Capítulo 6
ORIXÁS
Ode, ókè àró!
Olówwó gìrì-gìrì lóòde, ó gìrì lódè!
Ó wà nígbó òrò ode òkè ó dára sáa ló gbéeron
Olowô guirí-guirí lôodê ô guirí-guirí lôodê
Ô uá nibô órô ódé ôkê ô dára xáa lô bérã.
(Cantiga de Oxóssi)
Todos os dias, ao chegar do colégio, Lina atravessava correndo o jardim e entrava em casa como um pé de vento. Atirava a mochila com os livros em qualquer lugar e, se por acaso, cruzava com o gato, dizia-lhe miau numa careta, mas rumava ligeira para a cozinha em busca da Maria. A cozinheira, por sua vez, largava qualquer coisa que estivesse fazendo e lhe dava um abraço apertado, com seus braços de urso.
Entonces ela perguntava invariavelmente Cumé qui foi o dia da minha fiotinha?
E a garota despejava sobre ela uma fieira extensa do que chamava acontecências do dia. Maria ouvia aquilo tudo com absoluta atenção, sorrindo ou de cenho fechado, caso as tais acontencências não tivessem sido lá muito favoráveis à sua pupila.
Já no círculo familiar, a mocinha, tão tagarela com a cozinheira, a ponto de fazer dela fiel depositária dos seus pequenos segredos, não mostrava, nem de longe, a mesma desenvoltura. Dantes brincava com os irmãos, mas depois que estes, talvez por artes das empregadinhas gêmeas, se tornaram meio diferentes, ela já não achava qualquer graça em suas brincadeiras.
Quanto à irmã caçula... Bem, caçula continuava, e sem qualquer serventia para conversas ou brinquedos.
A mãe, esta era bem mais difícil. Entre elas, a balança das diferenças e afinidades pendia vertiginosamente para o primeiro lado, e as conversas entre ambas se resumiam quase que exclusivamente a preleções ou interrogatórios. Como as duas modalidades eram unilaterais, Lina fechava os ouvidos e sequer lhe ocorria abrir a boca.
O pai, não. Seu pai era diferente. Gostavam de perambular juntos pelo jardim ou através do bosque que rodeava a casa e, assim como Marião, a cozinheira, também ele lhe contava histórias estranhas sobre deuses, bichos e plantas. A diferença era que o pai de Lina não acreditava nos primeiros...
Tal diferença que, em princípio, pareceria apenas semântica era, contudo, bem mais sutil e profundamente radical. Maria que nada sabia sobre deuses, na verdade, conhecera-os desde sempre, e por seus nomes particulares. Verdade que se referia a eles, genericamente, como orixás. Mas isso era irrelevante. Tanto ela quanto seus Orixás compartiam de um mesmo mundo. Para ela, nenhum deles jamais estaria confinado a qualquer dos nove céus ou mundos do Orum. Ao contrário, andavam por toda parte, em carne e osso. Exatamente como seus muitos parentes na vila onde moravam, no fundo da biboca.
Isso já não acontecia com a garota que, um pouco como Exú, podia (sempre que lhe desse na telha), ir e vir de um mundo para outro, fossem os criados por ela mesma ou aqueles dos orixás da Maria. Entretanto, de acordo com o rapazinho mais velho, perspicaz, agudo e terrivelmente sarcástico, a irmã vivia mesmo era no mundo da lua...
Mas fosse lá o mundo da lua ou qualquer outro, é certo que, depois da chegada de Marião, as coisas naquela família foram se modificando aos poucos. Exu logo se apoderou do bananal. Só para tirar um cochilo, é verdade, pois Exu não tem casa e nem mora em lugar nenhum. Exu é um homeless... Mas é o senhor dos caminhos, das encruzilhadas, e de todos os pórticos. Aqui ou no Orum.
Depois dele, os outros orixás foram se chegando devagar. Calmamente se aboletaram, segundo suas próprias naturezas, no quintal, no jardim ou no bosque próximo. Afinal, pensando bem, essas coisas eram até bem naturais. A cidade inteira, por exemplo, por direito, já pertencia mesmo a Ogum, o orixá do ferro. De ferro era feita e do ferro vivia. Corpo e ossos de Ogum. Mas a Ogum sempre pertenceu também o ferro forjado ou em qualquer outra forma que assuma, pois é dele até mesmo o vermelho que colore o sangue.
