das duas. Como seriam na vida real? Eram casadas, tinham filhos, emprego ou não passavam de duas vadias mesmo?
Quando o concreto da calçada se abriu para receber o corpo de Silveirinha, ele se deu conta de que morreria sem saber o nome verdadeiro da sua Formiguinha e que, apesar de transarem sexo virtual por mais de dois anos, ela sequer choraria no seu enterro, por falta de quem lhe desse o aviso.
O corpo de Silveirinha atingiu a capota de uma Kombi que passava em frente ao prédio naquele exato momento. O choque do corpo com a lataria fez um barulho que foi ouvido a centenas de metros de distância. Sangue e miolos espirraram em quem estava perto e o veículo em velocidade desviou o corpo para a calçada, fazendo um ruído seco e abafado.
Um cão vira-lata faminto, lambe o sangue da poça que se formou, sem que aparecesse alguém para interromper o seu banquete.