O sonho de Tônico desde criança era entrar no mar. Ele não conhecia as águas do oceano. Fora criado pelo pai e a madrasta no interior de Minas e gostava de desenhar a quebra das ondas na praia que conhecera pelas novelas da TV.
O mar era imenso, infinito, dizia o pai. Na cabeça de Tônico era mesmo um lago belo. Desses que seu vizinho, o fazendeiro seu Jerônimo tinha... Um lago para criar peixes.
Todos os dias quando campeava corria entre o gado, brincava com os animais e deixava que o vento o levasse para o alto da montanha.
Um dia eu vou conhecer o mar!
Tônico sabia quão difícil era para o pai deixar seus afazeres para simplesmente levá-lo para conhecer o mar. À noite os sonhos invadiam seus pensamentos e transportavam Tônico para outro universo. Cansado da lida no campo, do sol que rachava sua cabeça, o menino só tinha o sonho como companheiro. Nas lacunas do tempo - Tônico era marinheiro.
Ainda vou morar perto mar. E ouvia do pai.
Tu precisa é de uma surra de chicote e trançado seu desocupado. Donde já se viu ir pro mar?
O velho esbravejalhava e para não deixar o garoto sonhar , misturava uma porção de arroz, feijão, milho e mandava que Tônico os separasse. O velho não suportava vê-lo brincando e solto pelo mundo. A idéia de liberdade incomodava o traste.
Quero tudo pronto quando eu volta do buteco... tudo separadim... tintim... por tintim...
Tão logo acabava de falar o velho ia para o buteco tomar sua cachaça.
Um dia eu vou embora daqui e não volto nunca mais.
A madrasta tentava consolá-lo.
Tira essas idéias da cabeça menino. Donde é que já se viu a gente é pobre... tem muito má onde cair morto.
Não gosto dele, Lena.
Mas é seu pai Tônico. É pecado você dizer umas coisas dessas. Não fala isso que Deus castiga.
Deus não existe tia.
Ave Maria! Menino, ocê tá é possuído, falano uma coisa dessas.
Mas Tônico não acreditava em Deus, nem no pai, nem na madrasta. A única coisa em que Tônico acreditava era em seus sonhos. Para Tônico alcançar a liberdade e fugir da opressão do pai era a dádiva da vida. Por isso não acreditava mais em Deus. Como Deus podia permitir tanta maldade? Tão logo a noite caia o pai voltava do buteco, bêbado, doido, escorando pelas paredes, xingando palavrões.
Cadê a minha janta?
Gritava para mulher. Tão logo mastigava a primeira garfada ralhava.
Tá sargada essa comida. Cê não presta pra nada. Vagabunda!
Num fluxo o velho bebum atirava a panela de sopa na parede e, pegava a faca e começava.
Hoje eu vou sangrar um...
O inocente Tônico chorava e nada respondia. Todos os dias era a mesma coisa. O sol escaldante, o trabalho forçado, os maus-tratos do pai. O menino e a madrasta corriam para o mato e por lá dormiam até o dia clarear e a cachaça do pai curar. Na manhã seguinte do velho dissimulado afirmava não se lembrar de nada. Mas Tônico sempre repetia para madrasta.
Por que ele não morre, hein. Gente ruim tem que morrer. Igual nas novelas que eu vejo.
Mas o velho traiçoeiro como sempre tinha o hábito de escutar conversas atrás da porta e ouviu.
Cê tá me desejando a morte, seu fio da puta. Pois eu vou lhe dá uma surra de mangueira, uma sova daquelas. Quem te dá cumida, coisa ruim? E vê lá por que ocê não vale o angu que come.
Com toda a crueldade que o espírito imundo tinha, apossou-se de um pedaço de mangueira e começou abater no menino.
Agora quero que ocê desapareça daqui.
A madrasta tentou proteger o menino, mas o velho a atirou longe.
Se não calar essa boca eu quebro sua dentadura.
Mas Tônico levantou, encarou o velho e disse:
Toda maldade que me fez virá em dobro pra você. O menino chorava, encarava o traste e repetia a frase como se fosse um mantra.
Toda maldade que me fez virá em dobro para você.
O velho tentou ganhar terreno, mas sabia que já não tinha forças. Tentou levantar a mão e sentiu a mão entortar, suas pernas foram dobrando, a língua foi enrolando e em poucos minutos o traste estava se contorcendo no chão.
Nunca mais souberam do Tônico. O velho vive abandonado às moscas. E Tônico desde aquele dia ganhou o mundo e foi em busca de seus sonhos. |