Todavia, com os orixás ou apesar deles, certa tarde a garota chegou do colégio sem pensar em coisa alguma além do próprio ventre, que doía, desde cedo, e sem parar. Passou pelo gato, calada, correndo direta para a cozinha, em busca de Marião.
Ai, ai, Maria! Minha barriga está doendo muito!
A cozinheira olhou-a, preocupada:
Ocê tá nus dia, fiotinha?
Ante o assentimento da outra, a carranca preocupada de Marião, abriu-se num sorriso de orelha à orelha:
Isso nun é nada não, fiínha. É só dôzinha de muiê. Coisa à-toa... Passa logo. Vô fazê um chá, dus bão pr'ocê, agurinha mêmo. V'ambora!
Embora? Pra onde? quis saber a menina, e completou:
Não vou a lugar nenhum, nem arrastada. Espero pelo chá aqui mesmo.
Mas Maria insistiu
Ah, ocê vai sim! disse ela As folha de preceito pro chá num dão no quintá, só no bosque. E ocê percisa de ir junto pru mode aprendê onde encontrá elas, em caso de ôtra percisão. Possa sê que eu num teja aqui na hora...
Lina assustou-se:
Você vai embora, Maria?
Não, não tranqüilizou-a Marião Mas possa sê que eu teja muito ocupada quando ocê percisá... Anda, fiotinha! Levanta daí e v'am'bora!
Sem outro remédio, ou até por causa dele, a menina pulou da mesa da cozinha, onde estava encarrapitada, e no momento seguinte, as duas já haviam atravessado o jardim, a rua, a faixa de grama defronte, cheia de eucaliptos, árvores porqueira, como as qualificava Marião e se preparavam para entrar na penumbra do bosque.
O kê aró! cantou Maria, saudando Oxóssi, ao mesmo tempo em que lhe pedia permissão para entrar em seus domínios.
Okê aró! secundou Lina, achando aquilo engraçadíssimo, e até já meio esquecida da dor.
Ewê, Ewê ô!
A nova saudação, mais ou menos equivalente a se apresentar o passaporte na aduana, desta vez era para Ossaim, pois se a Oxóssi pertencem a mata e os bichos, não há uma só folha que não seja de Ossaim... As que curam e as que matam. Tanto faz.
Ewê, Ewê ô! cantou a garota, por sua vez, mas agora o delicioso aroma da mata, buquê de todas as suas folhas, envolveu a ambas, sinal seguro de que eram bem vindas. Junto vinha o cheiro fresco e bom da terra, carregando o leve travo do ferro, sangue de Ogum. As narinas sensíveis de Marião o perceberam e ela saudou uma terceira vez:
Ogun hê!
Ogunhê, Ogunhê, Ogunhê! repetiu a garota, desta vez por conta própria e agora, girando e girando, a dançar, tomada de alegria inexplicável, principalmente para alguém que, dez minutos antes, choramingava por conta de uma dor de barriga.
Epa hey oya! disse Marião, rindo com todos os dentes Agora chega!
A mocinha interrompeu o canto maluco e a dança selvagem, mas como aprendera de Maria e sabia de cor a saudação própria a qualquer dos orixás, perguntou surpresa:
Por quê você cantou para Iansan, Maria? O céu está limpo e não vai chover...
Humm-hummm respondeu Marião, se rindo ainda mais, como se a pergunta fosse dotada de graça irresistível Eu falei foi com a Iansan d'ocê... Epa hey!
E arrematou:
Donde é que a minha fiotinha acha que foi buscá essa brabeza toda, hein? Iansan é o orixá d'ocê... Mas num é só ela não, qui ocê inda tem um outro..
Dois orixás? Eu? E isso pode?
Bão... Podê, até pode, mas nunca divia di sê. E se pode ô num pode, isso num tem importança pruque as veiz acontece... Mas quando acontece, o vivente passa o resto da vida puxado dum lado pru ôto, qui nem elástico, pois eles disputa. Num tem orixá qui num goste d'uma boa disputa...E ocê havéra di dá muito trabaio pru véio Tuninho da Anta, o babalaô...
Que droga comentou ela E esse meu outro orixá, quem é?
