Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  1

Duas Marias

Orê Yeyê ô! (*) 

A menina acordou com o barulho ou, pelo menos, pensou que sim. Tinha os sentidos ainda confusos e os membros entorpecidos pelo sono. As pancadas secas que ouvira em seu sonho (sonho?) lembravam o som ritmado de uma enxada cavando a terra. Ainda no torpor da semi-inconsciência, fez um esforço e sentou-se bruscamente esfregando os olhos. Sonho? Maria lembrou-se de repente que não sonhava nunca e, por baixo das pancadas secas, acabara de distinguir os gemidos abafados de sua mãe. Sabia muito bem o que era aquilo e, num misto de susto e raiva, gritou:

— Mãe?

As pancadas cessaram, mas não houve resposta. Pelo menos, não de imediato. Na penumbra do barraco, a luz esbranquiçada da alba começava a imiscuir-se pelas frestas das paredes de tábua prenunciando o dia. Então, Maria viu o vulto compacto do padrasto atravessar num arranco a cortina de chita estampada com florzinhas azuis, única divisória entre seu canto e o deles. Encolheu-se, cobrindo a cabeça com o farrapo de colcha, mas o padrasto passou por ela sem se deter e abriu com um pontapé a porta já esfrangalhada do barraco.

—Foi ao banheiro se aliviar — pensou, desejando ardorosamente que além da bexiga o desgraçado precisasse também aliviar as tripas. — Assim ele fica mais tempo por lá... — completou em pensamento.

— Mãe? — chamou de novo — ele machucô muito ocê?

Na verdade, a menina reunia coragem para atravessar a chita florida e verificar os estragos por si mesma. Não tinha medo do sangue, mas odiava vê-lo escorrer, vermelho e rutilante, da boca e do nariz de sua mãe. Nesses momentos, se alguém lhe perguntasse, ela não saberia definir seus próprios sentimentos. Raiva, impotência, culpa ou tudo isso ao mesmo tempo, fluindo de dentro dela em ondas, ondas escuras e tão fortes que ela se sentia sufocar. Entretanto, como ninguém jamais lhe perguntasse coisa alguma, Maria sempre acabava empurrando sua fúria para dentro, respirava fundo e seguia adiante.

Andava lá pelos doze anos e era uma negrinha feia — tribufu — como lhe chamava o padrasto. Alta demais para a idade, quase ombreava a mãe. As pernas compridas e o longo pescoço da sua raça lhe compensavam o tronco curto, onde já se desenhavam dois montículos em formato de araçá-do-campo, os quais, sem a mínima discrição (pois que a natureza não se prende a falsos pudores) prenunciavam o devir da mulher. Afortunadamente, no seu caso específico, esse devir, apesar dos montículos, ainda não era tão fácil de se vislumbrar... Suas roupas, largas e mal ajambradas, lhe acentuavam o aspecto infantil. Estranhamente, ela parecia apenas uma criança enorme, quase um mamulengo. Talvez, em seus olhos (mas só neles), embora arregalados em permanente espanto diante da vida, poder-se-ia reconhecer alguma coisa da verdadeira natureza daquela quase mulher-maria: no fundo deles, mas bem no fundo, já brilhava uma luz suave, castanho-dourada, o tom exato dos pigmentos que lhe coloriam a íris. Esta luz, sim, pronta a irradiar-se em aconchego e doçura, tão logo o espanto lhe deixasse espaço para se difundir.

Do lado de lá da chita, a mãe respondeu, abafando um último soluço:

— Preocupa não, fia. Foi nada. Só tô cansada — e arrematou:

— Levanta e faz o café do Nonô. Prepara tamém a marmita dele. O feijão-com-arroz já tá pronto na panela em cima do fogão. Tira umas costeletas da banha e frita elas. Porveita e vai lá fora prá vê se a carijó botô. Ocê sabe que o Nonô gosta de ovo na marmita dele.

Estremunhada, mas obediente, ela se levantou, encheu a chaleira com um pouco da água estocada num latão de vinte litros e acendeu o pequeno fogão. Empurrou a panela do arroz-com-feijão para o canto — precisaria das duas trempes — e depois remexeu o outro latão, este cheio de banha até a borda para conservar a carne de porco. Pescou lá de dentro duas ou três costeletas, tomando o cuidado de trazer com elas bastante banha, e jogou tudo na frigideira ainda fria. A maçaroca derreteu em alguns minutos, a gordura começou a chiar e o cheiro rançoso da carne frita se espalhou pelo barraco. Apesar do estômago vazio desde a véspera ou talvez por isso, sentiu-se vagamente nauseada e tentou ignorar o desconforto preparando o tripé com o coador. Mediu o pó com cuidado, que o Nonô não gosta de café forte. Água de batata: é disso que o disgramado gosta. E doce. Bem doce. 

Maria destampa a chaleira e observa as pequenas bolhas começando a se formar no fundo. Num gesto raivoso, soterra todas as bolhinhas recém nascidas com vigor e boas colheradas de açúcar. A água ferverá em breve, mas assim mesmo a menina experimenta algum alívio. De certa forma era como se estivesse enterrando o Nonô. Contudo, um chamado da mãe a faz retornar à realidade crua da simples água-de-fazer-café.

