TEATRO MUNDI
PAULA VALÉRIA ANDRADE
Paula Valéria é escritora e designer, produtora e publicitária em design gráfico, diretora de arte, cenógrafa & figurinista em cinema, teatro, TV, com prêmios APCA, Mambembe e APETESP. Realizou 26 espetáculos em 14 anos de teatro, alguns inclusive no estrangeiro. Viveu em Londres, estudando História do Vestuário no Victoria & Albert Museum e, em Berlin e Bradenburg, trabalhou com cenografia para 1ATV. Reside atualmente em S. Francisco/Estados Unidos.
Coluna de 14/1/05
(próxima coluna: 28/1)
TEATRUM MUNDI
O mundo do teatro, o teatro no mundo.
Os autores e criadores visionários da palavra em movimento na ação do personagem.
Teatrum Mundi em latim, representando a raiz dos gregos, mestres do teatro universal. Uma janela virtual para um fazer renovado, porém ancestral.
Uma ampla visão do panorama teatral contemporâneo, sem fronteiras de línguas ou nacionalidades. Visão do Brasil em sua rica polpa cultural e também de outros países e culturas, como o teatro australiano, o alemão, o canadense, o russo, o espanhol, o francês e até – por que não? – o americano.
Encenadorores-autores-criadores que ofereçam uma linguagem inovadora e libertadora, na descontração de velhos conceitos e rupturas de linguagens e tabus. Os transformadores das mentalidades que, com sua verve, estilo e estética, realizam a interação entre palco e espectador.
Dias Gomes, o popular Bem-amado
Por coincidência ou não, o dramaturgo Dias Gomes, sempre esteve presente em minha vida.Da infância a despedida. Quando criança, aos sete anos, minha avó residindo na Fonte da Saudade, no bairro da Lagoa — Rio de Janeiro — teve por ilustres vizinhos, Janete Clair e o próprio. Eu, nas muitas visitas que fazia a casa da vovó, sempre espevitada e muito curiosa, vivia dependurada no muro, a prosear com eles e ao mesmo tempo a observar o cotidiano da família: as crianças brincando no quintal da casa – quando não brincavam na rua comigo e os outros — Janete no dedilhar ininterrupto de sua “mecânica” máquina de escrever – vez por outra saindo do escritório para ir buscar um cafezinho na cozinha — e Dias Gomes também, sempre presente em casa, algo incomum para homens profissionais daquele tempo. Eu adorava a família, que por vezes conversava muito com minha mãe pelo muro, durante nossas visitas. Eles não eram comuns, tinham horários estranhos, pouco convencionais e isso me fascinava. Soube depois por meus pais que ele escreveu o tal famoso filme que havia ganho o prêmio em Cannes. E que suas peças foram censuradas. Mas, criança, não sabia muito o isso significava, mesmo ouvindo explicações. Pouco mais tarde, fui descobrir que as novelas que assistia na televisão e morria de gargalhar eram escritas por esse vizinho interessante. A primeira versão de Saramamdaia foi algo inesquecível para mim e acho que, ali, aprendi a gostar do realismo fantástico de nossa literatura. Um dia, naturalmente, minha avó mudou-se. Perdemo-nos de vista.
Muitos e muitos anos se passaram, o autor tornou-se grande reconhecido, escreveu inúmeras e divertidas telenovelas, muitas peças de teatro e eu sempre me mantive seu publico fiel, porém agora a distância.
Minha vida também mudou. Aos dezenove anos, fui morar em São Paulo, aonde as lembranças do Rio, já habitavam distantes na memória de infância. Anos depois, numa noite em meu apartamento nos Jardins — quase esquina com a Avenida 9 de Julho – logo após o jantar, ouço um estrondo absurdo. Mais um acidente, pensei. Aquela região sempre teve esses problemas nos cruzamentos. Mas não. Era muito mais do que um simples bater de carros. Aquele estrondo horrível, a poucos metros de minha porta, foi a morte de Dias Gomes.
Naquela noite, o famoso autor, veio a São Paulo com a esposa, Bernardeth, para assistir à pré-estréia da ópera Madame Butterfly , no Teatro Municipal. Ao saírem do teatro, foram jantar e depois pegaram um táxi para regressar ao hotel. Ao descer a Avenida 9 de Julho, o rapaz do táxi perdeu a entrada referida e do banco de trás, escutou o pedido do passageiro: "Não dá para virar aí, não, moço?" O motorista – novato na área – decidiu obedecer à ordem, procurando agradar o cliente. Fez a proibida conversão e virou bem na frente de um ônibus, que em velocidade, descia a avenida no mesmo sentido. Dias Gomes foi atirado para fora do carro e morreu na hora.E eu, sem saber no exato momento, escutei essa morte. Qual foi minha surpresa e terrível choque da perda, ao ler os jornais no dia seguinte: “Morre uma das personalidades do século, da encenação nacional ”. Seu corpo foi velado no "Salão dos poetas românticos" na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, onde foi enterrado.
