O Relógio das Águas
Ela contemplava o céu, nuvens poderosas na base e espalhadas ao alto; não seria desta vez ainda que a previsão acertaria.
– Por certo, hoje fez muito calor, não?
– Decerto.
Sua amiga de tempos imemoriais pensava na imprevisibilidade do tempo como sempre o fizera. Obra-prima da boa educação, não soubera dizer não ao seu pai que a casara com um marido desalmado, nem a ele mesmo quando resolvera que o melhor negócio seria mudar para perto da verde selva, onde negócios prosperariam entre as tribos escondidas na mata e jazidas infindáveis fariam seus bolsos se encherem de dinheiro. Há males que vêm para o bem, pensara ela, pois ali mesmo ele morrera de impaludismo e fora ali que ela conhecera seu novo companheiro, felizmente.
Fazia tempo que se acostumara ao calor implacável que deixava a todos apalermados; todas as suas amigas que vinham do sul, quando e se é que vinham mesmo (ultimamente dera para duvidar se algumas de suas amigas já não a visitavam porque haviam morrido e outras que ainda se aventuravam por lá não seriam realmente espectros).
– Você sempre me repete. Parece um eco!
– Você sempre diz isto de mim. Sabe querida?
– Sim?
– Hoje sua empregada acertou no sabor do chá.
– É uma espécie de maracujá. Delicioso, não?
– Vai me dar uma modorra...
– Dizem que acalma.
Pois sim que acalmava. Nas noites infernais, onde as nuvens se adensavam e chovia torrencialmente, a pele grudava-se no travesseiro e por mais que se abrissem as janelas, nada aplacava o calor. Nem mesmo o proverbial poder do maracujá a fazia dormir. Dava-se ao luxo, então, de recorrer ao poderoso calmante que seu falecido companheiro lhe trazia nas horas vagas ou lhe deixara escondido, ela não sabia direito se o que sonhava era real porque se mesclava de maneira tão perfeita à sua noite que ela de fato o sentia ao lado e se arrepiava e quando dava por si, estava lá a pílula que escondia seus mistérios.
– Por falar em acalmar...
– Conte-me tudo querida. Aqui, a esta altura da vida, nesta tarde acachapante, com este sol...
– ...Ele me visitou de novo.
– Olhe, eu acho que você precisa é de ajuda.
– Mas... É tão real!
– Mas como? Ele já não morreu?
– Os dois já morreram. Ele gostava tanto de mim! Ao contrário do outro, que me surrava e dizia ao meu pai que eu caíra da escada, o sujeitinho. Bom, mas ele me trouxe para cá e foi aí que conheci meu visitante...
– Como diz meu amigo, a selva tem seus mistérios. Você o conheceu como mesmo?
Podia lembrar-se de todos os detalhes. Fora uma experiência única, inigualável, de textura infinita. Ela e seu atual marido andavam, assim como se anda na rua, sem o que fazer, ela olhando umas barracas que imitavam outras que ela havia visto no Ver-O-Peso, em Belém. Súbito , um reflexo lhe chamou a atenção, o sol se aquietara num cristal de um lustre que jamais combinaria com uma casa daquelas paragens e atrás do sol resguardado, o olhar zombeteiro dele, o olhar que a cativara pela ironia fina, como se pensasse como ela sobre o lustre e seus absurdos pingentes; quem haveria de colocar dentro de sua casa algo semelhante a uma fogueira de vidrilhos? Pois um homem de baixa estatura, com um bigodinho muito estranho, óculos de aro fino e raros cabelos amealhou o tal lustre. No entanto, o zombeteiro lá estava.Ela, que a esta altura tinha seus trinta e cinco... Cabelos aloirados em cachos, uma bela mulher para os padrões da época, claro que percebeu que a zombaria era para o seu par, não para ela, muito menos para o baixote que saíra orgulhoso com sua aquisição. Na certa, ele deveria saber do fino trato que recebia de seu marido ardiloso e vil (ele era conhecido como mau negociante e pior caráter) e pensava o que faria tal mulher para estar, ainda, com semelhante tipo. Não que seu marido não fosse bonito: Tinha lá seus dotes, nos arroubos das noites ela tentava sentir alguma coisa, mas tudo que não passasse de alguns minutos, pronto, já estava virado e ela de olhos marejados, via o teto cair sobre sua cabeça. Nestas horas maldizia seu pai que a enrascara fazia quase dez anos e ela também se culpava pela prisão que a enrodilhava ano após ano. Talvez por isso a sedução daquele olhar a tenha cativado. Daí para conversarem foi um passo e o fizeram sob as barbas de seu marido, entretido com negociantes (ele sempre fazia isto, como que para irritá-la, metia-se a falar de preços da borracha, do cacau, das carnes de novilhos e boi zebu... Era aviltante e ai dela se reclamasse, cairia tantas vezes da escada quantos degraus ela tinha.)
– Era bonito?
– Não mais que meu marido. Mas tinha algo que ninguém tinha...
– Tinha o ar do mistério da selva.
– Talvez. Tinha um quê de índio, mesmo. Um cabelo bem escuro e a pele mais amorenada. Talvez tivesse mesmo algo a ver com os índios, não aqueles que viviam e vivem perto da civilização, mas algo mais nobre. Tinha sempre de sair da cidade, para se embrenhar em grotões que nunca eu ouvira falar. Na realidade, eu nunca soube o que ele realmente fazia. Às vezes, vinha com flores que nunca cresceriam em parte alguma senão no meio da floresta; então criamos um canto que você conhece...
– Claro, querida.
