Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  2

INICIAÇÃO 

"Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?" 
(Carlos D. de Andrade, "Acordar, viver")

Aquela manhã de sábado, quando Maria voltara do riacho e encontrara a mãe morta no leito, ainda permanecia confusa em sua cabeça. Lembrava-se de ter gritado e, provavelmente, gritara bem alto, pois, em segundos, o barraco onde moravam se enchera de gente. Gente conhecida, cujos rostos, porém, permaneciam vagos, numa amálgama indiferenciada. Sabia que falavam, mas tampouco podia ouvi-los. Eram muitos. Eram tantos... E se moviam de lá para cá, tropeçando uns nos outros. Disso, ela se lembrava. Lembrava-se também de que, de repente, todos pareciam olhá-la. Havia olhos por toda parte. Olhos de dó. Olhos de susto. Talvez ainda gritasse. Talvez uivasse. Não se lembrava. Para ela era tudo silêncio.

O enterro da mãe fora no fim da tarde. Velório curto. Pobre. Em sua memória, porém, a tarde daquele dia já parecia mais nítida. Podia se lembrar do cemitério, de suas ladeiras e do som da enxada na terra. Havia soluços, mas ela não reconheceu os de sua mãe por mais que apurasse os ouvidos. Alguém tossiu, mas não era A TOSSE. E também não havia o Nonô.

De volta à vila, fora arrastada por seus parentes para a casa de um deles. Casa cheia. Cheiro de café. Cheiro de pinga, também. Pinga forte. Mas, por baixo desses odores, havia outros: cheiro de dor, cheiro de lágrimas. Suas ou dos outros? Ela não sabia.

— Come um pouquinho, fia. — disse alguém, em voz doce e compungida.

Comer? Sentia a garganta fechada e seca. Comer? De que jeito?

— Bebe isso aqui, minha nega. — disse uma segunda voz, um pouco menos doce. — É água com açúcar e vai lhe fazê bem. Dispois ocê come um tiquinho.

Obediente, tentou firmar o copo que lhe puseram nas mãos, levou-o até os lábios e bebeu. Bebeu tudo.

O vômito começou, segundos depois. Convulsivo, incontrolável. Veio em golfadas ácidas, esverdinhado. Alguém a segurou, e mãos compassivas limparam seu rosto e sua boca com um pano úmido. Sentiu certo alívio.

— Se afasta, gente! A menina percisa de ar puro! — alertou alguém.

Rapidamente, muitas outras mãos conduziram-na até a pequena varanda.

Tonta, vacilante e sufocada, Maria tentava respirar. Conseguiu com esforço. No começo superficialmente — doía —, depois, aos haustos. Sentou-se na mureta, os ouvidos zumbindo, a cabeça, estranhamente oca.

— Maria... — Ela levantou os olhos e deu com o bisavô, o velho Tuninho da Anta.

— Vô?

A resposta demorou um pouco a sair, e o som da própria voz a surpreendeu. Custara a encontrar uma palavra que lhe traduzisse o bisavô. Palavrinha curta, uma sílaba só, mas que precisara ser arrancada do fundo da memória, penosamente. Coisa difícil. Aquele sábado acordara o aterrorizado bicho-maria e, só agora, a maria-menina começava a retornar. Aos poucos e ainda aturdida. Por isso a demora na fala. Quase como quem busca por um vocábulo esdrúxulo de alguma língua estrangeira.

— Vô? — repetiu Maria, enquanto o velho, sentado ao seu lado, refazia com delicadeza extrema, impensável para aquelas manoplas nodosas, algumas das múltiplas trancinhas desfeitas dos seus cabelos encarapinhados.

Ela encostou a cabeça no ombro do bisavô e lá ficaram os dois, no escuro, enquanto o coração de Maria degelava e, devagarinho, voltava a se aquecer.

Voltou para casa no dia seguinte. Acordara tarde para os seus padrões, por isso, olhou o sol, já alto, preocupada. Havia a roupa lavada na véspera, ainda na bacia, tudo por estender e precisava tratar das galinhas. Estendeu a roupa, pegou o bornal de milho e rumou para o galinheiro. Recolheu o ovo da carijó e, após alguns segundos de hesitação, resolveu perdoar o da pintada.

— Pode ficá com seu ovo — disse ela à galinha. — Eu vô mais é tirá uma ninhada. Agora sô só eu...

Dando de ombros, acrescentou:

— Eu mais eu...

Sorriu de leve seu sorriso triste, mas este último pensamento trouxera consigo a pontada de dor, prenúncio de fim de anestesia. Maria o empurrou depressa para o mesmo lugar onde guardava as lágrimas que não chorava. Teve medo. Medo de acordar de novo o bicho-maria, pois, com esse, ela não sabia como lidar.

Enquanto percorria a trilha íngreme que conduzia do galinheiro até em casa, sem querer, ela prestou atenção ao enorme muro de arrimo, erguido alguns metros para além do barraco. Fora construído pela Prefeitura na intenção de conter a encosta, mas, para Maria, aquele paredão estivera ali desde sempre. Era muito alto e crivado de buraquinhos; centenas de boquinhas, bem redondinhas e engraçadas, cada uma cuspindo água quando chovia.

— Sem rir, sem chorá — cantarolou Maria, repetindo o primeiro verso da velha cantiga de brincar com o paredão.

Muito tempo atrás, agora parecia uma eternidade inteira, sua mãe lhe trouxera uma bola de borracha. Uma bola linda, toda vermelha. Mas era difícil brincar por perto do barraco, pois a danada fugia, rolando pirambeira abaixo. Às vezes, Maria só conseguia dar com ela de novo, uns dois dias mais tarde, escondida, em sua matreirice de bola vermelha, atrás de alguma moita de capim-limão ou, muito pior, no meio do bananal. Por isso, a mãe lhe ensinara o jeito de jogar com o muro.

— É facinho, fiota — dissera Maria de Oxum — atirando a bola contra o paredão e, segurando-a de volta, no rebate. — Tá veno? O muro devorve ela pra gente.

— Tem graça não, mãe — protestara a menina.

— Ah... Tem, sim... — retrucara a mãe. — É só ocê aprendê a cantiga e fazê direitinho tudo qui ela mandá. — E continuara:

— Primero ocê tem qui ficá séria. Num pode rir nem chorá...

E sua mãe recomeçara a atirar a bola contra o muro, vai e volta, sem parar, imprimindo sempre a mesma força, enquanto cantava:

“Sem rir, sem chorá, di um pé, pro ôtro, di uma das mão, pra ôtra, uma palma, duas palma, pirueta, palma atrás”.

— Agora deixa eu, mãe! — dissera a menina, ao mesmo tempo, divertida e encantada ao ver a mãe equilibrando-se num pé só, enquanto a bola ia e voltava ou quando Maria de Oxum batia palmas e fazia piruetas, sempre com os braceletes dourados tilintando.

— Sem rir, sem chorá — cantarolou Maria, a caminho de casa. Parou para colher algumas folhas de couve. Pensava fazer um escaldado de fubá e, quando estivesse quase pronto, estalaria por cima o ovo da carijó. Depois, era só desligar o fogo e tampar a panela. O ovo cozinharia só com a quentura e ainda ficaria molinho, como ela tanto gostava. Abaixou-se e pegou um punhado de ramos de salsa. Mais adiante, tornou a se deter, desta vez para apanhar algumas folhas cilíndricas de cebolinhas-do-ano-inteiro. Estas, porém, foram colhidas cuidadosamente, pois que havia toda uma ciência para o trato das cebolinhas. Arrancadas de qualquer jeito não tornavam a crescer.

Já em casa, botou a chaleira com água no fogo, lavou as verduras e as colocou para escorrer. Mediu três ou quatro dedos de fubá num copo, acrescentou água fria e misturou criteriosamente, não fosse ficar cheio de pelotas. A mistura ficara muito grossa e Maria pingou mais água fria. Deixou o copo de lado, para descansar. Inchado de água e descansado, o fubá cozinharia mais depressa e melhor, que escaldado mal cozido não presta.

“Sem rir, sem chorá”.

Olhou no pilão e viu que já havia bastante alho socado com sal. Hesitou um instante, deu de ombros, pescou três ou quatro pimentinhas de cheiro no pote das conservas, jogou no pilão e socou de novo, tudo junto, queria mais que ardesse na boca.

“Sem rir, sem chorá”.

Pegou uma tigela, procurou entre as facas e escolheu a de cabo vermelho. Enrolou as folhas de couve bem apertadinhas e começou a cortar fininho que nem cabelo. Faquinha boa e afiada; cortava macio. A tigela logo ficou cheia de cabelo de couve. Cabelo verde. Salsa e cebolinha, picadas bem miudinho. Picadas juntas. Faquinha boa; picava e repicava.

“Sem rir, sem chorá”.

Maria terminou de fazer o escaldado a preceito. Cheirava bem. Destampou a panela para esfriar mais depressa e, depois de morno, sentou-se na porta do barraco e comeu tudo. Na própria panela.

— Sujá prato, pra que? —perguntou a si mesma, em voz alta. E completou:

— Só eu mais eu...

No entanto, sentia-se melhor. Mais forte, mas um pouco sonolenta. Dormir fora de hora também era bom, às vezes. Mas não agora. Primeiro precisava lavar tudo que havia usado. Deu uma olhada nos latões de água: um vazio e outro pela metade. Dormir agora não dava, não.Tinha que buscar água na fonte.

A menina areou a panela, lavou a tigela, o copo e faca de cabo vermelho. Quando secava a faca, que isso deve ser feito com cuidado e atenção, senão perde o gume, pressentiu o Nonô. E pressentiu-o antes mesmo de ouvir seu andar pesado chegando perto da porta. Ele entrou.

— Cadê meu armoço, Tribufu? — perguntou ele, na sua voz de cachaça.

— A mãe morreu onte. — falou Maria, em tom neutro.

— Ouvi contá... — ele disse. E, após uma pausa curta, enquanto se escarrapachava na cama dela, encostada à parede do fogão, continuou:

— Agora samo nois dois.

— É, não — respondeu Maria, falando com ele pela primeira vez. Sentia o cheiro dele, por baixo do bafo de pinga.

— É não — repetiu ela. — Agora samo eu mais eu.

“Sem rir, sem chorá”.

O cheiro do Nonô acordou a fúria em Maria. Fúria antiga, empurrada sempre para o mesmo canto onde eram guardadas a dor e as lágrimas não choradas. Atingiu-a em ondas. Pequenas, no começo. Lembravam calafrios. Depois, enormes. Aquilo era bom e ela se deixou envolver. Sentiu o ódio e o reconheceu. Deixou-o vir também, e ele a fez crescer. Maria imensa de grande e sua faca de cabo vermelho. Gostava do cabo. Empunhadura boa, os dedos fechavam certo. Gostava da faca inteira, faquinha afiada, cortava macio. Girou o corpo, a faca na mão, o passo de dança.

“Sem rir, sem chorá, di um pé, pro ôtro...”.

Nonô olhou para a menina e urinou de medo. Maria se agigantava, mas não foi ela que ele viu. Ele enxergou o Caçador. O Caçador também olhou o Nonô, mas só viu a caça. Sentiu o cheiro da caça-nonô e era cheiro de medo.

“Sem rir, sem chorá, di um pé, pro ôtro, di uma das mão, pra ôtra...”.

O Caçador girava e dançava seu passo de dança. E faca cortava. Cortava macio, faquinha boa de cabo vermelho. Caça ruim, carne dura. Mas a faca cortava assim mesmo. Como se fosse manteiga.

“Sem rir, sem chorar?”

As pernas afastadas, as mãos na cintura, o Caçador jogou a cabeça para trás e riu seu riso enorme. Já não se importava com a caça-nonô que, espavorida, fugiu porta afora, esguichando sangue. Riu de novo, pois sabia que caça ferida não vai muito longe.

Maria jogou a faca na pia. Sentia muito sono e queria dormir. Pela primeira vez, desde que voltara para casa, atravessou a chita florida de azul, que dantes a separara da mãe e sentou-se na cama que fora dela. Então, o cheiro fresco e limpo do capim-limão desatou suas lágrimas. A menina deixou, e elas vieram todas, como se seus olhos fossem as bocas do paredão, por onde a água jorrava, quando chovia. Corriam livres, por seu rosto abaixo e Maria as chorou todas. Suas lágrimas eram vermelhas, verdes e de um azul desbotado. Quando se tornaram cristalinas como água que brotava da fonte, Maria, outra vez menina, adormeceu.

Acordou-a o toque delicado da voz do bisavô:

— Fia?

— Vô? — ela respondeu, e continuou:

— E o Nonô?

— O Nonô morreu. — disse o velho, calmamente.

— E a pulíça? — tornou ela — Eles já viero pra levá eu?

Tuninho da Anta riu com gosto.

— Puliça? Não, fia! Eles tá tudo lá em cima agora, na passage de nirve, ajudando a ensacá os pedaço do Nonô. Eu tava lá e vi quando o trem pegô ele. Vi também antes, quando o disgramado trupicô nos dormente e caiu atravessado, em cima dos trio. — E completou, com alguma displicência:

— Ele devia de tá bebo. O maquinista inté apitô, mas não tinha mais jeito de pará, não. Era uma composição enorme. — disse ele. Mas acrescentou, com certo ufanismo:

— Ocê sabe? Era mais de cem vagão, tudo carregadinho de ferro até nas borda, e três máquina pra puxá o colosso. Num havéra mesmo de sobrá grande coisa do Nonô. As veiz, Oxóssi mais Ogum trabaia junto.

— Nem sempre, mas as veiz acontece... — completou ele.

E Tuninho da Anta sorriu abertamente para a bisneta, que o olhava, confusa.

— Vem comigo, fia. — disse ele lhe estendo as mãos. — De hoje pra frente eu ensino ocê.

Maria segurou, feliz, a mão do bisavô e saiu com ele, sem se lembrar sequer de passar o trinco na porta do barraco. Lá fora ainda era dia, mas uma lua pequena e quase transparente já aparecia no céu. Lua fora de hora, quase um fantasma. Contudo, a menina e o bisavô caminharam trilha abaixo, de mãos dadas, e nem se deram conta. 

« Voltar