O RELÓGIO DAS ÁGUAS
FLAVIO GIMENEZ
Pardieiro - O Relógio das Águas - Flavio Gimenez - fls. 14 - Blocos Online

Meu tesouro

O local que escolhi parar viver é um muquifo, o prédio é arruinado e pelas portas de madeira maciça já passaram, segundo dizem, condessas, madames e cachorros vestidos de veludo e cetim. Os vitrais arrebentados pelos moleques que se criam às pencas nas esquinas eram povoados de santos e imagens barrocas, sabe-se lá tiradas de onde, davam um colorido especial às janelas do térreo cheias de samambaias vetustas e de teias de aranha. Ali proliferavam as madames casadas com barões do café e de traficantes de escravos brancos, que finados em melhores dias, tiveram o lugar de honra substituído por traficantes de pó branco e barões da vida fácil.

Pois é lá onde moro. É lá que solto o primeiro vento da manhã, pelas janelas desguarnecidas como dentes velhos numa boca torta. Mia um gato ou é um rato que se faz passar por um, tal é a malemolência dos pequenos (!) roedores que convivem com outros dentuços. Lá onde moro pinga a gotinha da esperança, mas sabe como é, nunca é bom beber dessa água que passarinho cheira de longe. Foi lá que conheci o meu tesouro, minha falsa loira de botequim, cabelos de raiz negra como o breu da noite e pontas de dourado metal que quando passeia por meu peito, me faz ir à nuvens ou me faz rir das cócegas nos pés. Fatal, tem dentro dela um vulcão que traz a perdição de meu juízo, olhe só. Não é só isto: sabe discutir bem o futebol, pois manda a cangalha que mulher que é mulher mesmo não fala, escuta e se possível, na frente de um fogão. Numa fogueira sobrarão seus ossos inúteis que ela incinerará.

– Pois sim! Não sou escrava, nasci livre, já assim dizia minha mãe que me criou – uma santinha!

Sim, era livre minha amada, solta das amarras e desprendida de todo e qualquer pudor de classe média-baixa. Convidava as amigas para tomarem cafés e se sabia de longe que havia um encontro de livres-pensadoras pelas gargalhadas com que comentavam as peripécias mais escandalosas, nos detalhes mais íntimos e era isto que me encantava: era seu jeito depravado que fazia as cabeças de toda uma geração de admiradores.

– Larga do meu pé!

Ela falava assim, mas quanto mais ela dizia, mais eu me aproximava, tanto mais ela fugia e eu, pelo meu lado, mais resistia a deixá-la sem mim. Foi assim o tempo todo, enquanto ela existia em sua vida de purpurina, de bailar ina das esquinas, ou flutuando em um transe hipnótico. Eu, de gozação ria de sua cara. Era o bastante para ouvir as palavras:

– Filho da puta!

Pois é, lá onde moro, as esquinas são escuras e as guimbas de cigarro entopem as bocas de lobo desaguando nos rios escuros do Centro. Invisíveis, vão sentadas as sereias em finos tecidos rasgados e só descobrem que estão em outras paragens quando se aproxima a enxurrada de lixo plástico. Voam como garças feridas, minhas valorosas cantoras, assim como canta minha admirada fada que assoa o nariz de modo canhestro, pérola entre porcos.

– Sou assim mesmo! Gosta?

Para mim, minha falsa blondie é feita de puro veludo, suas ancas são o motivo de muitas desgraças. Haja peito para enfrentar suas estradas curvilíneas, aventura que termina sempre, ou quase invariavelmente, com um cigarro de marca chinfrim que afugenta os mais cautelosos . Se a moça fuma assim, o que será depois de mim? Ela é desse jeito, foi construída para mim que a desconstruo em pensamento e revejo suas falhas de caráter recompensadas por um maravilhoso dom impublicável.

– Se gosta, é bom que me encha de presentes!

Finas bijuterias, de falsa prata; anéis com falsas turquesas e esmeraldas de plástico comprados em uma tal de vintecinco, número mágico que ela aposta nas loterias de fim de tarde.

– Aposto sempre na borboleta, só dá veado na cabeça!

Gargalhando, faz os trejeitos alegres de um ou outro que conhece, diz que são suas melhores amigas e conta o caso do milionário que pedia para que ela fosse mais homem!

– Imagina! Eu mais homem! Era o que faltava!

Essa é minha mulher descabida. Vale a caixa de Pandora, vale o quanto pesa (bem apessoada), não sei qual a religião que ela preza, nunca caiu em um camburão por acordos tácitos na calada, é assim que ela me despreza de noite quando passo por ela a sentir o perfume escapar de seu corpo bem aparado, esculpido pelos cinzéis de antigos artistas.

Gostava de humilhar. Parecia uma égua, grande mesmo, pernas compridas e um brilho na testa que ela insistia em carregar, dizia ser um rubi e depois vim a descobrir que era bijuteria também. Dizia que a avó lhe dera um anel com a pedra de presente e ela guardava a gema para a aposentadoria. Adorava a dança do ventre que todos pediam e ela impressionava pela sua cupidez, sua lascívia, seus olhos mostravando que ela gostava do que fazia.

Cheia de riquezas e manias, um dia sumiu de vez. Dizem que casou com um alemão que veio e a esperou no aeroporto por dias, mas tudo pode ser mais um de seus boatos. Afinal, perto dela, o que é verdadeiro ou falso?

Aqui, no meu muquifo, tudo me lembra ela. Esse é meu tesouro.


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