Historieta vagamente alquímica - Maria Inês Drummond Fortes

Capítulo  9

A CATEQUESE

Ode, ókè àró!
Olówwó gìrì-gìrì lóòde, ó gìrì lódè
Ó wà nígbó òrò ode òkè ó dára sáa ló gbéeron
Olowô guirí-guirí lôodê ô guirí-guirí lôodê
Ô uá nibô órô ódé ôkê ô dára xáa lô bérã.
(Cantiga de Oxóssi)

Um belo dia, a patroa achou que já eram horas de recuperar o espaço perdido, insidiosamente, para os orixás de Maria. E para ela própria, é claro... Depois de pensar um pouco, decidira que, com a possível conversão da cozinheira, literalmente mataria dois gatos com uma só cajadada. E se um dos gatos fosse a filha, paciência... Seria tudo por uma boa causa.

Foi assim, que numa quinta feira, a primeira de Dezembro, logo depois do almoço, madame enviou seu diácono-jabuticaba em busca de Marião. Esta, vagamente apreensiva, seguiu Stelita escada acima, até o pequeno estúdio onde a patroa ocupava-se de suas telas e pinceis.

— Licença, — apresentou-se Maria, envergonhada, a olhar as alparcatas de lona — a Madama mandou chamar?

— Ah sim, Maria — respondeu esta, casualmente — Estive pensando... Faz muito tempo que você não vai á Igreja, não é?

Stelita acompanhava a conversa e seus olhos fulguraram de prazer, pois se não tinha a menor idéia de onde a patroa queria chegar, antecipava o pior.

Consciente da malícia que brilhava no olhar da outra, Marião, temendo pelo emprego, assustou-se e tentou sair pela tangente:

— Deve di fazê, Madama, eu num alembro...

— Não faz mal, Maria. Poderemos começar a remediar isso hoje sem falta. — explicou a patroa, com doçura na voz. — Amanhã é Primeira-Sexta-Feira, e é nosso costume ir à Missa e comungar — continuou ela, suavemente.— Como você já deve ter percebido, fazemos isso todos os meses. Não é obrigatório, como a Missa aos Domingos, mas trata-se de uma bela devoção. — E acrescentou, irresistível:

— Você não gostaria de participar?

— Ah, deveras, Madama? E o que eu devo di fazê?

—Quase nada — sorriu a patroa, o seu sorriso mais gentil, enquanto completava:

— Daqui a pouco iremos à Matriz, pois na véspera da Primeira Sexta-Feira, o padre Zé Lopão, quero dizer, Padre José Lopes, começa a ouvir confissões às três e meia. Amanh㠗 continuou, quase sem pausa — iremos todos à Missa das sete e comungaremos.

O rosto de Maria brilhou de contentamento, e a patroa tornou a sorrir para ela, enquanto lhe dizia:

— E depois disso, Maria, espero que você nunca mais deixe de ir à Missa aos Domingos. 

Stelita, que não entendera o “espírito da coisa”, e pensara em algum tipo de punição, agora achava que a patroa, sem qualquer critério, acabara de premiar a negra macumbeira. Uma injustiça! Jururu, ela agora parecia mais murcha que jabuticaba chupada. Marião, no entanto, sorria, aliviada e feliz.

— Tá certo, Madama. Vou terminá as louça do armoço e fico pronta num instantinho. Licença.

E despencou escada abaixo, contente como pinto no lixo. Encontrou Lina, no patamar, e esta lhe perguntou, desconfiada:

— Que diabos mamãe queria com você?

— Nada di mais não... Ela só convidou eu pru mode ir na Igreja mais ela.

— Ah... Mas mamãe sabe perfeitamente que a sua religião não tem nada a ver com a dela. Ouça bem, Maria... Se não quiser ir, ninguém no mundo pode obrigar você. Nem mamãe.

— Mais eu quero ir, sim, fiotinha! Assim fico fazendo parte da famia.

