PANORAMA DA PROSA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA - VOL. 1

FRANCISCO PROSDOCIMI – É geneticista e escritor. Doutor pela UFMG, Francisco tem cerca de vinte trabalhos científicos publicados em revistas nacionais e internacionais, dentre contos e crônicas publicadas em dois livros de coletâneas de autores brasileiros. Mantém ao menos três blogues de literatura, filosofia e cultura geral. Mineiro de Belo Horizonte, Francisco tem experiência internacional e – tendo morado na Inglaterra (Cambridge) e Alemanha (Würzburg) durante seu doutorado – habita atualmente na França (Strasbourg), onde realiza um pós-doutorado em biologia genômica e evolução molecular. Francisco pode ser encontrado virtualmente nos seguintes sítios:
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Francisco Prosdocimi Crença preguiçosa de um trabalhador rural

Francisco Prosdocimi Quando um momento



CRENÇA PREGUIÇOSA DE UM TRABALHADOR RURAL

               O caboclo ouviu um barulho. Não o reconheceu. Pensou nos sons dos pássaros, dos sapos e também dos insetos. Não, não era nada disso. Homem é que não fazia esse tipo de barulho; e nem mesmo mulher! O barulho era surdo e forte; o tom: grave. Tivesse uma cor, o som seria de um verde bem escuro, caindo um pouco para os lados de um cinza; quase preto. Fosse uma mulher, o som seria grande e desengonçado, porém teria seus contornos moldados com capricho. Esteticamente, era belo. Trazia porém uma amargura e um sentimento de náusea ou dor que deixaram angustiado o tal do caboclinho. Ele matutou mais um pouco: que som seria aquele? Seria som de bicho grande? Ou seria de bicho pequeno? Vinha da natureza, isso era praticamente certo; praticamente. Naquele lugar ali não havia máquinas ou tecnologias de ponta quaisquer. De ponta-cabeça era o gosto urbanóide pela tecnologia. Estava bem no mato: muito bem! Espreguiçou. Atiçou os ouvidos. Nada... Teria sido um bicho de outro planeta?, pensou. A presença do sentimento místico fazia parte de seu estilo de vida e tendo uma vez chegado à solução de que aquele som proviera de origem mítica, esta não mais questionou. Neste mínimo local memético, deu então uma passeada. Alienígenas era hipótese forte, quase certa. Não cogitou a presença de deus, porém a do Demo rondou por sua mente: é que o barulho estava longe de ter aspectos angelicais, segundo a impressão caboclal. Iara e curupira e saci e mula-sem-cabeça por sua cabeça não passaram como explicações para fonte-emissora-do-ruído posto que nos dias de hoje nem mesmo os caboclos acreditam nessas coisas. De forma a recriar o kardecismo, nosso herói que jamais ouvira falar no tal francês e na filosofia espírita, pensou que aquilo pudesse vir d'almas doutro mundo. Pensava que almas iam e vinham e não morriam. Jamais associou alma a cérebro, dividia-os como Descartes. Mente era mente, corpo era corpo. Mente habitava corpo, mas mente não era corpo em sua visão de mundo. E assim achava, como o francês Alan, que espíritos – ou seja: mentes de humanos que uma vez haviam vivido – podiam se manifestar e modificar e mexer e produzir sons que transpassariam de forma especial o mundo "deles" e alcançaria este nosso. Medo e curiosidade eram os sentimentos daquele que escutou sozinho o estranho ruído em noite de lua nova, nos confins do sertão. A fazenda estava muda e um coro de grilos e cigarras tocava a pauta de fundo para a sinfonia natural. Gritos sônicos dos morcegos também se ouviam, por vezes. Psicodelia. Cachorros que brincavam, humanos que nalgum lugar, ao longe, ao que parece, bebiam alegremente. Dentre pequenos ruídos doutros animais que à noite se ouve. Sons que vão e que vem sem que passem informação clara. Serenatas como as de Mozart, ainda mais belas; naturais. Ora calmas, ora lancinantes.
