Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  4

A COBRA VERDE

Ode, ókè àró!
Olówwó gìrì-gìrì lóòde, ó gìrì lódè.
Ó wà nígbó òrò ode òkè ó dára sáa ló gbéeron
Olowô guirí-guirí lôodê ô guirí-guirí lôodê
Ô uá nibô órô ódé ôkê ô dára xáa lô bérã.

(Cantiga de Oxóssi)


O velho Salvelindo andava muito pouco amigável, desde que Maria, por conta própria, fizera um arremedo de canteiro, perto do muro dos fundos. Sem consulta prévia, ela juntara um grande monte de terra misturada com estrume de vaca. Depois, cercara tudo aquilo, de qualquer jeito, com tijolos e calhaus.

— Tira já essa porqueira daqui! — urrou Salvelindo, completamente indignado, não sem alguma razão...

O canteiro de Mariâo contrastava horrivelmente com as perfeições retilíneas dele. Nos canteiros bem comportados do velho jardineiro se alinhavam, em rígida disciplina, fileiras de repolhos e alfaces, tomateiros, devidamente escorados, e pimenteiras, todas do mesmo tamanho. Havia ainda cenouras e verdíssimos agriões–do–seco, seu maior orgulho.

Maria, porém, continuou irredutível.

— Tiro, não... — retrucou ela, com calma. E esclareceu, com sua pachorra característica:

— Vô fazê um cantêro di erva, qui esta horta tá bem percisada...

Ofendido em demasia para conseguir falar, Salvelindo-Jardineiro apontou, dramaticamente, o canteiro onde vicejavam coentros, salsas e cebolinhas. Maria sequer olhou.

— Quero ervas de cheiro, seu môço, boas pra remédio e tempero. Crescem depressa e logo taparão tudo, pois a virtude delas tamém é crescê uma junto com a ôtra.

E Maria, perseverante, regou o monturo até encharcá-lo, para que o sol cozinhasse o estrume misturado a terra, que assim abrandado já não poderia queimar as mudinhas que pretendia transplantar.



Quinze dias mais tarde, entendendo que a terra adubada já descansara o suficiente, trouxe consigo dois grandes sacos de papel pardo, repletos de ervas. Plantou funcho, guiné, sálvia, melissa rasteira, da miúda; plantou touceiras de capim cidreira e capim cheiroso, alecrim, hortelã de folhinhas pequenas e hortelã pimenta, suculenta e refrescante. Não faltou nem o manjericão. Por fim, coroou tudo aquilo com capuchinhas, embora, tratasse de espalhar sementes de macela, pra todo lado, mesmo além do canteiro. Ao longo do muro, enterrou rizomas de gengibre, tomando o cuidado de deixar as gemas de fora.

Entretanto, ela trouxera ainda dois pés de arruda, já taludos. Estes, apesar da beleza delicada das suas folhas, donas do inequívoco poder de decifrar o verde, ao mesmo tempo em que desvelavam o mais recôndito mistério do azul, ainda assim exalavam um cheiro danado de acre. Por conta disso ou alguma outra razão, a qual, Maria não se deu ao trabalho de explicar, foram firmados no solo num ponto não muito distante do bananal.



Passadas poucas semanas, ocorreu o milagre: o monturo transmutara-se em sofisticada ondulação, recoberta por verdes dos mais variados tons e texturas, permeados pelas flores da capuchinha, cujo vermelho rutilante é seu oposto complementar, embora, naturalmente compartilhem de uma mesma natureza.

Bem, isso já seria alquimia teórica... Enfim, seja como for, tudo junto, talvez pela combinação mágica e delicada daquele buquê, teve o condão de transformar o quintal em um lugar bem diferente do que fora até então.

 

 

Poucos dias depois, a família, reunida à mesa do almoço, foi surpreendia por um berreiro vindo do quintal. A voz era de Marião, e por causa das muitas oitavas acima do tom habitual, mais lembrava os apitos de qualquer possante locomotiva.

— Acode gente! Socorro Madama! Ajuda Patrão!! Serepente me bicou!

Correram todos e deram com ela sentada na relva, contorcida no que parecia ser uma das difíceis posturas da hatha yoga. Coisa inacreditável em si mesma, em vista do seu tamanho: uma das pernas estava esticada frente ao corpo, enquanto a outra, segura pelas duas mãos, havia sido vergada até que o pé ficasse o mais próximo possível do nariz. Na verdade, dos olhos, pois Marião tentava avaliar os danos causados pela “serepente que a bicara”.

O patrão, nascido e criado em fazenda, acostumado a reconhecer rapidamente ferimentos infligidos por ofídios, curvou-se e examinou com atenção o pé mordido. Notou um círculo, quase regular, de pequeno diâmetro, formado por buraquinhos de formas diversas. Isso descartava praticamente todas as cobras venenosas da região, como jararacas, cascavéis ou, até mesmo, a temível urutu. Não fosse, porém, picada de coral, cujas presas venenosas são posteriores, e a boca, cheia de dentes, simula, em admirável astúcia da natureza, um ataque sem maiores conseqüências. Por isso, ainda preocupado, embora as corais fossem raras por ali, o patrão largou o pé da Maria e procurou pela culpada na relva. Viu-a em seguida, uma cobrinha verde que coleava, desesperada, para o mais longe possível do local do crime. Apanhou-a rapidamente pelo cangote, imobilizou-a entre dois dedos e com uma vareta forçou-lhe a abertura da mandíbula, para que Marião pudesse observar bem a boca agressora.

— Como será que esse bichinho veio parar aqui? — comentou ele, distraidamente — É pouco mais que um minhocão, mas gosta mesmo é de beira de rio...

Maria interrompeu a choradeira por alguns segundos, e seus olhos se alongaram, zangados, na direção da horta, onde o touque-touque da enxó de Salvelindo continuava, imperturbável.

— Tudo bem, Maria — consolou-a o patrão — nada muito sério. Dói um pouco, mas passa logo.

Entretanto, o chororô da outra só fazia aumentar. O ferimento, depois de bem lavado com sabão, foi pincelado com o anti-séptico, saído da caixinha de primeiros socorros da patroa. Veio água com açúcar e o comprimido de Novalgina. Nada. O choro não passava. De repente, a patroa que, de vez em quando, se dava conta de algo mais do que rezas, orquídeas ou pincéis, perguntou à queima roupa:

— Maria... Você andou bebendo?

O choro parou instantaneamente e a resposta veio quase em seu tom de voz habitual:

— Ah, Madama... Foi só um cupinho de licore...

Na verdade não havia sido só um copinho, não. Marião ultimamente dera de beber, bebia muito, e “licore” era seu eufemismo para cachaça da mais ordinária. Aquela mesma que, nos jogos de palavras cruzadas dos jornais, só tem três letras e se preenche os quadradinhos, até sem pensar, como “UCA”.

Não se notava, senão nessas horas, mas Maria andava muito triste.

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