É um prazer ter minhas
filhas ao lado, acompanhadas pelos genros e netos, nesta mesa farta, regada
de vinhos para os adultos e refrigerantes para os menores, entre conversas
onde todos falam sem descanso e ao mesmo tempo. Meu marido olha para elas
com um mal disfarçado orgulho de pai-coruja, rendido à sedução
que sempre exerceram sobre todo mundo. Até hoje são saudáveis
e inteligentes minha Emília e Priscila, gêmeas que abalaram
o bairro por sua robustez e simpatia, bebês risonhos e rosados, responsáveis
por romarias insaciáveis de perguntas. Com quantos quilos nasceram?
Em que dia sorriram? A quem puxaram os olhos claros? A algum gen recessivo,
eu dizia. E meu marido logo lembrava de um ascedente na família,
mágica explicação que bastava para aumentar a alegria
das visitas, unânimes em profetizarem um grande futuro para minhas
filhas. E aqui estão, as duas muito bem casadas, cheias de belos
rebentos, realizadas como mães-de-família e donas-de-casa.
Só eu sei a verdade sobre elas, verdade que nunca contei, primeiro
porque me fascinava conhecer seus destinos, agora porque não vejo
mais razão para fazê-lo. Nem acreditariam serem ambas frutos
do estupro de dois homens que invadiram minha casa num dia de folga da
empregada, me violaram e me emprenharam com o mesmo entra-e-sai do meu
marido. Criei-as para acompanhar suas heranças de ódio: talvez
desencadeassem um processo de violência, cruéis, assassinas,
sádicas, deformadas pela raiva, sementes de minha rebeldia que nunca
explodi como mulher. Mas cresceram normais — menstruaram, casaram, tiveram
crias — e eu sofri com tanta passividade. Cheguei mesmo a me arrepender
por não ter abortado, sinistra idéia que não faz mais
sentido (com o tempo e a idade compreendemos os absurdos do mundo). Hoje
é um prazer ver minhas filhas com seus maridos e filhos, sorrindo
patéticas, falando sem prazer das coisas mais fúteis e vazias,
reunidas em outro domingo de aparências e desentendimentos. Valeu
tê-las deixado viver, pois considero-me vingada.