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COLUNA DE THATY  MARCONDES correspondência
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR.

Crônica da 2ª quinzena de setembro

 

 OUVINDO CHICO

 
Todo dia a mesma rotina: acordava com os olhos meio fechados, olhar de quem ainda estava vendo os sonhos, como quem ainda se recorda vividamente de um bom filme que acabara de assistir. Servia o café como um autômato. "Ainda não acordei" - dizia. Esperava o marido ir trabalhar, os filhos darem um beijo distraído em sua face e partirem para a escola. Uma preguiça nessa hora! Preguiça de tirar a mesa, lavar a louça, organizar o almoço, atender o telefone. Desistia de tudo antes mesmo de começar. Corria ao banheiro, uma boa água no rosto, um xixi, um banho rápido. Mal se olhava no espelho: penteava os cabelos sem ao menos se ver direito. Corria para a sala e colocava um de seus amados CDs do Chico Buarque, em alto e bom som. A casa tremia. Enquanto acabava seu despertar, corria a arrumar as camas. Varrer? Nem pensar. Tinha uma diarista 3 vz por semana. Varrer não era prá ela: perda de tempo. Achava-se dotada de predicados escrivinhatícios, como dizia um amigo seu - médico e escrivinhador de outros lugares, de outras linhas, inspirações outras.
Descongelava rapidamente uma carne para o almoço, colocava o arroz de molho, o feijão na panela de pressão, as verduras de molho para a salada, os legumes descascados, prontos para serem cozidos no vapor.
Olhava o relógio: 8:00 hs da manhã. Todo dia, à mesma hora, era hora de olhar o relógio.

Corria para o computador. Recebia e-mails, enviava respostas. Alguns dias, nem ligava prá nada disso: abria logo o word e começava a teclar seus versos, suas histórias. Havia dias de histórias tristes, havia dias de histórias cômicas, havia dias de amor, havia dias de histórias cotidianas. Dependia do que lhe despertasse a música. E cada dia uma música lhe chamava atenção. -"Como escreve esse Chico" - suspirava. Localizava episódios de sua vida pessoal em algumas delas. Cotidiano, era como ela pensava que o marido via a relação; Terezinha de Jesus era sua história antes do casamento; Tatuagem era a recordação dolorida de um amor que se fora irremediavelmente para sempre e por aí viajava sua imaginação, suas recordações, seu eu, sua vida - vida repleta de fantasias. À noite cantarolava um "vem, meu menino vadio", quando estava romântica e apaixonada pelo marido. Para os filhos, "meu guri" de vez em quando. "Apesar de você" quando a lembrança dos idos anos das décadas de 60 e 70 a invadiam - uma nostalgia, saudades dos amigos que foram, mas não retornarão jamais à vida - então ouvia "Vai passar".

Mas não passava! A compulsão da escrita, ao contrário, ao invés de passar aumentava mais e mais, a cada dia.

"Eu faço samba e amor até mais tarde, e tenho muito sono de manhã...." era a desculpa perfeita para a sua sonolência matutina. "Nosso eterno espreguiçar"...ah! Frase perfeita!

"Eu faço samba e amor a noite inteira, não tenho a quem prestar satisfação". Sem dúvida essa era a sua música: era ela própria! "Será que é tão difícil amanhecer?" Sim, era difícil! Era difícil acordar dos devaneios, dos sonhos de sucesso, do objetivo de editar um livro, ao menos.

Eis que um dia, a própria vida real encarregou-se de lhe dar inspiração: inspiração para a viver a vida e descrever a nua e crua verdade.

Viu ele encaixotando os discos, os livros, as fitas; roupas nas malas. Doeu quando viu ele deixar as fotos de lado - pegou apenas 2, uma de cada filho. Então ela o fitou: ele estava mais magro, parecia até mais moço. Estava quase bonito. Quase que ela sentiu um grande amor por ele novamente. Correu ao espelho e olhou-se com vagar: tinha envelhecido, engordara, o cabelo precisava de corte e de tinta. Roupas? Horríveis! Há quanto tempo ela não saía para se dar um trato?

Aí lembrou-se novamente de uma música do Chico: "Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim, não me valeu....." Largou tudo, engoliu o choro, ligou o computador, abriu o word e só se levantou no final do dia. Ele já tinha ido - ela nem notara. Escreveu um livro inteiro em apenas algumas horas!

Colocou papel na impressora, mandou imprimir o arquivo, foi tomar banho, pediu uma pizza e refrigerantes. Quando os filhos voltaram do futebol, ela nada disse.Eles perguntaram do pai e ela respondeu simplesmente: "Foi embora".

Corre-corre! Os dois disputaram o telefone para falar com o pai pelo celular. Ela nem ouviu: estava absorta, sentindo-se plena, sentindo-se escritora, enfim: despertara dentro de si mesma sua vocação. Só faltava o tema, a história - agora ela tinha. Completara-se, sozinha. Quem sabe aquele marido metódico não fosse o impasse de sua inspiração, de sua vida?

Já fazia dois meses que ele tinha ido embora. Telefonava sempre, mas ela cortava logo o papo íntimo: estava com a mente ocupada, totalmente direcionada ao objetivo de publicar seu livro.

No dia do lançamento ele compareceu à Livraria. Ficou comportadamente na fila, deixando todos passarem à sua frente - queria ser o último, o único, o verdadeiro.

E assim foi. Ela, agora em sua plenitude de mulher e gente, está sempre arrumada, de bem com a vida; acorda esperta e todos respeitam suas horas de criação. Já está no terceiro romance - todos livros de sucesso. Ele descobriu a mulher sensível escondida dentro dela. Os filhos são fãs incondicionais da mãe.

Ela? Continua ouvindo Chico. Diz que é sua inspiração: misturado à vida real, é o motivo de seu equilíbrio e sucesso. "Tenho um suburbano coração" - diz.