Craro qui é Oxum riu-se Marião quem mais havéra de sê? Mais sossega, fiinha completou. Oxum ainda drume n'ocê, e vai drumi pur mais uns tempo. Um dia ela acorda, mas isso só vai acontecê, quando ocê cumeçá a corrê atrais dos rapaiz... Aí, cê vai sabê qui ela acordou...
Mas num preocupa não, fiinha tranqüilizou-a, Maria que Oxum sempre vai ajudá ocê, pru mode ocê num deixá iscapá rapaiz ninhum. Ocê chama e ela vem. E quando Oxum vem, Oxum resorve...
Sei não retrucou a garota num muxoxo de dúvida Acho que ela está dormindo demais, pois bem que eu já ando precisada dos préstimos dela...
Mais é? admirou-se Maria Pois si a fiotinha quisé, nois faz um ebó poderoso pra Oxum, amanhã mêmo.
Quero não, deixa lá... respondeu Lina, pensando que se os feitiços funcionassem, Marião, com certeza, não precisaria nocautear a dor de cotovelo por causa do primo, afogando-se em cachaça. Ou, muito menos, teria roubado o tacho... Pensou, mas não disse, pois sabia que o coração da outra havia sido partido e se os caquinhos agora pareciam mais ou menos colados, a cola era precária...
Enquanto falavam, caminhavam pela trilha estreita que dava na beira do riacho. Era um riachozinho de nada, mas a montante havia uma pequena cascata, que o animava e fazia com que se alargasse num pequeno remanso.
Na beira da água, olha daqui, busca dali e Maria logo encontrou a erva procurada. Era uma plantinha delicada, dessas que murcham rapidamente ao menor toque. Suas folhas, em cujo verde predominava a escuridão do negro, tinham formato de coração e bordos serrilhados, tão regulares como se tivessem sido feitos com a tesoura de picotar. A face superior das folhas, recobertas por suave penugem, pareciam úmidas, mas em compensação, o avesso era liso e tinha nervuras largas, cujo verde, bem claro, tendia quase para o branco.
Cantando baixinho, com certeza, algum antigo encantamento iorubá que a menina não entendeu, Maria colheu algumas folhas e, por fim, arrancou rapidamente do solo barrento, uma plantinha inteira com raiz e tudo. O olor da erva espalhou-se logo, agradável e fresco. Cheiro de coisa limpa.
Quando ocê vié colhê das erva, apanha só o que vai percisá pontificou ecologicamente Marião Eu só arranquei uma delas intirinha, pru mode podê usá tamém as raiz.
Fazia calor, o remanso parecia convidativo e elas sentaram-se ali, silenciosas, observando as águas quietas e quase especulares. Lina, que ainda vestia o uniforme do colégio, na altura já em lastimável estado de sujeira, livrou-se rapidamente das meias e sapatos, e mergulhou, prazerosa, as pernas na água. Maria fez o mesmo, porém, suas alpercatas de lona foram descalçadas cuidadosamente e ajeitadas lado a lado.
Oxum, Oxum, Oxum! chamou a rir, a endiabrada garota Acorda Oxum! Orá Yeyê ô!
Orá Yeyê ô! cantou por sua vez Maria, rindo também, mas da pressa da outra.
Oxum é o orixá das águas doces, lagos ou rios. Deusa do Amor e da fecundidade, espécie de Afrodite africana. São dela também as cachoeiras e mesmo as pequenas quedas d'água. Mas não as fontes, ou os olhos d'água, pois que estes pertencem a Ewa e só a ela... As duas deusas, contudo, devem ser aparentadas. Primas talvez, pois Ewa é a pura alegria das eternas transformações. É ela quem muda a água em vapor ou gelo e faz as flores desabrocharem. Ewa forma as nuvens no céu e faz e desfaz seus desenhos como bem entende.
Os pés da menina logo encontraram o lodo macio, que atapetava o fundo do remanso, e ela revirou-o com gosto, turvando a água.
Já chega! ralhou Maria Ocê agora tá perturbando Nanã e isso pode num sê bão. Com aqueles já muito véio, véio pur dimais, a gente nunca sabe...
E Maria recontou a história de Nanã, tantas vezes já ouvida por Lina, e a menina a ouviu de novo, com o fascínio de uma primeira vez.