— Maria! — sussurra a voz por trás da chita — Ocê já foi vê a carijó?

— Inda não, mãe. Vô agurinha memo. — responde, sem ânimo para confessar que preferia evitar um encontro com o Nonô lá fora, quando este saísse do banheiro.

Na verdade, “banheiro” era o curioso eufemismo usado para designar a latrina externa, precário telheiro erguido atrás do barraco, cujas laterais feitas de ripas de caixote mal sustinham a porta sem taramela ou preservavam a intimidade de qualquer eventual usuário. Banhos mesmo só no riacho que corria nos fundos da Vila da Biboca. Isso quando fazia calor. No tempo do frio era banho de caneco, na bacia, com a água amornada no fogão. Amornada só, pois que o gás era caro.

Deixando a água prestes a ferver e a banha chiando alto, Maria finalmente atravessou a cortina. Postou aos pés da estreita enxerga que a mãe ocupava com o padrasto, e ficou ali de pé, quieta. A alba já dera lugar à aurora, espantando a penumbra em troca da claridade avermelhada, que entrava generosamente através da porta escancarada pelo Nonô. Maria de Oxum ajeitou-se no leito, recostou-se ligeiramente, mas manteve o rosto virado para o canto sem ousar encarar a filha.

— Larga dele, mãe! — disse a menina com veemência.

— Nonô é um home bão — retrucou Maria de Oxum, ainda sem olhar para a filha. — E nois percisa dele, qui só minha freguesia de roupa num dá pra sustentá ocê mais eu, não!

Desta vez, Maria de Oxum abraçou os joelhos, levantou a cabeça e olhou firme para a filha. Um dos olhos não se abria direito, inchado por conta da valentia do Nonô. Não havia sangue, ela já o havia limpado, adivinhou a menina, mas sua boca parecia um murundu. Aquela boca que sabia sorrir, faceira, mostrando a imaculada brancura dos dentes, movia-se agora com dificuldade, a voz saindo sussurrada e pastosa.

— Isso deve de doê muito — pensou a menina, com o coração partido.

— Larga dele, mãe! — repetiu. — Nois dá conta, sim. Eu já ajudo com a roupa, num ajudo? Posso ajudá mais. Assim, nois pode tê freguesia dobrada.

— Nonô é um home bão. — perseverou Maria de Oxum.

— Se ele é tão bão, pru mode que tanto gosta di machucá ocê, mãe?

— Sei não, fia. É os nervo dele. Nonô chegô nervoso, cansado, deitô e drumiu. Eu tossi forte, e minha tosse incomodô ele. Pur isso já acordô enraivado. Fez pur mal, não. Bateu sem vê.

Maria com os braços pendendo moles ao logo do corpo continuava aos pés da cama tentando adivinhar a mãe. Seu instinto de fêmea lhe dizia que aquele era um caso sem solução, mas a história da tosse a preocupou.

— Ocê anda tussino, mãe?

— Às veiz — assentiu sua mãe.

— Cospe sangue?

— Credo! Não fia, isso não! — mentiu Maria de Oxum.

A filha olhou para ela com infinita compaixão, estendeu a mão e lhe tocou os cabelos desalinhados numa tímida tentativa de conforto. Ficou ali parada alguns segundos e chorou, embora suas lágrimas não fossem perceptíveis. Maria sabia chorar para dentro e esta era uma de suas habilidades naturais. Depois, enxugou com o dorso da mão as lágrimas invisíveis, pegou o bornal de milho e partiu resoluta para o quintal em busca da carijó. Deixara de se importar com o maldito Nonô e tanto lhe fazia topar com ele ou não.

Lá fora, respirou com vontade o ar frio e agradável com cheiro de capim limão, expulsando de si os miasmas do barraco. Seus pensamentos voltaram-se novamente para a mãe. Maria de Oxum... Tão linda em seu porte de rainha, cujos longos e encaracolados cabelos tinham aquele mesmo cheiro limpo e fresco do capim-limão.

Mas agora havia o Nonô. O Nonô e a tosse. Subitamente, o frio da madrugada a invadiu e o perfume verde do capim desapareceu debaixo de um outro odor, escuro, terroso. A menina o identificou prontamente. Era cheiro de medo. Do seu medo. Sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos ruins e caminhou decidida no rumo do pequeno galinheiro desconjuntado.

Uns poucos pintos já taludos, quase frangos — e quase bons para a panela — ciscavam aqui e ali apesar da neblina ainda baixa e do enorme galo castanho empenhado em demonstrar autoridade com corridas curtas, finalizadas por esporadas rápidas ou bicadas de advertência.

Maria sorriu para o galo, que, ao vê-la, cessara a correria inútil e se aproximara da cerca, esperançoso.