Alfredo de Freitas Dias Gomes, romancista, contista e teatrólogo, nasceu baiano, a 19 de outubro de 1922, em Salvador. Cidade essa, aonde passou sua primeira infância e fez o curso primário no Colégio Nossa Senhora das Vitórias, dos Irmãos Maristas, e iniciou o secundário no Ginásio Ipiranga. Sua família mudou-se para o Rio em 1935 a os seus doze anos. Interessava-se tanto por literatura, desde a infância – apesar de mal aluno em matemática – que publicou um livro de poesias. Também se fascinava pelas representações teatrais. Aos quinze anos, ganhou o primeiro lugar no prêmio do Serviço Nacional de Teatro, com sua peça A comédia dos moralistas. Em 1940, fez o cursinho para a faculdade de Engenharia – profissão de seu pai — e, no ano seguinte, para a Faculdade de Direito. Chegou a ingressar em Direito, na UERJ em 1943, mas abandonou o curso no terceiro ano.
Sua estréia no teatro profissional ocorreu em 1942, com seu texto de comédia “Pé-de-cabra ”, encenada no Rio de Janeiro e São Paulo por Procópio Ferreira, com quem ele excursionou por todo o país. No ano seguinte, assinou com exclusividade um contrato com Procópio Ferreira, na época, o maior ator brasileiro. Dentre suas cinco dramaturgias escritas naquele ano, o ator, interpretou três. Uma honra. A partir de 1944, apos abandonar seu curso, passou a trabalhar em emissoras de rádio do Rio de Janeiro, como autor e diretor. No ano seguinte, convidado pelo amigo dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, mudou-se para São Paulo para então fazer parte do corpo de redatores da rádio Pan-Americana, contratado por um ano. Ficou por lá por mais alguns anos, contratado por emissoras associadas. Regressou ao Rio de Janeiro, em 1948 e passou a trabalhar em diversas rádios: Rádio Tupi e Rádio Tamoio em 1950, mesmo ano em que se casou com Janete Clair — com quem teve cinco filhos: Guilherme, Denise, Alfredo e dois já falecidos — a Rádio Clube do Brasil em 1951 e ao final de 1953, foi demitido porque viajou à União Soviética, numa comitiva de escritores, em função das comemorações do 1º de Maio. Incluído na "lista negra", teve que negociar seus textos para a TV Tupi em nome de seus colegas, por um período de nove meses. Em 1956, voltou a trabalhar no rádio, como sempre escrevendo adaptações de contos, peças universais e romances, na Rádio Nacional.
Um de seus maiores êxitos na carreira de escritor e dramaturgo, foi a peça “O pagador de promessas”, escrita em 1959, encenada pelo Teatro Brasileiro de Comédias (TBC), sob direção de Flávio Rangel e com Leonardo Villar e Nathália Thimberg no elenco. E sta transformou-se no filme do diretor Anselmo Duarte, vencedor da Palma de Ouro do Festival Cannes, em 1962. Agora, com as portas abertas, Dias Gomes passou a construir — com sua sutil arquitetura da palavra — uma sólida carreira dramatúrgica. E nela, teve grande competência em sacar, percebendo com perfeição, os muitos tipos brasileiros. Deixou uma galeria de personagens singulares e por isso mesmo, folclóricos e inesquecíveis. O tema trata o problema do sincretismo religioso no Brasil. O simplório personagem Zé-do-Burro faz uma promessa a Iansan e quer pagá-la no interior de uma igreja de Santa Bárbara, em Salvador — pois Iansan é na visão popular equivalente a santa católica, mas de fato, não é mito cristão. Já o padre, movido por intolerância e purismos, acreditando pretender ele, se passar por um segundo Jesus — além de não considerar a divindade do candomblé um sinônimo da santa — julga tal ato, ser um sacrilégio e não admite permitir a entrada do sujeito no sagrado recinto. Mas nosso herói não desiste de sua saga, e nem de seu objetivo final: conseguir entrar na igreja, deixando a cruz lá dentro. Na confusão, do diz-que-diz, chamam a policia. Ao chegar, ela pede para Zé acompanhá-la até a delegacia. Zé não aceita, pois quer cumprir a promessa. A roda de capoeira reage tentando ajudá-lo, e mais confusão se cria até um policial atirar em Zé matando-o, ali mesmo. O texto aborda sincretismo religioso, pobreza, desigualdade social, e até mesmo reforma agrária: todos temas sempre presentes em sua obra. O Pagador de Promessas, ainda hoje, é um dos textos teatrais brasileiros recordes em traduções e conseqüentemente encenações, no estrangeiro.Foi encenada quatro vezes, por diretores variados, na América do Norte.
