Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  7

A PROCISSÃO

“Por que ruas tão largas?
Por que ruas tão retas?
Meu passo torto
foi regulado pelos becos tortos
de onde venho" (...)

(Carlos D. de Andrade, Boitempo, 1968.)

O pároco da velha Matriz do Rosário era, e tinha sido sempre, absolutamente inconfundível. Foi com certeza uma criatura ímpar num mundo de símiles e a mera possibilidade de que alguém, algum dia, fosse capaz de lhe pedir a carteira de identidade, soaria não só como injustiça, mas também como insulto. Ainda assim, por uma dessas curiosas coincidências, tão típicas das cidades do interior, ele possuía um homônimo ali mesmo. E um homônimo, que, por mal dos pecados, exercia o mesmo mister, pois era pároco da Matriz da Saúde, a outra paróquia da cidade. Ambos chamavam-se “José Lopes”. O primeiro era grandalhão e o outro, pequenino, por isso, o povo (que sempre tem soluções justas e geniais para qualquer tipo de impasse), passou a chamá-los “Zé Lopão” e “Zé Lopinho” ou, simplesmente, “Lopão” e “Lopinho”. Contudo, como a procissão específica, prometida no título, saiu da Matriz do Rosário, o Padre José Lopes, da Igreja da Saúde, deixa esta historieta por aqui.

II

Padre Zé Lopão era mulato puxado, quase preto e sua carapinha, já inteiramente branca, oferecia interessante contraste com a pele escura e lisa do rosto. Minha avó costumava dizer que “preto quando pinta, cento e trinta”, mas ele não era nem de longe tão velho. Teria no máximo uns sessenta anos. Aliás, vigorosos sessenta anos. Seu vozeirão fortemente anasalado alcançava, sem esforço, não só o último limite do adro da Matriz, como até mesmo as casas que lhe ficavam próximas. Antiquado e conservador quanto aos costumes, cioso e tão zeloso do seu rebanho quanto deve ser um bom pastor, era, não obstante, um bocado explosivo. Zangado, Zé Lopão tinha o hábito, um tanto embaraçoso, de berrar a primeira coisa que lhe ocorria, estivesse onde estivesse e, possivelmente, este foi seu único defeito. No mais, ninguém lhe fazia qualquer reparo. Dono de um coração bondoso e inata generosidade, rápido em perdoar e, mais rápido ainda, em pedir perdão.Virtude rara...

Seu riso grosso e ampliado pela formidável caixa torácica, quando vinha, espontâneo como o das crianças, tomava-lhe o corpo inteiro e até suas mãos, num balanço peculiar, riam com ele. Leal sempre, amigo dos seus amigos, até a morte, tinha a casa sempre aberta e a mesa farta. Sem dúvida alguma, era adorado pelos paroquianos. Ainda que, lá uma vez ou outra, se comportasse com eles como um sargento diante da tropa. Assim mesmo, raramente alguém se ofendia de verdade. E se tal acontecesse, jamais o seria por muito tempo. 

III 

Naquele ano, o dia de Corpus Christi amanheceu glorioso e a cidade, alvoroçada. É claro que haveria procissão, e a vez era da Matriz do Rosário. Apesar da antiga rivalidade entre as duas paróquias, no que dizia respeito aos grandes eventos, sempre se manteve o costume do revezamento. Afinal, o tão consagrado “dividir para reinar” nem sempre é a melhor opção. Principalmente quando há pouca gente para muita festa... E todos colaboram. Nas sacadas de ferro batido dos casarões, ao longo percurso, serão estendidas toalhas rendadas e pesadas colchas em brocado de seda. Cada qual ofertará o que tiver de melhor. E ao trajeto do cortejo, determinado mais de cem anos antes, por conta da tradição da “tapeçaria”, não se mudava uma única vírgula. No dia da festa, a população se levantava antes do sol e saía às ruas para cuidar do tapete de flores por onde seria conduzido o Santíssimo. Na verdade, além das flores, usava-se serragem, borra de café, casca de ovo, areia (natural e banhada em anilina) e, é claro, todas as flores que se pudesse conseguir. Despetalar as flores, aliás, era tarefa das crianças. Pétalas de um lado, folhas do outro. Nada era desperdiçado. Não fosse faltar o verde...

A cada cem metros, duas ou três “tapeceiras-mestras” determinavam a trama do tapete, ao mesmo tempo em que orientavam, cuidadosamente, aos demais voluntários quanto ao uso de qual material e onde. Assim, cada centímetro da rua, entre um meio fio e outro, era coberto aos poucos por um desenho multicolorido ao qual, não faltava nem mesmo uma certa sofisticação. O trabalho inteiro levava cerca de quatro ou cinco horas e o tempo era curto, pois a procissão começava, pontualmente, às onze. Então, uma vez colocada a última casquinha de ovo, havia uma debandada geral no rumo de casa. Afinal todo mundo queria se apresentar de banho tomado, cheiroso e bonito na hora da festa.

