Legião - Sergio Pires Jr.

Capítulo 2

             — Sei não, Denis — continuou Caio — Estou com mau pressentimento. Principalmente agora — disse ele apontando com a cabeça.
             O que ele apontava era uma garota que não deveria ter mais que dezesseis anos. Caminhava à frente, ao lado de Rubens. Pela aparência suja das roupas, deduzi que já estava na rua a um bom tempo. Rubens a trouxe quando paramos num bar para comprar cigarros.
             — Fique calmo — falei — Você sabe que ele sempre faz isso.
             Algumas vezes, ele não fora muito bem sucedido em suas empreitadas, mas já tinha conseguido transar com pelo menos duas garotas, usando sempre seus convitinhos ingênuos. Tinha o corpo atlético e acho que isso ajudava um pouco com as meninas mais novas. Mas, ao contrário do que pensávamos, os dois não estavam conversando muito.
             Geralmente Rubens era assim: Passando a euforia inicial, ele se preocupava mais com o que iria cheirar do que com quem iria trepar. E, a julgar pela sua conversa desanimada, ele não estava mais a fim de trepar com ninguém.
             —... Será que vamos encontrar o tal sujeito? — perguntou — Estou louco pra cheirar...
             — Sei lá — respondi sem dar muita atenção.
             Apenas observava a garota que mal sabíamos o nome.
             Possuía o andar trôpego e não descruzara os braços desde que saímos do bar.
             E era bela.
             Seus cabelos longos e escuros realçavam a pele clara de seu rosto e o azul de seus olhos. Usava uma calça “Jeans” desbotada e uma camiseta clara de algodão. Pude perceber a pele de seu ombro eriçada. “Está com frio” — pensei.
             Paulo percebeu meu olhar e aproximou-se. Era meio abobalhado e possuía uma barriga nada discreta. Nós o chamávamos de Paulo Fofonho.
             — Rubens disse que ela veio por causa das drogas — falou.
             Eu já imaginava isso. Era uma viciada de rua. Não tinha casa certa e nem família.
             Quanto a nós?
             Bem, nós éramos aqueles que tinham dinheiro, conta-corrente, cartão magnético e uma boa mesada. Pegávamos o carro do papai na hora que bem entendêssemos e viajávamos sempre que desse na telha. E é claro que nossos pais sabiam o que acontecia quando nos encontrávamos.
             Mas fingiam não saber.
             Talvez tivessem medo de encarar os fatos e colocarem em risco a posição que ocupavam diante de outros riquinhos de bosta.
             — Bonitinha ela né? — disse Paulo, interrompendo meus pensamentos.
             — Hã?
             — A garota. Uma graça.
             — Ah! Sim. É sim — respondi meio encabulado, sem que ele percebesse que já me sentia atraído de alguma maneira.
             E, antes de qualquer piada a respeito, avistamos o beco.
             Era uma rua sem saída e, apesar da escuridão, pude ver ao longe, quase no final, o sujeito encostado num Furgão. Usava um casaco escuro e seu rosto ocultava-se nas trevas.
             —É ele. Eu vou lá — disse Rubens — Vocês, esperem aqui.
             Encostei-me a uma parede, próxima à calçada e observei Rubens afastando-se lentamente, sendo engolido pela escuridão. Senti um calafrio.
             Paulo e Caio andavam de um lado para o outro, chutando uma lata de refrigerante, demonstrando impaciência. A garota encostou-se ao meu lado. Desta vez, havia descruzado os braços.
             Pedi um cigarro para Caio que me estendeu um “Marlboro” prontamente.
             Traguei o cigarro, demonstrando falsa tranqüilidade. No fundo, eu estava tão ansioso quanto eles.
             Mas havia algo mais.
             Aquela sensação de calafrio não abandonara meu corpo totalmente e eu não conseguia tirar os olhos do sujeito que, naquele momento, dialogava com Rubens em meio às sombras.
             — Pode me arrumar um trago?— perguntou-me a menina.
             — Claro — falei estendendo-lhe o cigarro que já havia queimado pela metade.
             — Como é seu nome? — perguntou ela, colocando o cigarro entre os lábios.
             — Denis. E o seu?
             — Laura.
             — Você mora aqui perto? — perguntei, enquanto observava novamente Rubens e o sujeito do Furgão. Estavam mais próximos agora, como se estivessem cochichando alguma obscenidade.
             —  Moro por aí... — respondeu ela.
             Dias depois, eu descobriria que “Por aí...” era uma casa de massagem onde sua mãe trabalhava. E, talvez, se a coisa toda não tivesse acontecido como aconteceu, ela também trabalharia lá em um futuro não muito distante. Mas, naquele momento, eu estava perguntando demais e decidi calar minha boca grande.
             Mesmo assim, ela permaneceu ao meu lado, até que Rubens retornasse.
             —  Vamos embora — disse ele apressado.
             —  Conseguiu o “negócio”? — perguntou Caio.
             — Sim, consegui — disse ele mostrando cinco envelopinhos de cocaína e um frasco plástico com um pó esverdeado — Agora, vamos embora.
             Antes de sairmos, dei uma última olhada naquele beco e vi o sujeito lá, parado, acendendo um cigarro. O isqueiro iluminou seu rosto quase totalmente.
             E, por um instante, pensei tê-lo visto sorrindo.
             Paulo, Rubens e Caio foram caminhando na frente. Cantarolavam antigas canções de Raul Seixas, animadamente.
             E a garota caminhava ao meu lado.
             Conversamos um pouco e Caio virou-se, dando uma piscadela, como se pudesse dizer: “Isso Denis, ela está na sua. Agora só falta jogar uma conversa mole e meter a noite inteira”.
             Parecia já ter esquecido o que havia me dito há alguns minutos.
             “Estou com mau pressentimento” .

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