Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  8


CRIANÇAS E CRIADAS

"Os escravos de Jó...
Jogavam cachangá...
Tira, põe..
Deixa o zanguelê.. ficar...
Guerreiros com guerreiros
Fazem zigue-zigue-zá!”

(Tradição popular)

Quanto a isso não havia qualquer dúvida. Antes da chegada de Maria, o núcleo duro e católico romano daquele lar, além de firme, fora, até então, incontestável. Formado exclusivamente pela patroa e Stelita, sua acólita cor de jabuticaba madura, obviamente, era constituído por uma minoria. Contudo, sendo tal minoria representativa e atuante — um verdadeiro bastião —, a Santa Sé reinava soberana e permeava a casa inteira, teto comum, mas também o jardim, o quintal e o bosque. Entretanto, depois de Maria, a Ecclesia começara a perder terreno. Sutilmente, é verdade... Mas perdia. Havia algo de diferente no ar, e isso a patroa quase podia farejar. Ela costumava ser bastante perspicaz, mas, ainda assim, não entendia bem do que se tratava. Não passava de uma vaga sensação. Leve, bem leve. Todavia, a patroa não era mulher de desprezar intuições. Principalmente, as suas.

O patrão, que por amor da mulher, lhe oferecia divertido, embora peculiar, suporte, conseguira, lá do seu jeito, manter-se mais ou menos neutro, diante daquela batalha sem fronteiras. Afinal, era fato conhecido, e ninguém o ignorava, sua condição irremediável de ateu. Razão que não o impedia de acompanhá-la à Igreja, com paciência e boa vontade... Ou receber, sempre com autêntico cavalheirismo, qualquer prelado que ela houvesse por bem convidar. E a casa vivia cheia deles, principalmente nos almoços de domingo. Ainda assim, a patroa não se deixava enganar. Aliás, entendia bastante bem, que as convicções nada cristãs do marido eram tão firmemente arraigadas, que ele não sentia a menor necessidade de lutar por elas. Longe de contestar crenças alheias, ele se divertia consigo próprio, e achava uma infinita graça em tudo aquilo.

Infelizmente, apesar dos seus esforços, ela não conseguia resultados muito melhores com os filhos:

Beatriz, a caçula, era muito pequena para qualquer manifestação, contra ou a favor. Pouco passava de um bebê.

— Menos mal... — matutava ela, com seus botões. — Chorona e birrenta, mas... isso passa...

Já a filha mais velha... — e as sobrancelhas da mãe se juntaram, num misto de exasperação e divertimento — Lina nunca deixou de ser como um espinho na carne — recordou ela, já com o divertimento cedendo lugar ao franco desagrado. — Selvagem como um gato do mato, ao menor estímulo arma o bote, pelo eriçado e unhas de fora. Ronrom e patinhas de veludo, esses ela guarda para o pai e nenhum outro. Por mal dos pecados, dera de preferir a companhia da preta cozinheira à da própria mãe. Um horror. — Mas sorriu de leve, ante a lembrança da menina, pois assim são as mães.

— Com Lina, me entendo eu, mais tarde. — pensou, suspirando.

Suspirando sim, mas não o infalível “onde foi que eu errei”. A mãe de Lina era infalível e não errava nunca.

— Incômoda — resumiu ela — É isso que ela é. Mas não um problema sério. Necessariamente, não. Ou, pelo menos, não agora.

E seus pensamentos deixaram a filha de lado, concentrando-se nos dois rapazinhos; estes sim, ultimamente, andavam lhe tirando toda a inspiração para pintar. Alegrias? Nem pensar... Fossem grandes ou pequenas. Preocupações, sim... Muitas e o tempo todo.

— Adolescências barulhentas e insuportáveis — continuou ela com franqueza, embora de si para si. — O ideal seria manter boa e segura distancia deles... Pelo menos até a crise passar. — Bem... — raciocinou em seguida, não de todo sem fundamento — Isso não seria nada prudente. Só me resta mesmo a misericórdia de Deus. Tão cedo não haverá qualquer juízo naquelas cabeças de pau...

Neste ponto, porém, suas verdadeiras preocupações, os filhos adolescentes, afloraram de vez, e ela reconheceu:

— Sabe-se lá o que o que aqueles dois irresponsáveis andaram fazendo...

