Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  5

O INCIDENTE MATINAL

Ode, ókè àró!
Olówwó gìrì-gìrì lóòde, ó gìrì lódè.
Ó wà nígbó òrò ode òkè ó dára sáa ló gbéeron
Olowô guirí-guirí lôodê ô guirí-guirí lôodê
Ô uá nibô órô ódé ôkê ô dára xáa lô bérã.

(Cantiga de Oxóssi)

Maria andava mesmo muito triste. Um primo, com o qual dividira o barraco anos antes, mas que partira, enviado pela Mineradora para treinamento em outro estado, retornara, havia pouco, mas não sozinho. Trouxera mulher nova, cabocla miudinha, sestrosa, e cujo falar, arrastado, denunciava o Norte. A família movimentou-se, e a casa do novo par foi rapidamente erguida num mutirão alegre, do qual, Maria, apesar da sua tristeza, humildemente participou. 

À noite, porém, da solidão do seu barraco, ela olhava a nova casinha que tomava forma, e seu único consolo era a pinga. O primo estava mesmo apaixonado pela mulher, por isso, a casinha ganhara até uma pequena varanda, onde a amada poderia tomar a fresca no fim da tarde. Contudo, o que esfrangalhara de vez o coração de Maria, fora o belo tacho de cobre, presente do marido à jovem esposa, e que esta pendurara, com orgulho, na varanda da casa nova.

O babalaô, velho, mas ainda atento ao redil e, principalmente, àquela bisneta, chamou-a de parte. Jogou os búzios, encontrou o odu apropriado e esclareceu o caso. Ordenou então, que ela se abstivesse inteiramente de qualquer bebida alcoólica, embora a cachaça, boa ou ruim, fosse uma instituição entre eles. O bisavô prescreveu também um ebó complicado, o qual, deveria ser oferecido a Exú, sem demora.

— Sem demora, fia — o velho repetiu. — Exu leva e traz. Sem ele, ocê num há de falá com os orixás. E do jeito que as coisa tá, se eles falá com cê, ocê num vai intendê nada. — completou o babalorixá, desgostoso com tudo aquilo, e encerrando o assunto com severidade:

— Se ocê continuá assim, Oxóssi, sem demora, num há de querê mais esse cavalo.

Maria ouviu-o, respeitosa e humilde. Olhos no chão, cabeça baixa, e todos sinais de assentimento. Entretanto, permaneceu muda, pois que a voz, esta estava presa na garganta, trancada pelas lágrimas. Ouvir, ela bem que ouviu, mas não preparou o ebó, nem cumpriu a obrigação. Tampouco abandonou a pinga. Como fazê-lo, se a cachaça era seu único consolo, quando da solidão do barraco contemplava o tacho de cobre, pendurado na parede da outra, brilhando, mesmo à luz fraca dos poucos postes da vila, como um pequeno sol levante? Como haveria de preparar qualquer ebó a preceito, se estava tomada pelo feitiço infinitamente maior, do tacho?

Andavam as coisas neste pé, quando na casa onde Marião trabalhava estourou um bate boca na cozinha, bem no meio da manhã. Mas a briga não lhe dizia respeito. A discussão, aparentemente, era entre Sinhana, Stelita e as duas gêmeas, chamadas “Juca e Chico”, pela família, por conta das caras safadas de ambas.

Na verdade, “Juca e Chico”, eram os equivalentes em português dos nomes de dois meninos endiabrados, “Max und Moritz”, personagens de Wilhelm Busch, muito populares na infância dos patrões. Naturalmente, o comentário havia sido entre ambos, mas as crianças ouviram. Assim, não demorou muito para que tais apelidos substituíssem, e por completo, os nomes de batismo das gêmeas. Eram parecidíssimas aquelas duas e, como ninguém conseguia distinguir muito bem uma da outra, tanto “Juca quanto Chico” viraram nomes genéricos. Curiosamente, ambas respondiam a qualquer dos dois. Tanto fazia.