Ocê, sabe começou Maria Nanã Burucu é memo muito antiga. Dizem que já estava aqui, quando Olorum, pai de todos os orixás, mandou Oxalá moldá os home. Oxalá obedeceu e foi experimentando vários materiá: Premero tentou fazer os home de ar, como ele mesmo, mas não deu certo e eles logo se disvaneceu. Experimentou fazer de pau, mas as criatura ficou dura dimais. Tentou a pedra, mas foi pior. Usou o fogo, mas o fogo comeu sua obra. Têmoso, ele continuou a exprimentá de tudo: usou água, azeite e até vinho-de-palma. Nada. Então Nanã veio em seu socorro, e apontou a lama do fundo do lago. Oxalá, intão, viu que da lama podia facilmente moldá os humano. Do corpo de Nanã. Nanã que é a lama lodosa do fundo de todas as água doce da Terra. concluiu ela, e as duas ficaram em silêncio, refletindo sobre tal milagre. Mas não por muito tempo...
V'am'bora decidiu Maria, e Lina levantou-se, obediente mas trata di carçá as meia e os sapato acrescentou ela, com severidade qui é pras serepente num ti bicá os pé no caminho de vorta.
Ah, Maria... Precisa não. Minhas pernas estão molhadas e esses sapatos são pesados e chatos de amarrar. Pode deixar que eu vou olhando pro chão com o maior com cuidado.
Dá cá respondeu Maria enquanto lhe enxugava os pés com o avental e, num estímulo ainda maior à preguiça da garota, calçoulhe as meias e os sapatos, sem se esquecer de amarrar os atilhos.
De volta à cozinha, sem maiores incidentes, Maria lavou as folhas e a raiz cuidadosamente em água corrente e depois as deixou em infusão, dentro de uma tigelinha de louça branca, com tampa.
E a barriga, fiota, ainda dói?
Não... admirou-se a menina Passou de vez... Nem preciso mais do chá...
Ah, percisa respondeu Marião veemente percisa sim, mas agora, trata de ir pro banho, antes que a mãe d'ocê bata c'os óio nesse uniforme lastimávi e piscou para ela, pois as últimas palavras haviam sido sutil arremedo da patroa...
Agora vô terminá a janta, mas depois ocê vorta aqui e nóis termina o chá. Até lá, as folha já discansou, mais ocê só vai bebê dele quando fô subi pra drumi.
Depois do jantar e já metida em seus pijamas, Lina voltou à cozinha. Maria tomou da tigela de louça, destampou-a e logo se espalhou por toda parte o mesmo e delicioso cheiro que sentira à beira do riacho. Espiou as folhas no fundo do pote e percebeu que estavam novamente túrgidas, como se jamais houvessem sido colhidas. A cozinheira então, tomou de uma pequena chaleira de cobre e passou para esta toda a água que cobria as folhas. Acendeu o fogo, explicando que este só deveria permanecer aceso até o exato instante da fervura da água. Daí em diante deveria ser apagado, senão a água passava. Enquanto se ocupava disso, explicava à pupila que cada folha tem o seu axé, sua virtude, sua força emanada, mas a cada qual corresponde também o seu ofó, o encantamento que lhe é próprio. E por isso, enquanto a água se aproximava do ponto de ebulição, ela cantava suavemente ao mesmo tempo em que ia picando raiz e folhas com as mãos. Quando a água ferveu, ela apagou o fogo e gentilmente jogou as folhas dentro da chaleira, tendo o cuidado de lhe tapar o bico com o abafador.
Tagarelaram alegremente nos próximos dez minutos, até que Maria deu o chá por pronto, adoçou-o com açúcar mascavo e o serviu. Era tão gostoso quanto o cheiro fazia prever e a menina tomou-o quase que de uma vez só e pediu mais. Maria, contudo, riu-se gostosamente:
Não sinhora! Ocê já teve mais que o bastante prum dia... Agora, trata de subi pra drumi. Xô!
E tangeu-a escada acima como quem toca um frango rebelde.
Já entre os lençóis, Lina se sentia cada vez melhor. Teve a impressão de flutuar e, de repente, lhe veio a deliciosa sensação de que as paredes do quarto se dissolviam, e ela pairava, incorpórea, sobre o jardim. Não tinha muita certeza se estava acordada ou dormia. Entretanto, a última coisa que se lembrava de ter ouvido, numa estranha voz, que parecia mais com o som do vento, mas que talvez fosse a voz de Ossaim, foi: Euê uassá! As folhas funcionam!