Cobra coral
Ele mal conseguira calçar as meias quando ouviu o barulho, o baque. Simplesmente, naquele momento, sabia pelo ruído que sua vida mudaria para sempre. Ele tomava banho e se preparava para ir trabalhar: Sempre às seis da manhã, religiosamente, tomava uma chuveirada que o fazia despertar e reunir as forças possíveis para enfrentar o dia que já deixava suas marcas nas peles dos transeuntes e vagabundos que dormiam nas esquinas da cidade sem alma. Ele ouvia da janela de seu banheiro os latidos quase estereotipados dos cães, como se fossem ecos distantes de cães verdadeiros e não dos mesmos coitados que insistiam em ladrar para o vazio das ruas semi desertas. Ele ouvia uma ou outra lata de lixo sendo chutada à distância, um “putaqueopariu” do mesmo bêbado de sempre e ao desligar o chuveiro ruidoso e barato que comprara na Consolação, pá, o surdo e cavo som do baque. Não que ele imediatamente fosse ver o que era, mas antes pegou a pasta de dente e pôs na escova, iluminado pela lâmpada do teto do banheiro, não que ele pensasse em alguma coisa naquela hora, como poderia saber? Os latidos como que cessaram, um silêncio sepulcral que ele se lembrava de ter sentido somente nas horas que antecedem a tempestade ou que sucedem o ribombar de um trovão seco no ar chuvoso de março. Mas ao pegar a escova e puxar a toalha para a cintura, ele ouviu o silvo. Bem na direção de sua sacada, ele ouviu o silvo inconfundível, o sibilo que arrepia tantos e quantos o puderem ouvir, na escuridão, numa floresta escura: O estalar da língua bífida de uma serpente.
Ele já se secara agora, mas seu cérebro ainda não ligara o silvo a alguma coisa. O silêncio lá embaixo continuava, como se os cães se tivessem extinguido, como se houvessem sido arrastados pela carrocinha (eles bem o mereciam, estes lazarentos...) e foi isso que ele mais estranhou, não tanto o baque nem o silvo bífido, mas o silêncio dos cães na rua semi deserta. Deu uma olhada lá fora, pela janela do banheiro e se pôs a contar as janelas: A sexta a parir de baixo sempre exibia o perfil de uma morena que insistia em tomar banho sempre de janela bem aberta, talvez sequiosa de olhares, talvez solitária como ele, mas não conseguiu divisar seu vulto, até porque depois do baque, do silêncio e do primeiro silvo, ele ouvira o surdo ruído de algo que se arrastava agora, vindo de sua sala. Seus pelos se eriçaram na nuca, pois agora ele sabia que o tal ruído cavo poderia ser um corpo, que se arrastava! Que corpo poderia se arrastar assim, depois de uma queda sabe-se lá de onde e ainda com força para desafiar tudo que fosse possível numa lógica invertida? Ele morava no décimo segundo andar de um prédio alto. O que poderia ser? Já ofendido com sua própria covardia e absolutamente certo de que ficara um pouco mais louco, abriu a porta do banheiro e correu à sala, pronto a exorcizar o corpo que se insinuava, prestes a quebrar os cristais da pequena cristaleira herdado de sua bondosa mãe morta há muitos anos, tantos que ele apenas se lembrava dela nos momentos de autocomiseração, quando sentia que seu destino e o dela eram indissoluvelmente ligados, quando ele finalmente vivia sozinho naquele apartamento velho, cercado de livros velhos e com escadas gastas, com um elevador que lembrava os dos filmes noir assistidos com frequência nos cinemas decadentes da cidade sem propósito por ele habitada.
Entrou na sala, silêncio: O silêncio dos cães, o silêncio dos pássaros, o silêncio da reverberação daquela insólita manhã. Foi à cozinha passando pela sacada onde pendiam as plantas que ele sempre regava depois de voltar do trabalho eventual que arranjara, consultor de bibliotecas públicas, livros antigos e um sebo que ele arranjara como bico para poder sobreviver mais dignamente, no centro da cidade. Apanhou o leite, preparou o café instantâneo e intrigado, voltou à sala, para conferir de onde viera o som do impacto. Chegou à conclusão de que talvez seu vizinho de cima caíra, talvez um idoso que sofrera uma queda, ou apenas sua imaginação, criando barulhos contra o silêncio lá fora.
No céu, nenhuma nuvem e uma manhã gloriosa já se anunciava, com o dourado do sol delineando seu espectro pelas janelas envidraçadas do arranha-céu que morava ao seu lado...
Voltou à cozinha e sorveu o café com leite e mordiscou o pão com manteiga.
As escamas geladas tocaram nele e deram-lhe a impressão de que pusera a sola dos pés numa bacia de gelo. Era já o veneno fatal surtindo seu efeito. |