— Está certo, Maria... Mamãe não dá mesmo ponto sem nó...

Mas o último comentário, não fora dito em voz alta. Percebera que Marião estava esfuziante de alegria e se calara depois do “Está certo”. Assim, apenas repetiu:

— Está certo. Se você quer, você vai... E se você vai, vou também. Mamãe ficará contentíssima... — acrescentou, com uma careta. Depois perguntou:

— Por onde andam Juca e Chico?

— Saíro as duas. Essa tarde é forga delas.

— E dos meninos? Você sabe?

— Esses pirulitaram cedo. Dissero que ia acampá.

— Hummm... Isso é pra lá de bom. Significa que a inconha da Stelita terá que ficar para tomar conta da Beatriz. Iremos só papai, mamãe, você e eu. Vai ser bem engraçado — e continuou — Anda logo pra cozinha que eu te ajudo com a louça do almoço.

Enquanto Maria lavava, Lina enxugava, mas depois do segundo prato espatifar-se no chão, a cozinheira tirou-lhe das mãos, com firmeza, o pano de enxugar e comentou:

— Ich... Parece que ocê tem as mão furada... Senta lá e fica quéta — e apontou a mesa, que realmente era seu poleiro favorito.

— Eu nunca confessei — comentou Marião, um tanto apreensiva — é muito difirci?

— Que nada! É fácil. Você já entrou em alguma igreja?

— Só na Matriz, pra ispiá os Santo, mas num tinha ninguém lá dentro, não. Nem o padre.

— Bom — começou a explicar a menina — hoje também não haverá muita gente. As pessoas precisam trabalhar, você sabe, e nem os colégios estão de férias ainda. Mas as beatas sempre têm tempo para uma confissão de primeira-sexta-feira. Por isso o Zé Lopão fica lá, de tarde. Mas não se demora não, que a paciência dele não é muito maior que a minha...

E Lina riu, se lembrando do jeitão do padre.

— Mas que qui eu tenho di fazê? — impacientou-se Maria e a garota continuou:

— Logo que entrar na Igreja, bem à sua esquerda, você verá uma espécie de casinha de cachorro gigante, feita de madeira escura. Lembra uma igrejinha de brinquedo, com torres e tudo, e se chama CONFESSIONÁRIO. Na frente tem uma porta só, por onde entra o padre. Ele fica escondido lá dentro e você não o vê. Mas do lado há uma janela tapada por uma cortininha roxa. Na frente da tal janelinha, no chão, há um degrau onde você se ajoelha. Assim, o seu nariz fica exatamente da altura da janela e você pode começar a confessar seus pecados e o padre ouve tudo, só que não pode contar a ninguém.

— Só isso? — admirou-se Maria.

— Quase... — continuou Lina. — Depois de confessar seus pecados, você ainda precisa rezar o “Ato de Contrição”, senão o padre não dá a absolvição, quero dizer, não perdoa seus pecados.

— Não?— Espantou-se, Maria.

— Não.— Respondeu Lina. E continuou a preleção:

— No fim ele resolve qual será sua penitência e diz para você ir “em paz e não pecar outra vez”, coisa que também é pura perda de tempo, pois todo mundo peca de novo mesmo.... Mas não tem importância, pois é só voltar lá e confessar tudo que o padre torna a perdoar...

— Sabe, Maria? — pontificou, Lina — Perdoar é a obrigação dele, isso é, se o pecado não for muito grande — continuou ela, divertindo-se com a própria explicação. — porque se for, ele excomunga você e aí não tem jeito... Quem é excomungado, quando morre, vai direto pro Inferno...

E a incorrigível garota, ria às gargalhadas.

Marião, entretanto já não ouvia o resto do discurso, pois duas palavras, uma delas inteiramente desconhecida, preocuparam-na sobremaneira.

— E a penitença?