 

IV

Lá pelas dez e meia, o povo começou a chegar. Muitos vinham dos arraiais próximos e, em geral, percorriam a distância a pé. Eram famílias inteiras e nem os bebezinhos escapavam. Mas havia quem chegasse a cavalo ou, em caso de muita modernidade, de bicicleta. Estes eram os grupos familiares mais curiosos, pois, fosse cavalo ou bicicleta, o marido vinha montado, trazendo um filho ou dois, na garupa, enquanto a mulher marchava atrás, comendo poeira e levando ao colo a criancinha mais nova. Se houvesse crianças mais taludas, grandes demais para a garupa do pai, estas ladeavam a mãe, não raro, carregando irmãos intermediários. Gente a pingar daqui e dali, logo ficavam cheios Igreja e adro. Do lado de fora, as pessoas se acotovelavam nas laterais do tapete floral, cheias de cuidado para não pisá-lo antes da hora, que esse privilégio era do padre, condutor do Santíssimo. De um lado já se posicionara a banda de Sô Niquinho da Rosa, magnífica em azul marinho e dourado. Os músicos, olhos postos em Sô Niquinho e conscientes da sua grande responsabilidade, envergavam orgulhosamente seus fardões, passados a ferro com esmero, cujos botões de latão haviam sido polidos, um a um, no capricho. Verdade que a casimira azul conhecera melhores dias, e mesmo o dourado dos alamares já perdera o brilho. Mas o que importava isso, se o sol, generosamente, se multiplicava no metal incorrupto dos instrumentos e transmutava os botões de latão em centenas de outros pequenos sois? E a tuba? Deus meu! Quanto esplendor!

Em grupos compactos vão chegando as Irmandades. Primeiro, os Irmãos do Santíssimo Sacramento, circunspectos, trazendo suas vistosas opas vermelhas sobre os ternos pretos. O povaréu abre caminho com respeito, pois todos sabem que eles hoje formarão a escolta do Santíssimo. Espreme daqui e dali, finalmente conseguem posicionar-se ao lado da banda.

Porém, a Irmandade das Zeladoras do Sagrado Coração de Jesus, formada exclusivamente pelas senhoras casadas, já não tem a mesma sorte. Mesmo portando seus véus negros e trazendo ao pescoço magníficas fitas de gorgorão vermelho, as matronas não logram conseguir qualquer lugar especial. Enfim, depois de muito empurra-empurra, ajeitam-se rente ao muro do adro, do lado oposto à banda. Aproveitando o embalo, juntam-se a elas as Filhas de Maria. Estas vestem fustão, a cujo branco imaculado se sobrepõem fitas azul celeste. A condição essencial para se pertencer a esta confraria é a virgindade. Pelo menos nominal... Contudo, há poucas mocinhas entre elas, pois faz tempo que a Irmandade transformou-se em reduto de solteironas, donzelas velhas que não encontraram marido, mas cujos cabaços estão bem guardadinhos para a Terra os comer.

Alguns assobios entre a turba. Gentalha irreverente! O calor aumenta e o fartum de suor, misturado aos perfumes baratos, começa a ficar insuportável, mesmo a céu aberto. Onze horas. Já não era sem tempo! 

V

 Os sinos da Matriz começam a badalar festivamente e a figura imponente do Padre Zé Lopão surge das profundezas da igreja. Pressurosamente, quatro dos irmãos do Santíssimo erguem as hastes do pálio e o posicionam sobre ele. Nesse momento, Lopão já não é apenas o vigário bonachão, mas sim, o Grande Sacerdote do Altíssimo. É assim que ele se sente, não por orgulho, mas pela firmeza da sua fé. Vem ricamente paramentado como exige a solenidade da ocasião. Traz casula e estola em brocado dourado, franjadas a ouro. O véu umeral, em finíssima e preciosa seda, também dourada, atravessa-lhe os ombros até lhe cobrir as mãos, que sustentam o pesado ostensório de vermeil, cuja luneta central é de ouro maciço, fechada por cristal bisotado. Diante dele, ombreiam-se os dois coroinhas, meninotes de pouco mais de oito anos, felizes em suas túnicas brancas, barradas de renda. Verdade que um tanto atrapalhados pelo peso da responsabilidade a somar-se ao do turíbulo e da campainha. Faz-se silêncio. Os garotos agitam seus respectivos instrumentos. O aroma do incenso expulsa pouco a pouco o fartum, mas o som da campainha lembra ao povo que está diante de Deus e cada qual se ajoelha como pode. O Padre levanta o ostensório, apresentando-o ao centro, à esquerda e à direita. Com a cabeça baixa e os olhos no chão, o povo permanece de joelhos. “Sancto, Sancto, Sancto”, brada Zé Lopão. A multidão o secunda com as hosanas, e a um sinal de Sô Niquinho da Rosa, a banda começa a tocar o “Louvado”.

