Recolhia os jornais assim que chegava ao escritório. A secretária experimentara deixá-los sobre sua mesa, prontos para a leitura dos cadernos de economia, mas ele preferia o ritual de coletá-los no escaninho enquanto acompanhava a movimentação dos que chegavam ou já estavam se preparando para o dia de burocracias.
Não havia denúncia de anormalidade no seu rosto. Olheiras eram habituais, como a rotina de estar só, em casa, com Helena. Não costumavam sair. No lugar de restaurantes, cinemas ou shows, eventuais visitas dos amigos para compartilhar a quietude da biblioteca ou os chás exóticos que ela colecionava. Gostavam de licores e conversas sem farpas desnecessárias.
Essa repetição de horas pouco exaltadas não mudou quando Antônio soube do envolvimento de sua mulher com o estudante de artes plásticas que conheceram em um acidente de trânsito. Foi um descuido de Horácio, sua motocicleta quebrou o retrovisor do carro do casal enquanto Helena estacionava.
Perturbada, ela se exaltou, restando ao marido a tarefa de estabelecer o diálogo proporcional aos danos e à necessidade de providências. O motoqueiro era jovem, bonito, poderia se dizer, e, pelo menos por suas roupas, parecia pouco abastado. Ainda assim, quis ressarci-los do prejuízo e logo a situação caiu na banalidade das coisas a esquecer.
Ao iniciar a leitura dos índices da bolsa voltou-lhe a dúvida sobre o início do caso entre os dois – acontecera depois, ou antes, daquele sinistro? Não houve discussão a respeito, também nenhuma acusação. Quando ela soube que ele já se havia inteirado da situação, apenas beijou-lhe a fronte e retirou-se para o jardim. Aquilo não alterava qualquer dos seus entendimentos tácitos, Antônio não explodiu em rancores, apenas decidiu que não aceitaria o risco de ver Helena partindo, levando, talvez, sua coleção de vinis e manuscritos antigos para viver com um pós-adolescente de cabelos desgrenhados. Nada indicava esse temor como possibilidade, mas ele sentia necessidade de pensar em ato concreto para eliminar a sombra.
Seguiram a vida de sempre – onde cabiam cumplicidades diversas – culinária, silêncio, os poucos amigos e o bom entendimento na cama. Não falaram jamais sobre Horácio porque a lógica de seu vínculo não se identificava com a exclusão de outros. Não era o primeiro envolvimento dela com outras pessoas e também Antônio já experimentara outras peles. Entretanto, algo parecia ter se quebrado porque havia até ali o cuidado, menos para omitir que para resguardar, de que essas experimentações fora do leito compartilhado não chegassem ao sentir do outro.
Foi por acaso que viu o esboço do retrato de Helena em sua escrivaninha. Era muito clara a assinatura do rapaz de olhos claros e havia ainda a dedicatória. Não soube se Helena o assistiu em plena perplexidade ou se apenas pressentiu sua ferida, mas naquele mesmo dia, a figura ardeu na lareira. Ela mesma atiçou o fogo, dando ao marido uma curta tranqüilidade.
O estrangulamento que sentiu na boca do estômago ao ver a foto da manchete policial antes mesmo de se refugiar em sua sala não foi percebido pela secretária, mas retornou intenso quando a notícia foi lida na íntegra.
Razões para temer qualquer escândalo não havia. Seria fácil testemunharem seus álibis mutuamente. Estiveram juntos a noite toda e foram vistos por colegas dela entrando no cinema. Provavelmente não seria necessária qualquer declaração, pois as suspeitas da polícia apontavam para overdose e o envolvimento dele com Helena dificilmente deixara qualquer tipo de registro que os tornasse suspeitos. |