Em 1964, ironicamente demitido do cargo de diretor-artístico da Rádio Nacional pelo Ato Institucional nº 1, via ao mesmo tempo “O pagador de promessas ” estrear com sucesso em Washington e seu texto “A invasão ” receber montagem em Montevidéu. Desde então, participou ativamente em diferentes manifestações expressas contra a censura e em defesa da liberdade. Vários de seus textos teatrais sofreram censura com esse regime. Em 1965, ingressa no Conselho de Redação da Revista Civilização Brasileira e por la fica, desde seu lançamento. Mesmo em meio a acirrada censura, mantém-se constante em sua produção de textos teatrais, obtendo vários de seus espetáculos sendo encenados entre 1968 e 1980. Escreveu em parceria com Ferreira Gullar, o texto “Dr. Getúlio, sua vida e sua glória ” (Vargas), peça montada no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre, 1969; também “O Bem-amado” , foi encenado no Teatro Gláucio Gil, Rio de Janeiro em 1970; “O santo inquérito” , estreou no Teatro Teresa Rachel, em 1976; e “O rei de Ramos ”, montada no Teatro João Caetano, em 1979, esses últimos, ambos no Rio.
Em 1973, em pleno auge da censura militar, Dias Gomes ousou com o texto de “O Bem Amado” , na TV Globo, primeiro por estar discutindo a realidade política do País e em segundo, por ser a primeira novela gravada em cores no Brasil. Ao aceitar escrever para TV, foi considerado um provocador vira-casaca pelos companheiros do Partido Comunista. Com o tempo, e anos de carreira depois, dizia-se ser “o primeiro comunista a atingir o proletariado pela TV ". Ele provou na prática: “novelas não necessariamente precisam ser açucaradas e sim poderiam ser politizadas, ácidas, divertidas e inteligentes ”. Segundo ele, (...) “o debate das questões das injustiças, de cunho social brasileiro, alem de quebrar preconceitos e tabus eram para a TV, temas tão importantes, quanto a já conhecida, trama romântica.”
Assim revelou: "Em 68 todas as luzes se apagaram. A minha geração, violentamente castrada, enfrentou a estranha situação de a própria realidade ser considerada subversiva pelos militares, pois ela era injusta, o governo sabia disso e a proibiu nos palcos. Restaram duas opções: ou você se adaptava ao regime e não questionava nada ou partia para um texto de metáforas, caminho que alguns autores encontraram para continuar resistindo e denunciando". (...)
(...) "Pensei em fazer novelas que espelhassem a nossa realidade e acabassem com o maniqueísmo exagerado dos personagens da televisão, os heróis com todas as virtudes e os maus com todos os defeitos. Procurei também introduzir problemas reais do país como o preconceito racial, o conflito de gerações, o fanatismo religioso, o poder de corrupção do dinheiro etc. Ao lado disso, fui acrescentando um elemento pouco freqüente nas telenovelas até então: o humor, o humor mesmo na tragédia pois, como diz o poeta, ao lado de quem chora, há sempre alguém que ri." (...)
Em decorrência do decreto da Anistia, em 1980, ele acabou recontratado pela Rádio Nacional, e além disso, alguns de seus trabalhos, como Roque Santeiro, foram liberados pela censura. Nessa época pós-Anistia, a peça “Campeões do mundo ”, estreou ao final do mesmo ano, no Teatro Villa-Lobos, no Rio. Em 1983, encena Vargas (uma versão revisitada de Dr. Getúlio) no Teatro João Caetano. E no mesmo ano em 16 de novembro, sua esposa, a teledramaturga Janete Clair, falece. Posteriormente, já viúvo, casou-se novamente com Bernardeth Lyzio, mãe de suas duas filhas caçulas.