— Ah... — riu-se Lina — Isso é o mais fácil de tudo. É como se fosse um ebó, mas feito só de rezas. Ele manda você rezar meia dúzia de pais-nossos e ave-marias. Mas, se o pecado for muito cabeludo, isso pode ser encompridado para um terço ou dois...

— Sabe? — continuou ela —Eu nunca rezo nada que o Lopão manda. Se Deus quiser perdoar pecados, com certeza não há de ligar para rezas. Papai também acha isso tudo uma bobagem.

Mas Maria ainda não estava muito segura:

— E o ato di... — “Contrição” — completou a menina — É outra oração, Maria, mas esta você tem que rezar mesmo, pois é na vista do padre. Se não rezar ele não perdoa...

— Ocê m'insina, fiotinha?

— Claro, — respondeu o diabrete, já com sua capetice natural a todo vapor. E disparou de cima da mesa:

— Confiteor Deo omnipotenti, beatae Mariae semper Virgini, beato Michaeli Archangelo, beato Ioanni Baptistae, sanctis Apostolis Petro et Paulo, et omnibus Sanctis, quia peccavi nimis cogitatione, verbo et opere: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Ideo precor beatam Mariam semper Virginem, beatum Michaelem Archangelum, beatum Ioannem Baptistam, sanctos Apostolos Petrum et Paulum, et omnes Sanctos, orare pro me ad Dominum Deum nostrum. Amen.

Maria, porém, olhou-a tão consternada que ela se arrependeu imediatamente.

— Mil vezes pior que o iorubá, não é? — divertiu-se ela — Mas é latim, a língua da Igreja. Morreu, faz tempo, mas eles, às vezes, ainda usam... Mas você pode rezar em português mesmo, estou só brincando... — e recomeçou o Confiteor, do jeito que as freiras do colégio gostavam:

— Eu pecador me confesso a Deus, Todo Poderoso, à bem aventurada sempre Virgem Maria, ao bem aventurado São Miguel Arcanjo, ao bem aventurado São João Batista, ao santos Apóstolos, São Pedro e São Paulo e a todos os Santos... — Interrompeu-se, olhando para Maria, que parecia cada vez mais desalentada:

— Ah, fiotinha... É santo pur dimais. Num dá pra guardar, assim de supetão, eles tudo, não...

— Deixa lá, Maria...Você pode rezar o ato de contrição das crianças. É facinho e o padre, gostando ou não, tem que aceitar.

— E quem obriga ele aceitar reza facinha? — perguntou Marião desconfiada.

— O papa, eu acho... — disse a menina, enquanto tentava relembrar a oração das crianças. Afinal, não fazia assim tanto tempo e acudiu-lhe logo. Recitou-a de uma vezada só:

— Meu-Deus-eu-me-arrependo-de-todo-o-meu-coração-de-vos-ter-ofendido-porque-sois-tão-bom-e-amável-Prometo-com-a-vossa-Graça-nunca-mais-pecar-Meu-Jesus-misericórdia-Amem. — E vê se não esquece do amem — completou ela.

O rosto de Marião iluminou-se.

— Essa dá, fiotinha, já até aprendi. — E, felicíssima, repetiu a oração por duas ou três vezes, na sua linguagem arrevesada.

Porém, havia ainda um pequeno problema a ser resolvido... Confessar o quê? Conhecendo bem o Zé Lopão e suas idiossincrasias, a garota tratou de orientar a discípula o melhor que pode.

— Conta só pecado bem comum, Maria, que assim o padre não grita e vai rápido. Eu, por exemplo, conto sempre as mesmas coisas, e ele já nem fala nada.

— Bão... Isso num posso fazê. É a minha premera vez... O ebó para Exu, que o babalaô mandou fazê e num fiz, foi pecado. Bebê muita pinga tamém é...

— Roubar o tacho do primo foi pecado também! — acudiu a garota.

— Ah.. Isso num foi pecado, não sinhora!