Entretanto, a altercação na cozinha continuava, e cada vez mais feroz. Sem outro remédio, a patroa, sentiu-se obrigada a ir até lá para intervir.

Predominava a voz irritada da Sinhana, mas se ouvia também os zumbidos ininteligíveis da Stelita. Juca e Chico, sentadinhas, lado a lado, num banco da cozinha, mantinham as cabeças abaixadas e unidas. Pareciam chorar, porém, quem quer que as conhecesse, saberia que soluçavam de tanto rir. E o riso delas deixava Sinhana cada vez mais exasperada, chegando sua fúria a tal ponto, que nem presença da patroa a apaziguou.

— Estou farta — gritava ela — farta de labutar nessa cozinha sem qualquer valimento, pois essa negrinha à-toa — aqui, Sinhana apontou Stelita — não presta nem pra jogar no lixo.

Stelita zumbiu de novo, mas Sinhana não lhe deu atenção e continuou:

— Como se tudo isso não bastasse, além da negrona bêbada e macumbeira solta no quintal, sou obrigada a agüentar essas duas cadelinhas a mexer nas minhas coisas e usar meus perfumes, comprados com tanto sacrifício. E até os brincos que minha finada mãe me deixou, acabei de arrancar agorinha mesmo das orelhas de uma dessas pestes. A de cá — apontou Sinhana — e a Madama pode ver que as orelhas dela ainda estão vermelhas.

— Está certo, Sinhana. Acalme-se, pois terei uma conversa com as garotas e isso não tornará a acontecer — contemporizou a patroa, ignorando o aparte sobre Stelita. A raiva da outra, porém, ainda era grande demais e esquecida da prudência, ela continuou:

— Ah... Mas a Madama não sabe da Missa a metade... É verdade que os meninos dessa casa são novinhos, doze e treze anos ainda é pouco, e essas duas diachas já passaram dos vinte. Mas que a Madama não se engane, pois cabeça de cacete não tem juízo, seja lá em que idade for, e porra rala também pode fazer filho!

Juca e Chico, abraçadas, agora choravam de verdade. A grosseria daquelas palavras, porém, ultrapassara qualquer expectativa ou limite. A patroa encarou Sinhana, por alguns instantes, com seus indiferentes olhos de gelo e a outra se calou.

— Faça suas malas, Sinhana — disse ela, e continuou — Enquanto isso, eu lhe escrevo uma carta de apresentação. Será útil.

Quinze minutos mais tarde, Sinhana cruzou os portões do jardim, carregando duas malas e o peso do seu justo ressentimento.

Contudo, ao incidente desagradável, seguiu-se um anticlímax, durante o qual, sem coragem de encarar a patroa, Juca e Chico escafederam-se rapidinho, uma agarrada à vassoura e outra ao espanador.

Na cozinha, restaram apenas a patroa e Stelita. A primeira tamborilava, distraída, unhas finamente manicuradas, o granito polido da grande mesa, onde eram preparadas as refeições. Stelita olhava para a madrinha, com seus olhos de sapo. Entre ambas, o impasse sobre como fazer o almoço...

Foi então que Marião surgiu do quintal, piscando um pouco para acostumar os olhos à penumbra na qual a cozinha lhe parecia mergulhada, em contraste com a luz lá de fora. Os pés enormes, que desde o episódio da cobrinha verde, andavam prudentemente metidos em alparcatas de lona, faziam-na parecer ainda maior e mais desajeitada.

— Sei cunzinhá — disse ela simplesmente — e se Madama quiser, começo o armoço agurinha mêmo.

E “Madama”, não quis outra coisa, pois era pragmática e adepta do “não tem tu vai tu mesmo”.

Marião fez o almoço daquele dia, e também o jantar. Sua comida era linda, alegre, cheirosa e saborosa. Ela atingira a perfeição na difícil arte de combinar e apresentar os vários pratos de uma refeição e o fazia com alquímica sutileza. Assim, quando a noite chegou, e ela, como sempre, percorria o caminho de volta ao barraco, desta vez ia feliz, pois fora promovida a cozinheira. Passaria a viver com os patrões, ocupando o quarto que dantes pertencera à Sinhana.