No ano de 1985, criou, desenvolveu e dirigiu, até 1987, a Casa de Criação Janete Clair, dentro da TV Globo. E também em 85, seu texto Roque Santeiro foi levado ao ar como novela da TV Globo, após dez anos de proibição da censura militar. Sua peça “O rei de Ramos” ganhou adaptação para cinema, sob a direção de Bruno Barreto com um novo título: “O rei do Rio”. Na TV, buscou trabalhar conceitualmente na linha de um realismo imaginário, e de um regionalismo nordestino que chamamos de "telerrealismo fantástico", com as novelas O Bem-Amado (1973), Roque Santeiro (1975), Saramandaia (1976), e O Fim do Mundo (1996).
Entre os veículos para os quais escreveu, o teatro sempre foi seu o preferido, dito por ele mesmo. Em 11 de abril de 1991, eleito para a cadeira nº 21, tomou posse na Academia Brasileira de Letras.
Dias Gomes, segundo a própria Academia: “conquistou numerosos prêmios por sua atuação no Rádio e por sua obra para teatro, cinema e televisão. Poucas obras, no Brasil, foram tão premiadas quanto O Pagador de Promessas.” (...)
Obras Teatrais:
1938 -“ Esperidião”, inédita
1939 - “ A comédia dos moralistas”
1940 - “Ludovico”, inédita
1941 - “Amanhã será outro dia”
1942 - “Pé-de-cabra”
1942 - “João Cambão”
1942 - “O homem que não era seu”
1943 - “Sinhazinha”
1943 - “Zeca Diabo”
1943 - “Eu acuso o céu”
1943 - “Um pobre gênio”
1943 - “ Doutor Ninguém”
1944 - “Beco sem saída”
1944 - “O existencialismo”
1949 - “A dança das horas” inédita, adaptação do romance “Quando é amanhã"
1951 - “O bom ladrão”, inédita
1954 - “Os cinco Fugitivos do Juízo Final”
1959 - “O Pagador de promessas”
1960 - "A Invasão”
1961 - "A Revolução dos Beatos"
1962 - “O Bem Amado”
1963 - “O Berço do Herói"
1966 - "O Santo Inquérito"
1968 - “O Túnel”
1968 - “Vargas” – parceria com Ferreira Gullar
1969 - “Amor em Campo Minado” (Vamos soltar os demônios)
1977 - "As Primícias"
1978 - “Phallus”, inédita
1978 - "O Rei de Ramos"
1979 - “Campeões do Mundo”
1986 - “Olho no olho”, inédita
1989 - “Meu Reino por um Cavalo”
Frases do dramaturgo:
Escreveu Dias Gomes, em sua autobiografia “Apenas um Subversivo ”, de 1988: "Consigo pilotar meu barco ao sabor dos ventos, mas sei que há muito mar pela frente. Talvez nunca chegue ao porto. Tomara mesmo que não, pois o melhor da viagem é estar nela". (...)
(...) “Como posso afirmar que a vida que sei que vivi é mais verdadeira que a que inventei para mim? O que posso garantir é que esta última tem muito mais a ver comigo".
(...) “Mas o subversivo em questão vai além da militância política. É algo ligado ao sonho. Sem os sonhadores a humanidade não anda. Hoje a juventude não sonha, acha que é coisa antiga”. (...)
(...) "De todas as artes acho o teatro a mais atuante. Foi uma das primeiras manifestações culturais no Brasil e serviu de propósitos catequéticos e políticos. Era a conquista do índio para o Deus branco e conseqüentemente para o senhor branco. A valorização do teatro era evidente, pois se não fosse, eles teriam escrito romances ou pintado quadros. Mas não. Anchieta escreveu e encenou peças". (...)
Prêmios para o “O pagador de Promessas”:
Prêmio Governador do Estado, 1960 - São Paulo
Prêmio Melhor Peça Brasileira, 1960 - A.P.C.T.
Prêmio Nacional de Teatro, 1960 - INL
Prêmio Governo do Estado da Guanabara, 1962
Prêmio Autor Brasileiro, 1962 - A.B.C.T.
Prêmio "Padre Ventura", 1962 - C.I.C.T.
Palma de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Cannes, 1962
Laureada no III Festival Internacional de Teatro em Kaltz (Polônia), 1963
Prêmio Fipa de Prata, de Cannes, 1988
Referências bibliográficas:
Site da Academia Brasileira de Letras
Livro "O Pagador de Promessas"
Livro “Apenas um Subversivo”
Revista Isto É - "Brasileiros do Século”
Site da Revista Época
Site do Itamaraty