              Se sua curiosidade era grande, o medo era maior. O barulho tivera vindo detrás do moinho que ficava cerca de quatrocentos metros à frente. Alguém tentaria roubar o moinho? Não havia nada para se roubar por ali. Então o som só poderia mesmo provir dalgum ente mitológico, era o que concluía o caboclo. Entes mitológicos, entretanto, costumavam ter comportamentos perversos com mais freqüência do que comportamentos de alegria ou amizade. Diz-se que desde sempre o homem é assim medroso e bem se sabe que o medo leva ao lado negro. Respirou fundo e resolveu averiguar; venceria seu medo. Não haveria de ser nada, algum bicho poderia estar acidentado, um humano quem sabe. Era corajoso e macho. Cumpria seu papel de olhar a fazenda naquela noite e era responsável para com o seu serviço. E assim pegou a peixeira e foi lá averiguar. E eis que aquele que agora a pouco bateu no peito e se disse macho ia parecendo ficar cada vez menos seguro de si a cada passo que dava em direção ao local donde o barulho era proveniente, segundo medida falha de seu ouvido. Dirigia-se o rapaz segundo rota que não era exatamente a verdadeira, pé ante pé sob as folhas secas, cautelosamente. E continuaria seguindo para o local incorreto, sem sequer questionar sua própria habilidade na arte de traquejar sons, caso o barulho não tivesse novamente ecoado da fonte direta mais uma vez: alto, longo e forte. E desta vez o caboclo, além de sentir todas as sensações previamente descritas e segundo as quais o som o fazia rememorar, sentiu também um enorme frio que começou na ponta inferior da espinha e se espalhou rápida e congelantemente por todo seu corpo. Sua cabeça apontara a casa sede e ele já quase começara a correr desembestado quando o sopro racional açoitou novamente sua mente. Não haveria de ser nada. Inclusive, parou e pensou, o som parecia um mugido rouco, conseguira identificar agora: era um mugido rouco de um boi. Sim, era isso. Ou então, gelo outra vez na espinha, seria um canto do Satanás para atraí-lo e ludibriá-lo, conseguindo assim ganhar su'alma através de algum jogo injusto e trapaceiro, já de ante-mão armado para sua derrota. Sabia muito bem que o Belzebu não tratava seus negócios com lealdade. Mas tinha que ir, era o trabalho que fazia. Era um sujeito responsa. Segurou o medo, espremeu-o. Tirou sua coragem para fora e apontou a lanterna para frente. Passo ante-passo entre as folhas secas e o empurrar de galhos que interrompiam seu caminho. Curiosidade e medo. Medo e curiosidade. Medo e medo. Necessidade de ir lá. Honra a um contrato e a uma profissão. Era um homem de honra e palavra, protegeria a fazenda. Seu alinhamento moral não era como o do Diabo: foi que foi. E então o barulho de novo se deu: verde acinzentado, escuro, grave, contínuo, mugido, lanterna, direção, foco, visão, nitidez, o quê?, um boi?, era mesmo um boi, um boi ali?, um boi parado, quase caído, um boi, algo o prende, seguir para averiguar, passo, passo, lanterna mirando, a pata, do boi, esquerda, traseira, não se mexe, está presa. Ufa, é só um boi... O boi tem uma cara de tristeza, cara de quem já gritou a noite inteira e não foi ouvido. Não é nem boi, é bezerro. O que faz ali? Terá fugido? Sim, fugido. A pata atolou na areia, escorregou para frente. O animal está preso porque não consegue tirar a pata, presa entre pedras que cobrem a lama. O caboclinho empurra para trás a pata do boi e o liberta. Faz isso de forma delicada porém rápida, habilidoso que era. Assim o boi não pôde nem reclamar da pancada que recebeu pois que quando deu por si, já estava livre. Estava livre. Percebeu, o boi. Pisou no chão, acertou-se. Acertou-se e correu. Correu na direção da plantação de milho. Eita, noss'inhora, agora o caboclo precisará ir lá para prender o boi e levá-lo de novo para o curral. Nada de medo agora, só preguiça. Vontade de ter o capinzinho na boca e ficar escutando o radinho de pilha. E enquanto vai andando em busca do animal, o rapaz pensa: "bem que podia ter sido algum fantasma mesmo".

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Francisco Prosdocimi
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