A grande casa silenciosa
A literatura não passa de um esconderijo daqueles que não sabem como viver o dia e a noite. É um simulacro de realidade onde o escritor se põe e se coloca como personagem ou descreve as ações de um outro que ele mesmo desinventa para em outro momento deixar desnorteado aquele que lê. Rabiscando uns rascunhos na mesa do bar ele pensava nisto enquanto bebericava cerveja, à sombra de uma figueira brava com seus inúteis frutos e galhos cobertos de musgo e ervas de passarinho e uma ou outra trepadeira. O tronco estava cheio de corações escavados a faca ou estiletes com declarações de amor e nomes ilegíveis. Perto da esquina onde estava o pequeno bar dos encontros de toda a cidade ficava o indefectível bêbado que costumava fazer companhia a outros , dormindo em um dos jardins da praça; quem poderia finalmente expulsá-los e para onde iriam?
Lá adiante, abaixo do Pau-Brasil, estava o pipoqueiro que aguardava ansioso a chegada dos colegiais que logo sairiam da escola municipal. Seus olhos então boiavam nas nervuras das árvores e ele percebia entranhar-se em sua consciência a casa, aquela que ficava além da praça, sempre sob a sombra de árvores seculares e de uma gigantesca Primavera que ofuscava os olhos com seu brilho e suas cores. Ele se imaginava voando para divisar em momentos fulgurantes o que se passava sob o telhado da grande casa, como se fora dotado de uma visão mais que especial.
Curioso, parando de escrever por um momento, ele perguntou ao dono do bar, apontando com o queixo a escadaria somente entrevista dali de onde estava:
– Você sabe quem vive lá?
– Na casa? São de pouco sair, certas vezes a família vai tomar sol no parque da cidade. Você precisa ver o carrão! O pai é um homem alto, ele é dono de uma indústria de suplementos agrícolas, mas vende mais para a capital, não tem loja aqui. A mãe é uma bela mulher, ainda em seus formosos anos, porém é sempre discreta.
– Quem mais?
– Uma moça lindíssima. Tem longos cabelos negros, tem olhos verdes e deve ter seus doze, treze anos. Eles não têm mais filhos. Dizem que também lá vive a mãe do dono da casa, uma senhora de cabelos brancos e emudecida por um derrame. Nunca a vi por aqui.
Das janelas da casa, os olhos verdes dela perscrutavam as copas das árvores, iam além do infinito, escalavam os montes vizinhos dos arredores da cidade de onde majestosas asas-delta sobrevoavam a pequena cidade com velocidade e destreza; podia-se ouvir o ruído do vento inflando as estruturas coloridas e vez em quando ouvir os gritos dos praticantes do esporte. Ela imaginava que um dia poderia voar assim, um dia poderia sair daquela casa, em algum momento do tempo determinado ela havia de alçar seus vôos próprios e cultivar seu próprio destino.
“Hoje é sexta-feira. O silêncio precede o vento que infla as asas da vitória contra a gravidade. Dia de pensar na hora em que chegar a liberdade, de sonhar com a vinda de alguém há muito desejado, de fantasiar divinos sonhos, de repensar meus papéis no mundo.”
Na madrugada, em meio aos sonhos agitados dele ela aparece, as luvas brancas cobrindo delicadas mãos ciosas de sua beleza, os cabelos longos emoldurando uma delicada testa, olhos de uma diáfana cor esverdeada como o mar revolto que aparece lá fora; ela lhe sinaliza para que venha e ele sobe as escadas colocando-se ao seu lado, sob a majestosa sombra da velha árvore. Nos seus sonhos ela tira uma das luvas e lhe expõe unhas de cor madrepérola enquanto ele a toca e sente a maciez de sua pele e o calor de seus dedos entre as palmas de suas mãos. Uma lufada de vento levanta seus cabelos iluminados por um súbito raio de sol. Ele sente-se absolutamente encantado, é o sorriso da beleza pura, o convite da absoluta sensualidade desnuda, lábios cheios de cor e dentes de absurdo marfim. É aí que ele acorda e levanta em sua casa e vai beber um copo d'água para acalmar os sentidos aguçados pela brisa noturna da madrugada que se infiltra em lentas cores dissonantes. Quase dormindo ou meio acordado ele ouve os pequenos barulhos que os meninos fazem, em uma conversa cheia de cochichos e pequenos risos, ouve-a ralhar com eles pondo-os definitivamente para dormir, e ele se deita, porque os meninos não existem e ele definitivamente exagerou de novo.