— Olha, Maria, — e Lina agora era categórica — trata de não confessar nada capaz de lembrar, nem de longe, o candomblé... — avisou, preocupada. E continuou a série de advertências vitais:

— Se abrir a boca sobre isso, o Zé Lopão fará você cumprir penitências pro resto da vida. Nada de falar no tal ebó que você não fez. Exu? — continuou ela

— Nem pensar... Para o Zé Lopão, Exu e o Diabo dão na mesma, e acho que ele até pensa que Exu é pior... Se comentar sobre essas coisas, estará perdida. Entendeu? — e Lina continuou, sem culpa, sua supervisão do exame de consciência da outra:

— Você tem mais é que escolher um bom pecado católico. Conta da pinga ou do tacho e pronto. Qualquer dos dois pode servir.

— Da pinga tenho vregonha.... Conto não. — respondeu a cozinheira.

— Então conta do tacho — resumiu Lina. — Está decidido.

— O tacho num foi pecado, não... — insistiu Maria — Se percisasse, eu robava ele ôtra vez.

— E aí — respondeu, às gargalhadas, o diabinho catequista — Era só voltar ao padre e PIMBA!!! Ele perdoava você de novo. Depois do ato de contrição, é claro. 

Cozinha arrumada, catecismo findo, agora só faltava se arrumar para ir à Igreja. E Marião sabia, mesmo que isso nem passasse pela cabeça aluada de Lina, que para adentrar um lugar sagrado era preciso purificar o corpo e tornar-se odara, bonita. Sempre cantarolando, Maria foi até o jardim, colheu duas ou três rosas brancas, e as desfez na água que já fervia no fogão. Fervura breve. Arrefeceu a quentura com um pouco de água filtrada.

— Divia di sê da fonte — murmurou ela, preocupada. — Essa história de Igreja me pegou disprevinida...

Só então foi para o banho, levando com ela o canecão com chá de rosa branca. Debaixo do chuveiro esfregou-se, a preceito, com um bom tarugo de sabão de coco. Usou a bucha nova, previamente colhida na horta e seca ao sol. 

Aliás, todos da casa usavam as tais buchas, compridas o suficiente para esfregar as costas, ásperas o necessário para remover as sujidades mais renitentes, mas cuja trama era suficientemente delicada para não arranhar o corpo. Tudo isso, além do benefício extra de ativar a circulação. Assim, quem era branco saía do banho com a pele vermelhinha, mas quem era preto, estes saiam brilhando. 

Maria deixou a água correr, até que esta levasse qualquer resíduo de sabão e fechou o chuveiro. Só então derramou pelo corpo o chá de rosa. E apenas do pescoço para baixo, pois assim devia ser. Calmamente, deixou que este lhe escorresse pela pele. Pronto. Purificara-se. Para vestir, escolheu um vestido de chitão com listinhas azuis, trançou a carapinha e adornou-se com o colar de turquesas, que o patrão havia trazido da Bahia para a filha, mas que esta lhe oferecera, pois as pedras azuis pertenciam a Oxóssi, seu orixá. Já pronta, sentou-se num banco da cozinha e esperou pela família que, lá do seu jeito, de certa forma, purificava-se também. 

Pouco depois desceram os três e a cozinheira aproximou-se timidamente deles.

Lina, porém, sorriu para ela com aprovação:

— Odara! — disse ela, e o coração de Maria encheu-se de alegria.

— Ocê tamém tá odara, fiotinha.

O patrão observou a ambas, mas em seus plácidos olhos azuis não havia a irrequieta ironia habitual.

— Odara! — repetiu ele, sorrindo. A patroa, esta não olhou para nenhum dos três. Estava muito distraída, ajeitando os anéis.

E foi assim, cada qual preparado ao seu próprio jeito, que a família seguiu para a Matriz do Rosário, na tarde daquela quinta-feira.

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