— Sai da frente, bicho marvado! —disse ela, enquanto levantava a taramela, empurrava a portinhola e entrava no cercado. — Coisa feia martratá seus fio desse jeito! — completou, pensando alto:

— O que te sarva é qui ocê já tá veio e duro! Num dá nem canja! — debochou a menina, enquanto retirava do bornal pendurado ao ombro, o primeiro punhado de milho, que atirou às aves esfomeadas.

— Pruuuu-tchu-tchu-chu! — avisava às aves, enquanto continuava a jogar milho aos punhados, em várias direções.

A carijó, indecisa, continuava deitada sobre a palha com as asas semi-abertas. Maria prontamente enfiou a mão por baixo dela resgatando o ovo ainda morno, e o guardou com delicadeza dentro do bornal sobre o milho restante. Entretanto, a outra galinha — a pintada — em lugar de comer começou a cacarejar aos gritos. Conhecedora, Maria precipitou-se sobre ela e lhe apalpou o oveiro.

— Tá bão — riu-se a menina. — Eu espero...

A pintada ainda cacarejou alguns momentos, aquietou-se e, finalmente, botou seu ovo. Não muito grande, é verdade... mas Maria o surrupiou dela sem lhe dar sequer o gosto de anunciar a postura.

Passou-se o tempo. Um ano, talvez dois. Maria de Oxum e a filha continuavam a lavar a roupa de suas freguesas, no riacho que corria nos fundos da Vila da Biboca. As noites da menina ainda eram assombradas pelo som da enxada a cavar a terra. Negro som, com cheiro de morte. Morte e soluços abafados. Nonô, este ainda dividia a enxerga da mãe dela, do outro lado da chita florida.

Quando menor, ela perguntara à mãe sobre qual daqueles homens, que costumavam freqüentar a birosca da vila, seria seu pai.

— Nenhum deles, não, fiotinha — respondeu Maria de Oxum, com um sorriso despreocupado, e continuou:

— Quando peguei barriga d'ocê, eu me deitava com Viriato e Galeno; nunca cheguei a sabê de quar dos dois ocê era...

— E entonces? — quis saber a menina.

— Entonces — respondeu a mãe — os dois já morrêro. O Viriato, de morte matada, numa briga de faca com o Nonô, antes mesmo d'ocê nascê; e o Galeno, de morte morrida, pouco depois. Sei, não — continuou — o pobre minguou e morreu. — e acrescentou, sorrindo para filha seu sorriso lindo, enquanto meneava a cabeça e as ancas de um jeito só seu, e fazia tilintar os braceletes de cobre e latão, que usava em ambos os pulsos. Depois, percebendo que o olhar da filha se alongava sombrio, sorriu outra vez e a consolou:

— Liga, não, fiinha, que todos dois era de pouca valia e nenhuma serventia...

E Maria de Oxum riu alto, seu riso cristalino, abraçando a filha.

Agora o riso de Maria de Oxum se tornara cada vez mais raro. Nunca mais o som etéreo e transparente de sinos de cristal. O rosto encovara-se, os quadris, dantes fartos, se fizeram estreitos e os braceletes emudeceram em seus braços abúlicos. E havia a tosse. Sempre a tosse.

Em compensação, o Nonô agora aparecia cada vez menos. Ainda assim, se o som cavo da enxada já não despertava a menina, durante a noite, passara a lhe assombrar os dias. Sua mãe definhava. Um pouquinho de cada vez, mas na soma dos dias, a verdade se tornava mais e mais patente.

— Tá minguando, a pobre. — pensou ela; coração apertado. — Que nem o Galeno...

Alguns dias mais tarde, numa manhã de sábado, Maria voltava para casa carregando a bacia com as roupas que acabara de lavar. Estava só a meia dúzia de passos do barraco e bem do lado dos varais, ainda vazios. Descansou a bacia no chão de terra batida, endireitou o galho em forquilha que ajudava a sustentar um dos arames e, com as mãos em pala, olhou para o céu.

— O sol hoje tá bão pra secá ropa — pensou em voz alta.

Entretanto, não foi apenas o sol que ela viu. Um bando de pombos alçava vôo naquele momento e ela pode ouvir o ruflar de suas asas, enquanto desapareciam além das árvores do quintal.

— Ah... — sorriu feliz, enquanto ensaiava um passo de dança. — São as pombas de Oxum!

Mas a alegria foi breve. Segundos depois, seu sorriso já se congelara numa máscara de terror. Sua mãe é Maria de Oxum, e o outro possível significado de uma tal revoada atingiu-a de chofre como um soco no estomago.

— Mãe! — gritou desesperada, precipitando-se barraco adentro.

— Mãe? — sussurrava agora, como se temesse perturbá-la.

Maria de Oxum não escutou a filha. Jazia imóvel, em sua enxerga, levemente voltada para a parede de tábuas. Seus olhos estavam entreabertos, mas Oxum não espiaria o mundo através deles alguma outra vez. Nunca mais.

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(*) A epígrafe, em iorubá, corresponde à saudação tradicional a Oxum, conhecida no Candomblé como senhora dos rios e lagos. Oxum é bonita, faceira, e seu animal é a pomba. 

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