O RELÓGIO DAS ÁGUAS |
FLAVIO GIMENEZ |
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O farol
Na calada da noite, eu atiro a guimba do cigarro ao mar que em suaves movimentos recusa mais um pedaço de lixo da humanidade, como as garrafas que enchem o cais e bóiam desobedientes ao vento e ao léu. Posso ver além que luzes delineiam um horizonte flutuante e fugidio, talvez os barcos de pesca que animavam minha infância doce e curta, as marcações para que os grandes navios não encalhem no estreito canal que leva ao porto. Lá vivem os antigos pescadores em casas que definham, os marujos que voltam de grandes viagens ao sumidouro do mundo. Uma fauna de mulheres de tipos exóticos e sempre perfumadas espera seus antigos donos e novos clientes, uma corja que se esconde e sai à noite que se inicia. Posso ouvir a algaravia, os pequenos excitados com a possibilidade de descerem à terra depois de dias de prisão forçada no navio de cruzeiro e as mocinhas empenhadas em mostrarem predicados aos nossos famosos machos latinos, os velhos esperançosos de reencontrarem os antigos parentes perdidos.
Passa o jorro do farol, a cena toda iluminada pelo lampejo azul da lâmpada renovada, uma espécie de flash que fixa em minha retina a sombra do grande barco e o nome, pintado em garrafais letras no casco, Andrea Del Mare. Nome de mulher? Homem? Conheço Andréias, Andreas. A última que conheci foi bem aqui, onde meus pés teimam em permanecer grudados como se um amálgama de águas vivas os fixasse em suas cintilantes fosforescências. É o bastante para eu acender outro cigarro, enchendo o peito em dolorosa tragada.
Onze da noite.
De onde vem tanta gente? Como eles povoam este mundo onde se perdeu minha Andréia? Como ela estará depois de tantas promessas não cumpridas? Como navegará agora minha amada que se foi assim, de supetão, quando lhe deu na telha? Sorvo a fumaça que azul se confunde com o arroxeado do céu e se mistura aos miasmas do ar pesado e quase fosco das paragens do atracadouro, cheirando a mijo, e suor. O suave barulho das águas que talvez tenham bordejado a África, quiçá passando por Canários, Cabo Verde e Açores ou o próprio estreito de Gibraltar ressoa nas pedras. Suspiro e sorvo o ar da madrugada que se insinua lenta e inapelavelmente.
Onze da noite e tudo não passa de um clarão, um arrastar de nuvens cheias de águas vivas. A vida não passa de um lampejo que teimamos em seguir até o final de nossos tempos que obedece a um Tempo mais que perfeito, no batimento descompassado de nossos corações ao ver os olhos da menina. No suave despertar dos sentidos o beijo nos faz voltar a ouvir os últimos farrapos da orquestra que ainda toca a bordo do grande barco. Eu gostaria de estar lá dentro, talvez a achar a minha querida enrodilhada com um capitão qualquer, bêbada de alegria ou amasiada com um estrangeiro de olhos distantes a lhe prometer mundos e fundos, iludindo e confundindo a cabeça cheia de cachos que pousou um dia em meus ombros. Eu queria ouvir os acordes da canção e voltar os olhos para ela e ela perceber em um instante, em um lampejo de um flash de alguma máquina fotográfica que eu não merecia estar aqui de lábios ressequidos, mãos vazias, esperando que ela voltasse assim meio que pedindo desculpas.
Aí eu dançaria com ela como estou dançando sozinho na beira do porto, cigarro na boca, a guimba quase queimando o filtro, uma valsa inconseqüente e linda e os olhos dela brilhariam e diriam:
– Eu te amo.
Beberíamos champanhe, vodca, comeríamos a lula que ela adorava; esparramaríamos nossa louça no quarto, misturaríamos nossos corpos aos sons dos motores do navio que nos levaria de volta ao Estreito, desembarcaríamos em Madagascar e gozaríamos feito loucos. Gosto de pensar no que seria se não fosse sua doce ausência, se eu não fumasse tanto, se a água não fosse tão viscosa e se eu tivesse mais rumo no mundo.
Desce uma moça vistosa desacompanhada. Posso ver os seus cabelos, posso adivinhar seu olhar, ela está no local que sempre combinamos.
Gosto de pensar assim.
Que ela sempre volta no fim.
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