GLAUCOMATOPÉIA [#3]

[1] O "cabramachismo" é um valor tão arraigado na cultura nordestina que não deixa brecha sequer a um cantador que assuma performaticamente a persona auto-epigramatizada da bicha coitada. Cegos cantadores lamentando sua desgraça existem vários (até porque a cegueira, entre outras mazelas sócio-econômicas e sanitárias, é coisa corriqueira por lá), seguindo o exemplo de Aderaldo ou Benjamim Mangabeira. Agora imaginem se um cego, além de encarnar explicitamente o azar da deficiência como inferioridade física e moral (coisa por si só politicamente incorreta), ainda por cima assumir a homossexualidade como fatalidade e sinal verde para a humilhação! Pois é isso mesmo o que decidi personificar, inaugurando o filão "desumanista" na literatura de bordel, filão que, pelo jeito, não terá muitos representantes além de mim...

[2] Quanto ao glosismo, o filão tem-se empobrecido ultimamente, mas não corre risco de extinção, tal como o machismo. Deve-se muito da consolidação do gênero a Moysés Sesyom (1883-1932), nascido no Caicó e radicado no Açu (Rio Grande do Norte), cuja reputação de sátiro e satírico já era reconhecida por Câmara Cascudo na década de 40 e seguida por vasta legião de discípulos. Sesyom nada inovou, como veremos proximamente, mas tipifica o boêmio inveterado, cujo machismo transpira forte de sua mais famosa glosa, sobre o seguinte mote:

BEBO, FUMO, JOGO E DANÇO;
SOU PERDIDO POR MULHER!

Vida longa não alcanço
Na orgia ou no prazer,
Mas, enquanto não morrer,
Bebo, fumo, jogo e danço!
Brinco, farreio, não canso,
Me censure quem quiser!
Enquanto eu vida tiver,
Cumprindo essa sina venho,
E, além dos vícios que tenho,
Sou perdido por mulher!

[3] Outra característica do cabramachismo é propor e topar desafios em tom de desaforo à própria masculinidade, que tem assim a chance de sair ilesa e triunfante sobre a desonra do adversário. Escolhi de propósito um mote nesse tom insultuoso, também inerente às "pelejas" (duelos entre repentistas), para ver como Sesyom se saía. Eis a réplica dele:
SUA AVÓ, PUTA DE ESTRADA...
SUA MÃE É FÊMEA MINHA!

A sua raça é safada,
Desde a quinta geração!
Seu avô foi um cabrão,
Sua avó, puta de estrada;
Sua filha amasiada;
Prostituta uma netinha;
Uma irmã que você tinha,
Esta pariu de um soldado!
Seu pai foi corno chapado,
Sua mãe é fêmea minha!

[4] Meu confrade Bráulio Tavares não deixou por menos e recuperou a bravata de vate respondendo assim ao proposto:
Meu amigo e camarada
Eu recordo, e te dou fé,
Que comi num cabaré
Tua avó, puta de estrada.
Tendo enrabado a coitada
Vi passando na cozinha
Uma negrota magrinha
Que me acendeu o tesão...
E ali, junto do fogão,
Tua mãe foi fêmea minha.
[5] Agora a minha versão, que reflete vivência pessoal mas pode ser aplicada a muitos fanfarrões em qualquer parte e a qualquer tempo:
Conheci um camarada
Que odeia corno e viado.
Quem fez dele um revoltado?
Sua avó, puta de estrada...
Dos pais não se sabe nada,
Mas a gente já adivinha...
Pois de mim tira casquinha
O cara e todo seu grupo,
Rindo, enquanto seu pau chupo:
"Sua mãe é fêmea minha!"   [8.49]
GLAUCO MATTOSO
poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados no sítio oficial:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso