Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  3

A LAVADEIRA

Ode, ókè àró!
Olówwó gìrì-gìrì lóòde, ó gìrì lódè.
Ó wà nígbó òrò ode òkè ó dára sáa ló gbéeron
Olowô guirí-guirí lôodê ô guirí-guirí lôodê
Ô uá nibô órô ódé ôkê ô dára xáa lô bérã.
(Cantiga de Oxóssi)


Maria se tornara uma negra imensa e, por conta da estatura avantajada, pairava sempre mais de uma cabeça acima de qualquer macho das redondezas. A involuntária superioridade talvez explicasse o fato de ter chegado aos trinta anos ainda solteira. Aliás, solteira é modo de dizer, pois sua gente raramente se importava com formalidades inúteis, tais como padre e juiz. Pelo menos, não o Juiz de Paz...

Não, ela não arrumava era companheiro fixo. Suas curtas ligações terminavam sempre em irreversível abandono e, qualquer parceiro que arranjasse, acachapado pelo peso daquela disparidade, acabava sumindo de vez.

De certo, isso não seria razão suficiente para que, antes de partir, o eventual companheiro não lhe semeasse prole, tarefa tão corriqueira quanto rápida. Possivelmente o útero ou os ovários de Maria, não tiveram a ligeireza suficiente para lhe acompanhar o crescimento do corpo. A voz também não. Esta conservara um timbre delicadamente infantil, embora, nos momentos de aflição, que não eram raros, fosse capaz subir várias oitavas, em horripilante coleção de agudos.

Ainda morava nos arrabaldes da cidade, na mesma ladeira, que, aliás, como todas as outras, também era pavimentada de minério de ferro. O lugar chamava-se Alto-Pereira e era quase tão íngreme quanto uma parede. Contudo, por misericórdia sabe-se lá de quem, a rampa fora dotada de um pequeno tabuleiro plano, mais ou menos em sua metade. Dali se podia caminhar alguns passos que não fossem implacavelmente morro acima, ou parar alguns instantes e tomar fôlego.

Para Maria, porém, “morar” no Alto-Pereira, assim como “casamento”, eram apenas força de expressão e vaga referência. Ela jamais vivera à beira do meio fio. Nascera numa biboca paralela, cuja entrada ficava no tabuleiro, à direita de quem subia, e se precipitava, pirambeira abaixo, perpendicular à ladeira. Ali já não havia qualquer calçamento, embora os pedregulhos ferrosos, que afloravam da terra vermelha, de algum modo auxiliassem aos que faziam aquele trajeto diariamente. Isto no tempo seco, pois, quando chovia, o morro inteiro se transformava num tobogã de lama.

Mas Vila da Biboca não era só isso e, desde o princípio, nunca o fora... Caso alguém se postasse à beira do tabuleiro, num qualquer dia de sol, e olhasse para baixo, descortinaria, além do caminho irregular de terra batida, respeitável quantidade de casebres, amontoados uns sobre os outros. Alguns telhados seriam apenas parcialmente visíveis, encobertos pelo capim meloso alto ou moitas de bananeiras, que sempre pareceram compartilhar com os casebres o gosto pelas pirambeiras.

Todavia, se este mesmo observador ousasse percorrer o caminho em direção aos barracos, logo se descobriria no centro de um ativo povoado. Na realidade, tratava-se de uma vila dentro de outra e cada amontoado de casebres assinalava um grupo familiar. Havia até mesmo cercas. Não em torno das casas, mas dos pequenos terrenos. Assim, sempre que um membro de determinado clã constituía família, tratava de construir sua casinha dentro do terreno dos pais ou avós. A vida era comunal, embora isso não quisesse dizer, em absoluto, que fosse também harmoniosa. Maria vivia num barraco só dela, mas como todos ali, compartilhava o espaço com seus numerosos parentes.

Para garantir a subsistência, continuara trabalhando como lavadeira, e podia ser vista pelas ruas da cidade, equilibrando sobre a cabeça enormes trouxas de roupa, que buscava para lavar, ou devolvia, já lavadas e passadas. Uma de suas patroas, porém, não aceitava ter a roupa da família lavada em qualquer lugar e, por isso, durante três dias na semana, Maria trabalhava na casa dela. Casa grande, barulhenta, quatro crianças, um cachorro, um casal de coelhos, uma égua chamada Daisy, três gatos e, apesar destes, vários passarinhos. Certamente haveria muita roupa suja e Maria dava conta de tudo aquilo em dois dias, guardando o terceiro para engomar e passar a ferro. Trabalhava cantando, e cantava o tempo inteiro. As cantigas não faziam grande sentido, mas pareciam bonitas, naquela sua voz suave:

— Eu morava na areia, ...sereia, me mudei para o sertão, ...sereia, aprendi a namorar, ...sereia, um aperto de mão, ...ô sereiá.

A patroa jamais o suspeitaria, mas tais canções eram velhos pontos de candomblé. Contudo, havia um fato realmente inusitado: Maria era uma “filha de santo”. Sua família, aqui aportada séculos atrás, não obstante a violência representada por aquela Travessia, ousara conservar a própria identidade. E com tanto zelo o fizera, que lograra preservar boa parte da mais pura tradição iorubá. Em seu terreno, por trás das casas, funcionava exclusivo Terreiro, ou “Roça” de Candomblé, como ela mesma dizia.

Desde criança, Maria se revelara como filha de Oxóssi, graça que talvez lhe explicasse o tamanhão. Cedo passou pelo bori, tornando-se, ainda mocinha, no cavalo favorito do orixá, Caçador possante, dono das matas com todos os seus bichos. O bisavô materno, Tunico da Anta, talvez fosse um dos últimos babalaôs em terras brasileiras. Por isso, naquela altura, caso tivesse ocorrido a alguém interrogá-la sobre a fé que professava, ela teria respondido, candidamente, com a verdade. Contudo, ninguém lhe perguntou coisa alguma. A patroa achava que, como ela própria, todo mundo era católico apostólico e romano.

Na casa onde trabalhava, porém, havia outras empregadas: Sinhana, a cozinheira, eternamente trombuda; duas irmãs gêmeas, graciosas mulatinhas, que passavam o dia a cochichar, rindo às gargalhadas e, naturalmente, ainda havia a Stelita...

Stelita era um caso a parte. Tão preta que chegava a azular e meio retardada. Redondinha e pequenina de corpo, apesar de próxima dos quarenta anos, conservara a aparência juvenil. Oficialmente, era ajudante de cozinha. Infelizmente, Stelita demorava mais de meia hora para descascar uma única batata, por isso, já fora, com toda propriedade, corrida de lá, pela mal humorada Sinhana.

— Xô! — dissera Sinhana, certa manhã, perdendo de vez a paciência, quando, atabalhoada pela a hora de servir o almoço que se avizinhava, de repente se dera conta que o diacho da Stelita ainda bordava, caprichosamente, uma batata; a primeira de uma pilha de outras, que jaziam, intocadas, à sua frente.

— Xô! — repetira Sinhana, indignada. E completara:

— Já daqui pra fora. Muito ajuda quem não atrapalha! Trata de ir procurar sua madrinha, que de ajudante da sua laia, não preciso, não!

Stelita, que outra coisa não desejara, não esperou segunda ordem: limpou as mãos no avental e sumiu.

Sem função, ela agora acompanhava a madrinha o dia inteiro, pra baixo e pra cima. E, como esta cultivasse orquídeas e gostasse de pintar, a razão de existir da Stelita se tornara carregar apetrechos de jardinagem ou telas, tintas e cavalete, para onde fossem necessários. A patroa, contudo, além das orquídeas cultivava impressionante carolice. Adorava novenas e demais rezas fora de hora. Também neste pormenor Stelita a secundava com entusiasmado fervor.

As crianças da casa, porém, que jamais ousariam confrontar a mãe, mas diante de tal excesso de devoções pias, fugiam como podiam, costumavam descontar tanta amolação, chateando a Stelita com troças e pequenas peças. Nada que não se pudesse esperar de crianças irritadas, mas a negrinha, cujo rosto ficava ainda mais escuro, após cada brincadeira, as delatava sem piedade. Nunca se queixava diretamente delas, o que era sábio, mas se vingava enumerando com precisão cada uma de suas travessuras, e sorria feliz, quando eram castigadas. Coisa, aliás, muitíssimo habitual...

Entretanto, com Maria era diferente. Elas adoravam seu jeito esquisito, chamavam-na “Marião”, e estavam sempre por perto dela. E Marião, que não era empregada fixa e, muito menos, de dentro de casa, ficava livre para usar seus vestidões desengonçados, contrastantes com os uniformes engomados das outras criadas. Curiosamente, bem cedo, estabeleceu-se uma espécie de hierarquia entre as outras empregadas e Maria. As da casa envergavam seus uniformes, com orgulho, desprezando a lavadeira por não “merecê-los”, completamente esquecidas de que estes representavam apenas seu status de servidão. Não importa. Assim, o cavalo de Oxóssi conservou-se livre também para plantar no chão seus pés enormes e descalços, liberdade que as crianças trataram igualmente de conquistar.

Marião reinava sobre o tanque de lavar, o tacho de ferver roupa branca e o quarador de cimento liso, onde as peças eram expostas ao sol para que este tratasse de comer qualquer amarelão ou castanho suspeito que, porventura, ainda as maculasse. Mas seu reino compreendia o quintal inteiro, cuja relva macia e brilhante era boa de pisar e a luz, tão logo dissipava a névoa infalível que seguia os primeiros momentos do sol, permeava tudo, revelando até mesmo as cores mais escondidas. Boa luz. Tão competente que não podia ser detida nem mesmo pelo pomar, apesar do enorme abacateiro, das mangueiras de manga rosa e das jabuticabeiras em flor. As goiabeiras, que em sua característica indisciplina espalhavam-se aqui e ali, eram magrelas demais para oferecer qualquer barreira contra o sol. Muito menos, o velho marmeleiro junto ao muro. Contudo, apesar de acordar o verde vivo da moita de bananeiras, no fundo do quintal, apenas em seu interior a luz do sol não conseguia penetrar. Ali dentro era sempre penumbra a qualquer hora do dia e, para as crianças, revelara-se como um esconderijo ideal. O bananal formava uma cabana de paredes lisas e assoalho fofo, coberto por palha seca. Melhor que isso: sua magia os tornava invisíveis a qualquer olho bisbilhoteiro. Dentro da moita, elas podiam queimar os dedos e a língua o quanto quisessem, fumando seus cigarros de chuchu. Entretanto, por conta do seu pavor atávico às cobras, Marião logo transformou o bananal em tabu.

— São piquititas e fininhas — dizia ela, referindo-se às jararacas — mais o veneno delas é brabo. — E continuava:

— Isso sem falá nas cascavé, qui elas tamém gosta das paia di bananêra. E quando ôceis ouví o chucaio de uma, cês pode sabê que o bote da ôtra já tá armado, pois esses bicho só anda de dupra. Aí, ó... — E Maria passava rapidamente o indicador esticado pelo próprio pescoço, no gesto inequívoco e fatal, característico da degola.

Este discurso, porém, era mais que conhecido pelas crianças, pois o pai e a mãe, embora em melhor português, já os haviam advertido mil vezes deste perigo. Vindo dos pais, contudo, o aviso lhes entrara por um ouvido e saíra por outro. Entretanto, pela boca da Marião, aquilo tomou ares de verdade inconteste... Afinal, o maior perigo do interior da moita de bananeiras, não se resumia às cobras, ainda que estas pudessem ser cascavéis. Não, decididamente, os argumentos de Maria tinham maior peso...

— É? — disse, ela diante de uma leve tentativa de contestação:

— E Exu? Ocês tá s'isqeceno? Ele mesmo, o orixá Mensagero... Ocês num sabe, que entre um recado e outro, trançando entre o orun e aiyé, o céu e a terra, ele adora tirar uma soneca sobre as paia macia?

As crianças arregalavam os olhos para ela, fascinadas. Maria, que temia qualquer cobra eventual, muito mais que o próprio Exu, continuava seu didático discurso:

— Principarmente dibaixo do sol do meio dia, capaz de tostar até mesmo o lombo curtido de um orixá experiente... E rematava:

— Se acaso argum d'oceis perturbá o cochilo de Exu... Aí, ó! — e ela fazia de novo o gesto de degola.

— E as cobras não mordem ele? — querem saber as crianças, já com o linguajar misteriosamente próximo ao de Maria. Mas esta ri gostosamente e ensina:

— Exu é poderoso. Nenhuma cobrinha da Terra havéra de lhe fazê mal, pois, Exú pode fazer contra, Exú pode fazer a favor, Exú faz o que faz, é o que é.

— E se a gente acordar ele, ele nos mata?

— Bão.. — declara Maria, com a finura manhosa da sua raça — Matá, inté possa sê qui não. Só as veiz... Mas ele pode arresorvê judiá... Bota feitiço n'ôceis, qui nem cobra em passarim. Solta as galinha na horta, dirruba os abacate verde tudo no chão, derriça as flô das jabuticaba e ôceis num vai podê cumê ninhuma, quando o tempo delas chegá. E tem mais... — continua ela. — Ele pode disatá os vento, pru mode derriçá tamém as teia do teiado e aí a chuva vai moiá ôceis.

A preleção continuou algum tempo e mais ou menos no mesmo tom, sem que Marião fosse interrompida uma única vez, a não ser, quem sabe, por um repentino silêncio. Do outro canto do quintal, lá pelos lados da horta, quando da enumeração das possíveis travessuras de Exú, Salvelindo, o jardineiro, também ouvira a referência sobre “galinhas soltas na horta”. Sua enxó se imobilizou, mas foi só um instante. Logo o touque-touque voltou, no ritmo do costume. Naquele exato momento, porém, súbito pé-de-vento varreu o quintal, sacudiu as árvores e espalhou o monte de folhas que Salvelindo acabara de juntar. A moita das bananeiras rangeu naquele nhec-nhec peculiar, quando as canas, muito juntas, são espremidas umas contra as outras. As crianças gritaram de susto, e se agarraram às saias de Maria. Ela, todavia, calara a boca. Agora pensava, lá com seus botões, que Exú, com certeza, bem ouvira o discurso tendencioso que ela, consciência pesada, reconhecia não lhe fazer justiça. Pelo menos, não completa... Tentou, então, aplacá-lo e, levantando os braços, saudou:

— Larôye Exú!

O vento parou e Salvelindo, furioso, começou a juntar outra vez as folhas espalhadas.

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