Dentro da casa, ela escrevia, divagando, em seu diário:
“Hoje é sábado. Papai provavelmente vai querer passear no parque onde faremos mais um piquenique. Coitado, ele quer me agradar e não consegue, são tantos anos que ele tenta, mas nada me agrada mais que pensar que um dia estarei longe, olhando os telhados destas casas e me tornando eu própria dona de meu destino, apenas o vôo com o vento em meu rosto, como um pássaro de longas asas...”
Penteava os cabelos languidamente, escovando cada ponta, pensando nos pássaros, nas árvores, nos deveres de casa e na professora que gostava de seu jeito de se expressar, quem sabe ela pudesse escrever mais um conto como aquele. Concordava e o fazia para agradá-la e então aparecia a praça, o rapaz bebericando e escrevendo na mesa, a figueira brava e seus frutos inúteis, surgiam as asas-delta e seus vôos e o rapaz a fitava de longe, como nos seus sonhos que a acordavam de noite bruscamente com o barulho dos meninos que definitivamente eram duros na queda.
O sol se põe em movimento, deixando as sombras compridas e o céu de cor rósea; folhas se levantam com a tarde que se finda e já se ouve a algazarra dos alunos que terminam mais um período, movimenta-se o pipoqueiro para receber os pedidos, já se sente o cheiro no ar. Ele escreve furiosamente nos papéis que ameaçam voar com as lufadas de vento, sim, será assim que a imaginará, voando solta como uma folha ao vento, livre como uma andorinha.
Lá, adiante da praça, ela olha o céu vermelho e escreve que mais um dia se foi, que está na hora dela ler o livro que seu pai lhe deu, está na hora de ela arrumar espaço em seu armário para as coisas que tem em excesso. Ela escreve que ele sai do bar com ritmo leve, embalado pela cerveja, não sem antes lançar um olhar em direção à janela de seu quarto iluminado, quem sabe perscrutando o silêncio que se apossa pouco a pouco daquela casa enorme e aconchegante; ela escreve que está na hora dela cuidar de sua avó emudecida e de olhos vivazes, ajudando-a a descer as escadas para que possa ouvir a música que vem do rádio que seu pai lhe deu, em estações tão longínquas que ela nem sabe das línguas que se falam lá.
Chegará o dia em que ela encherá com sua voz a grande casa e fará com que se mude para lá a alegria, junto com aquele que subira as escadas e a vira de luvas, graciosa, pedindo sua mão em casamento. Então ele venderá os livros ao pipoqueiro e ao bêbado que se tornará ávido leitor, a cidade e seus carmins se encherão de saraus onde ela poderá contar as histórias que sempre quis porque os meninos assim o pedirão, com riso no olhar, à beira do sono, quase naquele interstício que povoa de sonhos a realidade e ela começará a história pelas janelas de sua antiga casa, aonde foi morar depois que se foram os pais e a avó.
Ele, após sair do bar, tocado pela cerveja e talvez pela inspiração, pensa nos verdes olhos que iluminam a praça, nos gritos das crianças disputando as pipocas, na desfaçatez do bêbado a mijar na árvore calejada de experiências, no andar irrequieto de um quero-quero do outro lado da rua e imagina que muita história se fez, mas nada mudou em sua vida. Pensa que talvez o que escreva nada mais seja que um passatempo feroz, que consome suas horas desenxabidas de funcionário público. A mesquinhez de seus dias disfarçada em palavras que imitam a realidade incapaz de viver, porque mais velho (seria um escândalo) e sem coragem. Olha o caudaloso texto: rabiscos, tentativa e erro, novas palavras, páginas furiosas. Ali ele vence a morte, a insânia daquele mormaço, assoma de cabeça erguida pelo portão de ferro onde sabe que o espera uma deusa — com todos os desafios que isto implica.
Decidido, abre o portão recostado e sobe as escadas da grande casa silenciosa. |