Agora sua preocupação era genuína, pois sabia somar muito bem e percebia, sem maiores ilusões que, o somatório potencialmente explosivo representado pelos dois filhos, as gêmeas, e a fúria profética da Sinhana, não eram algo que se pudesse deixar por isso mesmo. Seus pensamentos, contudo, ainda desobedientes, andavam para diante e para trás:

— Foram apenas insinuações maldosas. Criatura malévola!

Referia-se às insultuosas insinuações (insinuações?) da Sinhana, a antiga cozinheira, aliás, imediatamente despedida logo após o desagradável embate matinal, ocorrido dias antes. Ainda assim, procurava se tranqüilizar, reforçando seu outro raciocínio, o de mãe amantíssima:

— Maldade pura! Eles não passam de crianças... Que absurdo!

Entretanto, mesmo sob a lealdade maternal, a dúvida a aguilhoava:

— Mas... seriam mesmo? E se não fosse bem assim?

E a patroa, ainda que relutante, suspeitou seriamente de “Juca” e “Chico”, as duas mulatinhas gêmeas, também empregadas da casa.

Na verdade, a Sinhana havia sido sumariamente dispensada, muito mais pela audácia de levantar tal lebre em público, do que por qualquer outra razão.

— Se ao menos aquela criatura tivesse me procurado em particular... — E sua indignação contra a ausente Sinhana subiu vários pontos:

— Mas ela não o fez! E, se realmente, sabia de alguma coisa, nunca pretendeu me alertar. Falou por pura raiva e usou de um palavreado chulo. — E sossegou sua consciência, pelo menos em relação à Sinhana, reforçando o veredicto fatal, ainda de si para si:

— Não merecia outra coisa! Rua e rua!

Ainda assim, quanto mais pensava no assunto, mais convicta se tornava de que a Sinhana, possivelmente, sabia muito mais do que deixara escapar:

— Mesmo que a Sinhana não passe de uma ordinária, indigna de qualquer complacência, “Juca” e “Chico”, por outro lado, são completamente sonsas. Basta se olhar para as caras delas!

— Quantos aos meninos — e, neste ponto, sua raiva chegou ao auge. — Basta olhar para as caras deles, também! Cambada!

Assim, na cabeça da patroa, de repente, não restou mais qualquer dúvida de que as gêmeas muito teriam a ver com o brilho daquelas duas virilidades precoces. Por isso, rapidamente, tratara de despachar ambas para a casa do pai delas, o Zé Abrão, colono de uma fazenda, em Santa Bárbara.

Para seu espanto, porém, as duas sonsas retornaram, serelepes, duas semanas mais tarde. Vieram acompanhadas pelo pai e... surpresa das surpresas, pelos respectivos noivos. Sabe Deus de que jeito, “Juca” e “Chico” haviam noivado, durante aqueles curtos dias, na sitioca do velho. Aliás, era esta a razão da presença inusitada do Zé Abrão, mineiro às direitas:

— Vim apresentar os noivos das minhas fias pra voçuncês — dissera o Zé Abrão, com toda cerimônia, se dirigindo aos patrões das mocinhas. E continuara:

— Quero dá ciência a voçuncês que, eles têm minha permissão para visitar as meninas, duas vezes por mês.

A patroa, cujo pragmatismo, malgrado seu, andava sempre, pelo menos, uma dúzia de passos diante dela, recebeu-os, contentíssima, pensando com seus mui católicos botões que, pela infinita misericórdia de Deus, os buchos das meninas, daquela data em diante, seriam estrita responsabilidade dos seus noivos. Na altura, os testes de DNA não pertenciam nem mesmo às obras de ficção.

Assim, os garotos adolescentes continuaram a adolescer gloriosamente, enquanto Juca e Chico se tornavam cada vez mais sonsas e safadas, embora isso não as impedisse de cuidar do bem estar dos dois rapazotes, com tato e discernimento. Principalmente agora, livres do olho malévolo da Sinhana.

Depois de contornada esta pequena dificuldade, a patroa, contudo, ainda não sossegara de vez. Pensava em Maria...

— Ah.... — iluminou-se ela, num fulgor de percepção. — “Fazer”, ela realmente não faz nada... Mas tem atuado como alguma espécie de potente agente catalisador. — concluiu, orgulhosa da própria sagacidade.

— As crianças eram mais cordatas, antes dela. Muito mais... — complementou, felicíssima por encontrar um bode expiatório para a tumultuada adolescência dos filhos.

— Não importa. Porei um paradeiro nisso. Nesta vida, — filosofou — só não há não há jeito para a morte...

E foi cuidar das suas orquídeas, posta em sossego, sem esperar sequer pelos préstimos da Stelita.

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