PANORAMA DA PROSA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA - VOL. 1

MAUREM KAYNA – Nascida em Santa Maria, RS (1972), atualmente morando em Guaíba, é Engenheira Florestal atuando na área, mas desde muito tempo ocupada com o que diz respeito à literatura. Em 2004, após participação na Oficina Literária de Charles Kiefer, veio a publicação do conto Cotidiano, na coletânea 101 que Contam (Ed. Nova Prova). Contos publicados também na Revista Eletrônica Bestiário, em Idéia Mirabolante e no site Anjos de Prata. Com participações também no Portal Literal (com um conto premiado nos Exercícios Urbanos / Julho de 2007), onde mantém um perfil.


Contatos: mauremkayna@uol.com.br
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          Maurem Kayna Coleções

Maurem Kayna Bodas de prata

Maurem Kayna Álibi


COLEÇÕES

             Houve rumores, alguma investigação sem provas conclusivas e o esquecimento concedido aos detentores de largas posses. Perversidade era o adjetivo utilizado na época para classificar seus supostos feitos. Ele não chegou nunca a discutir o caso. Além do constrangimento que ocorria aos que cogitavam sondá-lo, ele, hábil, distraía os amadores na arte da investigação discorrendo sobre seu fascínio por peças raras, antigas ou especialmente preciosas, e frisava: poucas seduziam tanto como os cristais. Envolvia o interlocutor com sua amabilidade e polidez e logo eram poucos os que lembravam ter havido um dia acusações contra ele.
            
Ainda ontem foi possível vê-lo almoçando no restaurante do hotel mais caro da cidade. Ali, apesar do sol vigoroso da rua, as janelas fechadas e cobertas por cortinas austeras obrigavam ao uso de iluminação artificial. O ambiente era revestido em madeira sóbria, o pé direito alto sustentava o lustre com pingentes translúcidos – uma peça imponente, sua estrutura reflete complexidade, solidez e leveza. Quem o assistisse contemplando os cristais, talvez adivinhasse a curiosidade que lhe atravessava, e a questão formulada como passatempo: seriam mesmo forjados artesanalmente? Na distância em que se achava, e na sua idade, ainda mais sem o auxílio de lentes, mesmo todo o seu conhecimento sobre antigüidades não lhe permitia uma resposta segura. Mas a gravidade disso era desprezível. Preocupava-o mais saber se seus convidados apareceriam.
            Seus gestos eram concentrados, afinal, era um senhor respeitado, cujas coleções causavam inveja a renomados antiquários e outros colecionadores, e não devia denunciar euforia. Aprendera a negociar peças valiosas dissimulando o real interesse para atingir valores finais mais convenientes. Naquele caso, não desejava prolongar as tratativas, mas também evitaria chegar a um acerto mais caro que o esperado. Mesmo sendo valioso o objeto de cobiça e arriscada a negociação, ele gostava de pechinchar e não abdicaria dessa prática mesmo naquelas circunstâncias.
            O casal entrou no recinto sem conter o deslumbramento, comentando em voz miúda a beleza do lustre e dos revestimentos dos estofados. A falta de intimidade com a pompa estava estampada nas suas faces tensas e nos movimentos contidos além do necessário. Entreolharam-se, acuados, e nessa denúncia de fragilidade o colecionador viu a possibilidade de ganhar pontos na negociação.
            Tentando quebrar o gelo e tornar o clima menos tenso, ele iniciou conversa amena, falando dos detalhes da arquitetura, da raridade do instrumento musical que se mantinha calado no fundo do salão e das boas referências do restaurante nas revistas especializadas. Não eram assuntos de seu interesse, mas serviam como delimitador de distância e poder. Suas vítimas pareciam desconfortáveis, mas não davam sinais de desejarem recuar.
            Servido o segundo cálice do tinto escolhido com cuidado, e temendo ultrapassar o grau de tensão tolerável pelo casal, ele disparou a proposta assim que lhe entregaram a fotografia. Não demonstraram dúvida. Sequer uma manifestação de culpa. Ele, no posto de pagador, não parecia no limiar de nenhum remorso ou pudor.
            Comeram educadamente, mas era perceptível o quanto de inédito havia em provarem aquela sofisticação de sabores. Ela tinha a pele curtida de sol, mas os cabelos e o sorriso ainda inteiros e muito vivos. Ele não parecia rude, mas seco. Não demonstrava preocupação ou cuidado com a companheira, nem com qualquer outra pessoa. Foi sucinto ao dizer que não tinha esperanças além de continuar entregando jornais e pão e cuidando dos jardins nos bairros grã-finos. Era sabido, dificilmente teriam chances de sair dos arrabaldes onde viviam. O colecionador avaliava seus modos à mesa, pensando que talvez tivessem tido algum estudo, mas ainda assim, não haviam encontrado espaço para progredir na vida – ao contrário, a família numerosa fazia decrescerem suas possibilidades. Lamentável, eram bonitos os dois.
            Finda a refeição, o respeitável senhor pediu ao seu motorista que os acompanhasse até sua casa e recebesse a encomenda. Depois de demorar-se um pouco à mesa e ver o café deixar seu timbre na toalha, regressou à própria morada, cujo endereço o casal não saberia nunca. A informação que tinham referia-se à hospedagem passageira do colecionador rico no hotel onde almoçaram. Pensavam que ele viajaria naquela mesma noite para o exterior carregando consigo a peça valiosa pela qual lhes havia pago o suficiente para livrarem-se das dívidas mais agudas.

 

            Não sei se tinha tão pouca idade como disseram ao nosso conhecido, mas o retrato não revelara o seu real valor. Quando chegou à residência, pelas mãos do motorista, já escurecia do lado de fora: atravessou o hall em silêncio de curiosidade, parou logo depois do umbral e ergueu a vista para as velas da luminária. Ficou um tempo espaçoso a contemplar o brilho das chamas, multiplicado pelos cristais, e assim o colecionador viu seus olhos mais verdes de encantamento, sem demonstração de susto ou rancor. Talvez ainda não soubesse que não voltaria a cumprir a rotina de cansaço à qual se acostumara. Não percebeu quando ele começou a desabotoar seu vestido.

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Francisco Prosdocimi
Maurem Kayna