"Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, as almas não".
1º INTERVALO
E o inesperado aconteceu: te
despediste, dizendo que te enganaste, não era amor, apenas tesão.
Sentias muito, naturalmente (naturalmente nada sentias). Se ficássemos
juntos, nos sufocaríamos, nos arrependeríamos. Vingativa,
resolvi que aprenderia a te esquecer a qualquer preço, a qualquer
hora, sob qualquer pretexto: porque chovia, porque fazia sol, porque ventava,
porque era segunda-feira, porque era sábado, porque a praia ficava
longe de minha casa, porque eu estava alegre, porque eu estava fingindo,
porque era preciso. Mil homens me consumiram, mil mulheres me devoraram.
E não saías de perto, mesmo à distância.
As lembranças eram inimigas ferozes, e meu corpo, um banco de dados
teus. Ofensas: REGISTRA. Meu amor: NÃO REGISTRA NÃO
REGISTRA.
2º ATO
Anos depois, ainda era necessário
manter aceso o ódio e fazê-lo dar crias, ali-mentar a chama
votiva para o próximo sacrifício. "Madame Zaira vê
o moço de cabelo encaracolado pensando em você..." Não
quero saber mais nada dele, Madame. Conta mais... "Vocês vão
se encontrar em breve". Pagar para ouvir besteira. Saí amolada:
Madame Zaira estava mais para alcoviteira do que para minha cúmplice.
Mas ela acertara: voltaste. E se eu te sufocar? E se nos arrependermos?
Não deu tempo de perguntar. Desta vez lembro-me de todos os detalhes:
menstruada e seminua deixei que me semitocasses. Meus seios te excitavam;
pontudos e provocativos cresciam na tua boca. Só isso precisavas
para gozar e só isso te dei. Eu era tua sereia, parcialmente inacessível.
E gozaste roçando igual a um gato: meus peitos, tuas almofadas que
arranhavas voraz e faminto. Se eu tivesse gostado daquele teu amigo alto
e barbudo, com olhar felino, também seria assim? Teria ele também
se contentado só com meu peito, com partes de mim?
2º INTERVALO
Quando acordaste, eu já
tinha partido. Queria que te sentisses usado, eu estava vingada. Empate.
Não voltaríamos mais, não se erra duas vezes. Acabara,
não pensava mais em ti. meu corpo já não vivia ao
compasso do teu cio, teu nome eu já pronunciava sem dor. Eram-me
indiferentes as notícias que os amigos me davam sobre tua vida,
pouco me importava se passavas bem ou mal. Se tivesses morrido nesta cena,
teria sido indiferente para mim, nem das lembranças boas eu precisava.
Liberta, agora podia ter paz ou, então, fazer aquela viagem, pequena
que fosse: ir a Petrópolis, almoçar lá na cantina
italiana, contente por estar só, una. CENA ONÍRICA: meu ato
de rebeldia — imaginar uma viagem a Petrópolis... e depois não
fazê-la. "Madame Zaira vê que vocês vão ficar
juntos de novo e desta vez vai dar certo". Impossível. Já
tínhamos experimentado de tudo, "de todas as maneiras que há
de amar, já nos machucamos"... Minha vida se transformara em letra
de música de Chico ou enredo de filme de Truffaut: "nem com ele
nem sem ele".
3º ATO
Passaste a mão sobre
minha roupa, paraste no decote, alisaste meus seios — FLASH BACK... temi
tempestades. Tudo mudara pouco. Conservavas ainda ni-nhos-de-marimbondos
na porta do teu quarto, a esteira era mesma, e a rede também, só
mais desbotada. — Por que só apareces quando estou menstruada?
— disse, ou melhor, te ameacei... Não recuaste. Fuçaste meu
vestido, metendo a cara entre minhas coxas, me possuindo longo, me comendo
com todas as fomes (já bastavam os fastios), lambendo meu suor,
me mostrando que todo arrepio é imortal e passageiro. Aceitar-te
seria neurótico? Que se danassem!, afinal, de sentimentos sadios,
os divórcios estavam cheios... Pelo menos, já sabíamos
que irracionais seriam todos os nossos recomeços, e que a cada um
deles se seguiriam ausências, como intervalos. Só que agora,
amando sem corpo, driblávamos nossas almas... Única maneira
de fazer com que, defendidos, camuflados, escondidos de nós sob
falsa identidade, nossos nicks pudessem celebrar enfim as suas bodas, consumando,
em paz, o seu pacto de sangue... virtual.