– E lá brotavam aquelas plantas esquisitas, com flores que davam tonturas de tão perfumadas, outras com flores que pareciam, bem, você sabe o quê.
– O tal mistério da selva.
Ela gostava de sua amiga, esta que sempre dizia que ela repetia suas palavras, mas não, ela é que era a ouvinte porque escutava tudo o que ela narrava com tal delícia que diria espelhar-se nela para viver uma outra vida que não houvera para ela. Bem, ela a achava divertida, a ironia pareava às vezes com a de seu estranho visitante, isso enquanto ela falava sem parar nas investidas que ele dava e a enlouqueciam...
– ... O tal mistério da selva.
Riam as duas, viviam uma da memória da outra, uma mais que a outra e outra por demais de uma. Contemplavam o céu azul, as poderosas nuvens já serrilhando o céu com faíscas ao longe, iluminando o tênue horizonte que se manchava das luzes da cidade e elas se lembravam das festas que haviam freqüentado juntas, obviamente sabedoras dos segredos mais constrangedores dos convidados mais do que os seus próprios. Pelo menos antes destas festas, ela não caíra da escada, riam-se as duas à beça. Mas olhe, quem está ali, ao canto, com uma taça de vinho na mão de tez indefinida?
– É ele!...
– Quem?
E ela olhava de novo e ele não estava lá, talvez se disfarçasse para não fazê-la passar vergonha com o marido a tiracolo. Ela disfarçadamente tentava vê-lo, via uma mão com uma taça de vinho, ele conversava animadamente com outras mulheres, só para espezinhá-la, certamente não estaria falando sobre negócios e sim sobre as belas e poderosas árvores que abrigavam as exóticas tribos, pois sim, iriam acertar as contas em outra hora, em outro dia. Ah sim, ela haveria de querer saber quem elas eram e se ele se interessara, não sem antes ter de sorrir amarelo para o marido sisudo, animado com seu jornal à mesa, dando tempo ao tempo para poder voar ao seu ninho de plantas e humores secretos.
– Ele estava bem ali!
– Estou começando a achar que este seu misterioso...
– Amigo.
– Sim, estou começando a achar que ele não passa de pura e simples diversão de sua mente.
– Não duvide nunca de minha sanidade!
– De forma alguma, você sabe que eu jamais faria isso!
Então assim que seu marido saía ela dava um jeito de escapulir de casa, sem despertar as suspeitas de seus empregados. Ia sempre a instituições de caridade, quando na verdade...
– Quem eram aquelas?
– E você se importa? Afinal, tem marido!
– Pare de me provocar!
– Bem, não era eu que estava com uma moça a tiracolo.
– Nunca gostei dele!
– Por quê não fica comigo?
– Seria um escândalo!
Escândalo é o que faziam depois de discutirem, os humores misturados ao perfume de seus corpos suados de amor, desejo, calor e cansaço. Para ela estava bom assim, para ele que fugia sempre para a selva, melhor. Não precisava se prender a ninguém e nenhum dos dois se cobrava isto.
– Sempre que precisar dormir, mas assim, dormir como num passe de mágica, tome um destes, quando se lembrar de mim e não conseguir dormir, pegue e tome.
– O que é isto?
– Um pajé de uma tribo muito afastada fez e deu a mim. Diz que vem de uma planta mágica. Antes de dormir, você vê a magia do mundo se abrir ao seu olhar. Porém, preste atenção ao que a magia lhe diz, pois é dos sonhos que se faz a realidade; pode-se aproveitar quem sabe uma parte deles para se moldar o mundo.
– Onde aprendeu tudo isto?
– Minhas viagens solitárias pela selva me ensinam tudo. Gosto do silêncio imponente, das enormes árvores antigas; gosto de meus amigos que disparam suas flechas sibilantes para me avisarem que ali é seu domínio. Gosto das águas nos riachos, elas me ensinam sobre a paciência de seguir seu curso até onde nascem. Talvez daí nasça minha sabedoria, nas nascentes dos riachos que dão mais trabalho para serem achadas. É nelas que busco minha inspiração, é delas que trago as flores mais raras para nosso abrigo momentâneo.
Ela se lembrava de tudo isso, ali, com sua amiga inseparável, enquanto bebiam o chá improvável de uma fruta rara colhida por sabe-se lá quem, enquanto as nuvens despejavam em grandes faixas cinza sua fúria em águas marcadas de hora para derramar, como um relógio dos mais exatos, tanto que os mais cuidadosos sempre recolhiam suas barracas, sabedores do horário certo da monção. Não é interessante saber a hora pela hora das águas?
– Certamente, querida.
E ao final de um dia de muitas conversas, era chegada a hora dela ir embora. Não sabia se ela partiria para mais uma vez, naquela semana, deixar o conforto de sua casa arejada e colocar a conversa em dia com sua amiga. Naquele dia, tal era o calor que ela, certamente, faria uso da tal pílula, guardada a sete chaves em sua cabeceira, em uma caixinha ornada de pequenos cristais de duas cores, onde brilhavam as pílulas verdes que ela conhecia. Pegava então o copo de água, tomava uma delas (fazia muito tempo que não a tomava) e esperava, porque a magia certamente moldaria seu mundo. Sabia, então, que não estava só, porque ele suavemente, sub-repticiamente, penetrava em sua solidão e de onde quer que estivesse falando, seja de qual árvore colhesse, de qual fruto ou flor, primeiro ela ouvia os sibilos das flechas e então escutava o rumorejar das nascentes que certamente ele escolhera para fazer-lhe companhia o dia que ela quisesse.
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