Tratou de arrumar seus teréns, mas estes eram reduzidos, e a tarefa não lhe tomou muito tempo. Infelizmente, ainda havia muita noite entre o novo dia e a sua Vida Nova. Para ajudar o tempo, tomou da garrafa de cachaça e bebeu uns goles. Seu olhar enfeitiçado pousou no tacho de cobre, e ela bebeu o resto da pinga. Adormeceu, mas acordou com a neblina fria da manhã a lhe entrar janela adentro. Então, deslizou até a varanda do primo, desprendeu silenciosamente o tacho fatal e o embrulhou, cuidadosa, no pano imaculado, até então usado para envolver a roupa lavada e passada das outras patroas. Ajustou a rodilha na cabeça e equilibrou, sobre ela, a trouxa com seus pertences. Abraçou o tacho, e enveredou, biboca acima, até o tabuleiro.

Eram cinco e meia da manhã e Antonio Felix, o motorista da casa, esperava por ela ali, com ar de poucos amigos. Sua má vontade era explícita, não só por ter sido obrigado a se levantar meia hora mais cedo, como por ser amasiado com a Sinhana e, embora Marião nada tivesse a ver com o desenlace da véspera, de alguma forma ele a culpava, quando nada por haver preenchido tão rapidamente o lugar da outra. A família morava a cinco quilômetros da cidade e por isso ele se fazia necessário, pelo menos naquele primeiro dia, de trouxas e teréns.

— Senta lá atrás com seus badulaques! — rosnou ele.

Marião obedeceu sem se importar. Estava contente demais com o novo emprego, o passeio matinal e o tacho.

E os dias foram passando, embora, com Marião por perto, eles jamais pudessem ser iguais. O tacho de cobre, que inicialmente fora pendurado em seu quarto, pouco a pouco perdia o feitiço e um belo dia, quando este se foi de vez, ela se vingou, suprimindo-lhe a identidade. Misturou-o aos outros tachos da cozinha, sem a menor consideração.

Mas se tacho perdera o poder sobre ela, a cachaça, não. Entretanto, nunca mais fora flagrada em estado de embriaguez. Verdade que seus uniformes sempre pareciam meio tortos, seus aventais pendiam desatados e a touca, ora de banda, ora enterrada até as orelhas. Entretanto, esses detalhes corriam por conta da sua falta de jeito consigo mesma. Contudo, o ebó recomendado, também não fora feito... Exu ainda esperava por sua oferenda.

 

Quando da sua promoção à cozinheira, a patroa a consultara sobre arranjar uma substituta para cuidar das roupas.

— Uma das suas primas, talvez?

Marião, porém, rira-se gostosamente:

— Carece não, Madama, gosto di ouví as água corrê. Mexê com água é bão. Cunzinhá tamém. Dô conta dos dois sem cansá.

Assim foi, e Marião acabou acumulando as duas funções, jamais descurou de nenhuma e ainda encontrava tempo para cuidar das suas ervas. Sentia-se feliz ali, ou, quem sabe, menos triste. A cachaça, naturalmente, continuava a ser consumida, mas como ela se mantinha firme sobre as pernas enormes, ninguém se dava conta. Não voltara mais à vila, no fundo da biboca. Tinha uma nova família agora, ou acreditava que sim. Os outros empregados mantiveram por ela a desconfiança e o antigo desprezo. Os bichos da casa, contudo, a adoravam. Idem o patrão e as crianças que, desde o princípio, lhe quiseram bem. Entretanto, Lina, a menina maior, tímida e arredia por natureza, esta gostava dela para valer. Marião, que retribuía generosamente qualquer tipo de afeto, fez da garota sua preferida, a cumulava de mimos e lhe contava histórias. Estranhas histórias sobre deuses, bichos e plantas.

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