Chico Alvarenga, o sacristão, todo nos trinques com suas luvas brancas de algodão, ergue a cruz processional e se adianta. Os Irmãos do Santíssimo, ensaiadíssimos, postam-se dos dois lados do pálio em grupos de três. O restante da confraria forma-se atrás do padre em massa compacta. Os músicos de Sô Niquinho virão a seguir. O povo se levanta e começa a procissão. O cortejo atravessa o adro e vira à direita para começar a subir a ladeira do Bongo,
enquanto o tapete floral vai sendo pisoteado, agora com todo o direito. 

VI 

De ladeira em ladeira, sob o sol a pino, vai coleando a procissão. Falta pouco para chegar à Saúde, que deverá ser contornada. Começará então, o caminho de volta, mas agora será só descer, graças a Deus, que pra baixo todo santo ajuda. O cortejo aproxima-se de uma casa modesta, jardinzinho estreito, cercado por muretinha baixa. Sentada sobre o muro, lá está ela. Ela mesma, a Niceneide. E é bonita, a danada. Mulata sarará, olhos verdes, corpo feito de curvas. Retas, muito poucas. Só as estritamente necessárias. O vestido exíguo cobre o mínimo possível das tetas empinadas, enquanto generosamente lhe descobre as coxas rijas. Faz pose de artista de cinema e sorri. Um perigo para qualquer alma...

Lopão estaca com ostensório e tudo, e a banda emudece. Aos trancos, a procissão inteira vai parando também. Bom... Quase inteira, pois o Chico Alvarenga, olhos postos na bela, não se deu conta da brecada e seguiu em frente, por sobre o tapete floral. Endireitou a haste da cruz, que agora vai ereta e firme, bem acima da sua própria cabeça.

— Chico Alvarenga! — urra Zé Lopão. — Onde é que ocê vai com essa MEEERRRDA?

A voz anasalada do padre alongou ao máximo o "e" da palavra feia, juntando-lhe ainda uma fileira rascante de "rr". Tudo isso junto reverberou no silêncio, mas a qualificação inusitada da Santa Cruz, esta, paralisou de vez a congregação. Atarantado, o sacristão virou-se para trás e deu com toda a companhia a olhar para ele:

— Estou seguindo o tapete, seu padre, balbuciou o coitado.

— Que tapete que nada, seu sacristão do Inferno — emendou Lopão, — ocê vai seguir é pra onde eu mandar! Pro outro lado, já!

Aos tropeções, a cruz agora de banda, Chico Alvarenga abandonou o tapete de flores e o caminho do Paraíso. Lopão, porém, ainda temia pelo rebanho:

— Irmãos do Santíssimo! — bradou. — Virem a cara! — e continuou —Toca, Sô Niquinho!

A banda, meio engasgada, atacou de novo o "Louvado", a procissão, indecisa, dobrou à esquerda, mas a solenidade deixara de existir. Os cochichos corriam de baixo para cima e de cima para baixo. Várias das Filhas de Maria e mesmo algumas Zeladoras do Sagrado Coração tentavam, sem grande sucesso, esconder a boca com o véu. Apesar dos olhares ameaçadores das madres e dos severos "psius" ouvidos ali e acolá, as meninas do colégio das freiras (entre elas, Lina, garantida pela saudável distância que a separava da mãe, na ala das Zeladoras), os garotos do ginásio e a plebe ignara explodiam abertamente em gargalhadas.

 

VII 

Niceneide, a Bela, observou toda aquela confusão sem se abalar. Estava mais que acostumada a provocar alvoroço e gostava disso. Com um gracioso muxoxo, desceu lépida do muro e caminhou, vagarosamente, em direção à varanda, balançando as ancas.

Pouco depois, Lina ouviu contar, que se metera numa alhada com um dos namorados e o pai a expulsara de casa. A Bela, porém, não se apertou. Mudou-se de mala e cuia para a Casa da Zezé, na Ponte Velha, e se deu muito bem. Chegou até a formar um bom pé de meia. Mais tarde, alguém lhe disse que ela se casara com um fazendeiro rico, cliente do lugar, e agora era madame, em Santa Bárbara.

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